Como São Basílio livrou da
possessão um rapaz feito escravo do demônio por causa da concupiscência carnal
Heradio, homem venerável, tinha o propósito de
consagrar a Deus a sua única filha: porém o demônio, conhecedor desse projeto,
tratou de impedir que o levasse a cabo, fazendo com que um dos criados do
piedoso varão se enamorasse apaixonadamente pela donzela. Logo que o ardoroso
enamorado caiu na conta de que seu matrimônio com a filha do seu amo era
impossível, ele era servo e ela de condição nobre, mas disposto a sair adiante
em seu desejo, foi ver um mago e lhe prometeu dar muitíssimo dinheiro se com
suas artes mágicas conseguisse que o casamento se celebrasse. O feiticeiro
disse-lhe:
- Meu poder não chegará a tanto, mas sim o de meu
senhor, o diabo. Se queres ir até ele eu te darei uma carta de recomendação e
ele te atenderá; e se seguires suas recomendações tem por certo que conseguirás
o que pretendes.
- Dá-me esta carta - respondeu o jovem. Farei o que
tu e ele queirais.
O feiticeiro escreveu um bilhete em que dizia ao
diabo: "Meu senhor: movido pelo maior desejo de cumprir diligente e
solicitamente o compromisso que contigo tenho adquirido de apartar de sua
religião o maior número possível de cristãos e de submetê-los a teu domínio
para que teu partido cresça e se multiplique de dia a dia, te envio a este
jovem que arde de amor por uma donzela. Rogo-te que lhe ajude, porque a solução
favorável deste caso aumentará meu prestígio e contribuirá a que venham muitos outros a solicitar meus
serviços; com isto aumentarei também teu partido, pois já sabes que a quantos
me procuram trato de pô-los sob tua bandeira". O mago fechou a carta,
entregou-a ao jovem e lhe disse:
- Esta noite, a tal hora, colocar-te-á sobre a
tumba de um pagão qualquer, chamarás ao demônio lançando ao mesmo tempo este
bilhete para o alto, e em seguida acudirá meu senhor e te atenderá.
O jovem fez ponto por ponto quanto o feiticeiro lhe
indicou, e tão logo lançou a carta para o ar, compareceu perante ele Satanás
rodeado de infinidade de espíritos, leu o que o escrito dizia e perguntou ao
jovem:
- Crês em mim? Porque se não crês não posso
ajudara-te a conseguir o que desejas.
- Creio, senhor; respondeu ele.
- Renegas a Jesus Cristo?
- Renego.
- Sois pérfidos, cristãos; acudis a mim quando me necessitais,
mas logo que conseguis o que buscais me abandonais e tornais a vosso Cristo,
que como é clemente os recebe e perdoa. Se queres, pois, que te ajude a ir
adiante no que pretendes, é preciso que antes redijas e assines com tua própria
mão um documento em que expressamente faças constar que renegas tua fé
O jovem imediatamente redigiu um escrito em que
jurava que renunciava a Jesus Cristo e se passava às filas do diabo. Cumprido isto, Satanás chamou os espíritos
malignos encarregados de promover a fornicação e lhes mandou que trabalhassem o
ânimo da donzela filha de Heradio e não cessassem até haver conseguido acender
em seu coração um amor apaixonado por aquele jovem. Recebida esta ordem, os
espíritos se foram a cumprir imediatamente a missão que lhes havia sido
confiada por seu chefe. Seu êxito foi fulgurante e rápido. A donzela começou a sentir-se
inflamada de amor pelo servo de seu pai, com tal violência que dali a pouco se
apresentou ante Heradio e, prostrando-se a seus pés, lhe disse:
- Pai meu, tem compaixão de mim, te suplico. Faz
algum tempo que vivo atormentada por um amor irresistível por teu criado;
demonstra-me que és um pai compreensivo e que me queres de verdade,
permitindo-me que case com ele. O amo tão apaixonadamente, que sem ele minha
vida é uma insuportável tortura e carece de sentido, até o ponto que, se não
atendes ao que te peço, morrerei de imediato e tu terás que dar contas a Deus
desta morte no dia do Juízo.
Heradio, entre clamores e gemidos, respondeu:
- Desgraçado de mim! Mas, que aconteceu com minha
filha? Quem me tem roubado o tesouro de meu coração? Quem tem apagado a doce
luz de meus olhos? Eu queria entregar-te ao esposo celestial para que esta
entrega contribuísse para minha eterna salvação e tu me sais com a loucura de
fomentar em tua alma apetites lascivos!
Minha filha! Deixa que as coisas se façam como as tinha previsto. Aceita
meu plano de consagrar-te ao Senhor. Não me cause em minha velhice uma dor
desta natureza, que acabará comigo e me levará rapidamente à tumba.
Sem atender a estas reflexões, a filha interrompeu
o pai dizendo:
- Ou me permites satisfazer quanto antes meus
desejos, ou dentro de pouco tempo me verás morta.
Chorando amargamente, aos gritos, como louca,
passava a jovem seus dias e suas noites. Desolado andava o pai pela casa, o
qual, cedendo aos gemidos dolorosos de sua filha e aos conselhos de seus
amigos, com quem consultou o sério problema que lhe preocupava, permitiu que a
donzela se casasse com o servo e até lhe entregou todos os bens, dizendo-lhe:
- Filha minha desgraçada! Posto que te empenhas
nisto, anda e casa-te com ele!
