“APPARUIT BENIGNAS ET HUMANITAS SALVATORIS NOSTRI
DEI”
Há verdades que aos homens impressionam como o
ouro. Há outras que lhes são suaves e perfumadas como o incenso.
Quanto à mirra, é mais modesta. A raiz etimológica
dessa palavra se relaciona com o vocábulo "mur", que em árabe quer
dizer "amargo". Os especialistas descrevem a mirra como uma resina
gomosa, em forma de lágrima, dotada de gosto amargo, aromática, vermelha,
semitransparente, frágil e brilhante. Seu odor é agradável, mas um pouco penetrante.
Como se vê, tem ela a beleza discreta, austera, forte, do sangue. E seu perfume
é o da disciplina e da sobriedade.
Diríamos que no campo ideológico a grande verdade
representada pela mirra é o princípio de contradição, pelo qual o sim é sim e o
não é não Todas as outras são ouro e incenso, mas só valem se apreciadas num
ambiente perfumado pela mirra. E é desta mirra que larga, muito, muito
largamente necessita o Brasil.
Não se confunda o princípio de contradição, que é
quinta-essência da lógica, da coerência, da objetividade, com o espírito de
contradição. Este é um vício que resulta do prazer jactancioso de contrariar o
próximo: é volúvel, e faz do sim, não e do não sim, conforme convenha à posição
arbitrariamente tomada de momento.
Somos um povo que tem o defeito de suas qualidades.
Propensos habitualmente a tudo que é bom, infelizmente não somos ao mesmo tempo
infensos a tudo quanto é mau. Em geral, os outros povos, quando amam uma
verdade, odeiam o erro que lhe é contrário. E reciprocamente, quando amam o
erro detestam a verdade que a ele se contrapõe. Em última análise, é pelo jogo
desse princípio que se explicam as grandes fidelidades, como as grandes
apostasias. Na psicologia do brasileiro, o ódio explícito e declarado à verdade
e ao bem é raro. Neste sentido somos um dos melhores povos da terra. Mas quando
se trata, para nós, de deduzir do amor à verdade e ao bem uma atitude militante
contra o erro e o mal, o caso é outro. E no fundo isto se dá porque o princípio
de contradição é antipático à pacateza brasileira. Uma expressão muito
conhecida exprime em linguagem popular o princípio de contradição: "pão,
pão; queijo, queijo". Mas em inúmeros casos confundimos pão com queijo.
Esta tendência de espírito se reflete em muitos
aspectos da nossa mentalidade. O Brasil é uma República. Entretanto, em nenhum
lugar o monarca destronado e a monarquia deixaram mais saudades. Separamo-nos
de Portugal numa atmosfera borrascosa. Entretanto, no tratado em que a antiga
Metrópole reconhecia nossa independência asseguramos a D. João VI até o fim de
seus dias o título de Imperador do Brasil. O quadro corrente, e por assim dizer
oficial do Marechal Deodoro, proclamador da República, apresenta-o com o peito
constelado com as insígnias do Império que derrubou. Expulsamos em 1930 o Presidente
Washington Luiz. Restaurado o regime constitucional regressou ele ao Brasil num
ambiente de respeito e de simpatia tão gerais, que com exceção de D. Pedro II
nenhum homem público reuniu em torno de si unanimidade maior. Porque então foi
destituído? Dessas pitorescas contradições, poder-se-ia fazer uma longa lista.
E o assunto Getúlio Vargas - ainda quente demais para ser abordado num artigo
desta índole - forneceria a este respeito farta documentação.
Talvez, à vista destas reflexões, algum leitor
sorria, como quem está em presença de um amável desfeito. Pois não deixa de ter
algo de simpático e tranqüilizador um tal cúmulo de bonomia.
Mas estudemos este assunto no terreno da moral.
Trata-se de analisar esta tendência psicológica, para ver se é conforme à Lei
de Deus. E não é com meros sorrisos, mas com muita seriedade que se resolvem os
problemas morais.
Aquele que veio ao mundo para pregar as
Bem-aventuranças, nos deixou por preceito que fossemos fiéis ao princípio de
contradição: "seja vossa linguagem sim, sim; não, não" ( Mt. 5, 37 ).
E se tal deve ser nossa linguagem, tal deve ser nosso pensamento. Em matéria de
moral, mais do que em qualquer outra, todo excesso é um mal, ainda que seja de
qualidades tão simpáticas quanto a bonomia, e a suavidade de trato. E um mal
que conforme o caso pode tornar-se muito grave.
Exemplifiquemos. No terreno religioso, não é bem
verdade que o amortecimento do princípio de contradição nos conduz com muita
freqüência a atitudes lamentáveis? Quantos são os católicos que se julgam no
direito de discordar da Igreja em algum ou em muitos pontos? Com isto, embora
se ufanem de católicos, pecam contra a fé. Porque? Simplesmente porque imaginam
possível um "tertium genus" entre ser católico e não ser. O mesmo se
diga da naturalidade com que se admite entre nós uma categoria de católicos
"não praticantes"! Claro que os há no mundo inteiro. Mas parece-nos
que em nenhum país eles têm tão pouca consciência do que seu estado apresenta
de cacofonico, de antitético, em uma palavra, de contraditório. Por fim, mais
um exemplo. Quantas famílias temos, modelarmente constituídas! Porque progridem
tanto as modas imorais? É que essas famílias, que prezam tanto a virtude, são
por vezes pouco enérgicas no combate ao vício. Em todos estes casos o que nos
falta? Viveza no princípio de contradição lapidarmente definido por Nosso
Senhor, quando mostrou a incompatibilidade entre o "sim" e o
"não".