Casaram-se, pois, a nobre e o escravo. Como este
nem entrava na igreja, nem fazia o sinal da cruz, nem se recomendava a Deus,
alguns, que o notaram, perguntaram à esposa:
- Sabes que teu marido, com quem te empenhaste em
casar, nem vai ao templo nem sequer é cristão?
Ela, ao comprovar que isto era certo, assustada e
prostrada em terra começou a arranhar-se o rosto em sinal de dor, a golpear-se
o peito e a dizer:
- Ai, infeliz de mim! Por que nasci? E já que nasci
por que não morri ao sair do ventre de minha mãe?
Depois referiu ao seu esposo o que dele haviam
dito. Este lhe assegurou que tudo aquilo era completamente falso. Mas ela lhe
replicou:
- Se queres que te acredite, terás que me
acompanhar amanhã à igreja.
Ante esta intimação, o marido, compreendendo que
não podia continuar ocultando sua situação, contou à esposa tudo o que lhe
havia ocorrido. Cheia de dor e profundamente afligida, a recém casada foi ver a
São Basílio e lhe referiu tudo que seu marido lhe havia contado e lhe suplicou
que os ajudasse, a ela e a seu esposo, a sair da enrascada em que se achavam
metidos. São Basílio chamou ao esposo, ouviu de seus lábios o relato do
sucedido e logo lhe perguntou:
- Filho, queres voltar a Deus?
- Sim, senhor, quero, porém não posso, porque tenho
renegado de Cristo e entregue ao demônio um documento assinado por mim em que
faço constar que me tenho consagrado definitivamente a seu serviço.
O santo tranqüiliza dizendo:
- Não te preocupes; Deus é misericordioso; se te
arrependes e regressas a Ele, te perdoará.
Ato seguido São Basílio traçou o sinal da cruz
sobre a fronte do jovem; logo o recolheu numa cela. Três dias depois foi
visitá-lo e lhe perguntou:
- Como te encontras?
O recluso lhe respondeu:
- Muito acovardado. Não posso suportar os gritos
que os demônios dão constantemente em meu redor nem o terror que me causam com
suas ameaças; a cada passo e a cada momento me apresentam o escrito que assinei
dizendo-me: nós não fomos à tua procura; foste tu que vieste a nós.
- Meu filho - replicou o santo. Não temas; tem
confiança, e, sobretudo, crê.
São Basílio, após confortá-lo e entregar-lhe algo
de comida que havia levado, traçou-lhe de novo o sinal da cruz sobre a fronte e
se foi, deixando-o novamente na solidão de sua reclusão. Porém alguns dias
depois voltou a visitá-lo e lhe perguntou:
- Filho meu! Como estás?
O recluso respondeu:
- Pai! Já não os vejo ao meu redor, porém à
distância continuam gritando e dando-me a entender que se volto para eles me
receberão com alegria.
Deixou-lhe o santo outra porção de comida, fez-lhe
na fronte o sinal da cruz, saiu da cela, fechou sua porta por fora, se retirou
e continuou rezando por ele durante quarenta dias, ao fim dos quais fez-lhe a
terceira visita.
- Filho meu! Que tal te encontras? - lhe perguntou.
- Bem! Santo de Deus. Hoje tenho visto a luta que
em meu favor sustentas contra o demônio e como lhe vencias.
O bispo tirou o recluso de sua cela e o levou
consigo. Depois reuniu na catedral o clero, os religiosos e o povo, e quando
todos estavam reunidos tomou com suas mãos uma das do penitente, e assim se
encaminharam até o templo. Ao chegar à porta principal, ambos foram assaltados
por Satanás e uma legião de diabos.
Lúcifer, invisivelmente se apoderou do jovem e começou a puxá-lo
fortemente para separá-lo de São Basílio.
- Pai meu! Ajuda-me! - disse aos gritos o
penitente.
Satanás puxava-o com tanta força, que num daqueles
puxões arrastou também o bispo, a quem o jovem continuava agarrado. Então São
Basílio se encarou com o demônio e lhe disse:
- Infame! Não te basta com tua própria perdição?
Por que pretendes perder também a este a quem acaba de reconquistar meu Deus?
Vociferando, de modo que muitos de quantos estavam
na catedral o ouviram, contestou o diabo:
- Te equivocas, Basílio.
Ao ouvir isto, o público que enchia o templo, exclamou
em coro:
- Kyrie, eleison! (Senhor tende piedade de nós!)
Basílio disse ao demônio:
- Que Deus te confunda!
O demônio replicou:
- Basílio! Repito que te equivocas; tens de saber
que eu não fui à procura deste, senão que foi ele quem voluntariamente me
buscou, renegou de Cristo e se submeteu. Tenho a prova do que digo neste
documento.
Basílio lhe contestou:
- Não cessaremos de rezar até que nos entregue esse
escrito.
Imediatamente São Basílio elevou suas mãos até o
céu e começou a rezar. De repente o papel se escapou das mãos do diabo,
descreveu uma parábola no ar, e, à vista de todos, veio a cair nas mãos do
santo bispo, que o aparou, o mostrou ao jovem e lhe perguntou:
- Conheces esta folha de papel?
- Sim, eu mesmo a escrevi - respondeu o
interpelado.
(Extraído
de “A FELICIDADE ATRAVÉS DA CASTIDADE”, págs. 168/170. Desejando o texto
integral dessa obra enviar mensagem por e.mail para juracuca@gmail.com )
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