Este artigo se vai alongando. Não resisto
entretanto ao desejo de indicar outro exemplo. Todos se queixam da anemia de
nossa vida partidária, de nossa atonia em matéria de ideologia política, e do
predomínio das questões pessoais em nossa vida pública. Uma das causas deste
fato está na carência do princípio de contradição. Pois se em face de uma idéia
que temos por certa não nos arregimentamos para a defender resolutamente contra
as que lhe são opostas, como pode haver partidos de verdadeiro conteúdo
ideológico?
O amortecimento do princípio de contradição gera o
gosto, a mania das soluções intermediárias, eu quase diria a servidão às
soluções intermediárias. Dados dois caminhos, escolher sempre o do meio, o que
não é carne nem peixe: é no que se cifra para muita gente toda a sabedoria.
Ora, se rejeitar por princípio as soluções intermediárias é um erro, erro
também é adotá-las por princípio. Pois há casos em que a Sabedoria as condena
formalmente: "Oxalá fosses frio ou quente; mas, como és morno, nem frio nem
quente, começarei a vomitar-te de minha boca" ( Apoc. 3,15 ).
A pessoa viciada nas soluções intermediárias é a
vitima ideal de todos os velhacos. Pois a habilidade do velhaco consiste
precisamente em fazer com que o ingênuo aceite, com algum disfarce, aquilo que,
a nu e sem maquilagem, ele repudiaria. Os hereges são useiros e vezeiros em
velhacarias desta natureza. Rejeitado o pelagianismo, obtiveram eles a adesão
de inúmeros ingênuos por meio do semi-pelagianismo. Condenado o arianismo,
puseram eles em circulação o semi-arianismo. Fulminado o protestantismo,
inventaram o baianismo e o jansenismo. Condenados o comunismo e o socialismo
fabricam um "socialismo mitigado", que em última análise não é senão
comunismo velado. E assim por diante.
Que essa tática é particularmente desenvolvida em
nosso tempo, nada mais notório. Estamos no século da 5ª coluna. E
que uma das formas mais hábeis de solapar os meios católicos é esta, as mais
altas Autoridades Eclesiásticas de nossos dias já o disseram. Disse-o Sua
Eminência o Cardeal Saliège, Arcebispo de Toulouse, quando afirmou em
declaração mundialmente famosa, que tudo se passa como se houvesse uma ação
articulada para "preparar no seio do Catolicismo um movimento de acolhida
ao comunismo" ( cf. CATOLICISMO, nº 37, de janeiro de 1954, pág. 8 ).
E assim nada mais perigoso para o Brasil, nesta
hora, do que o amortecimento do princípio de contradição. E nada mais
necessário do que trabalhar para que, em nosso país, este princípio tome mais
força, mais cor, mais eficiência em toda a vida mental.
Não sei se um leitor não brasileiro compreenderá
bem toda esta problemática. Duvido bastante. Mas para um brasileiro isto é bem
mais inteligível. E é inteligível sobretudo para Vós, Senhor Jesus, que,
deitado num berço rústico, sondais entretanto até o fundo as almas e os
corações. Para Vós que, sendo a Sabedoria incriada, e tendo nascido d'Aquela
que é a Sede da Sabedoria, conheceis totalmente a índole de cada povo, a todos
amais, a todos quereis santificar. Para Vós que desde toda a eternidade tão
particularmente amastes o povo brasileiro, e o predestinastes a uma grandeza
que encherá a história de amanhã.
Nossa obra é principalmente de mirra. Jornal feito
para católicos militantes e praticantes, queremos que eles Vos amem sem mescla
de qualquer outro amor. Que só sirvam a um Senhor. Que sejam cada qual em seu
coração uma cidade sem divisão, contra a qual nada pode o Inimigo. Que não
olhem para trás, ao empunhar o arado, e que no afã de semear não se esqueçam de
arrancar a erva daninha.
De certo modo, os católicos militantes e
praticantes são, também eles, sal da terra e luz do mundo. Em parte depende da
cooperação deles que o mundo não se corrompa, nem caia nas trevas. Queremos que
eles sejam um sal muito e muito salgado, uma luz posta no mais alto da
montanha, e muito brilhante. Neste sentido, Senhor, é nossa cooperação. Este o
presente de Natal que acumulamos durante o ano inteiro, para Vos oferecer.
Outros Vos darão o incenso de suas inúmeras obras, capazes de um bem inapreciável.
Nós nos inserimos nessa grande obra queimando em abundância, no solo bem amado
do Brasil, a mirra austera mas odorífera do "sim, sim; não, não".
Que Maria Santíssima aceite essa mirra em suas mãos
indizivelmente santas e Vo-las ofereça. Ela terá para Vós então o encanto do
ouro, e do incenso, com alguma coisa a mais: e isto lhe virá do suor, do sangue
de alma, e das lágrimas de um apostolado que tem suas horas muito amargas...
Mas na Cruz está a luz. E neste amargor o melhor da alegria e da beleza de nosso
apostolado.
(Plínio Corrêa de Oliveira - “Catolicismo” Nº 60 - Dezembro de 1955)
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