América Latina e o mundo
vindouro
Creio que, por algum lado e de certo modo, esse
plano está se realizando na América Latina, a qual representa o mundo de
amanhã. Sua história é ainda tão recente que seu próprio passado é o dos outros povos europeus. Quando estes
começam a decair, brotaram as nossas raízes e desabrocharam de forma incipiente
as nossas glórias.
O século XX foi dos Estados Unidos; o XIX da
Inglaterra; o período (quase mil anos) desde Carlos Magno até fins do século
XVII, da França. Espanha e Portugal não chegaram a ter primazia, mas deram
origem à América Latina, e a história daqueles terá sua continuação nesta
última, conforme os planos da Providência. Isso ocorrerá no século XXI, o qual,
indubitavelmente, será do subcontinente latino-americano.
Em função desse acontecer histórico, vale dirigir
nossa atenção para o brasileiro e o hispano.
Atualmente, fala-se muito e se cogita em estender o
Pacto Andino desde o norte dos Andes até a Patagônia, abrangendo também o
Brasil, embora ele nada tenha de andino. É um modo sul-americano de constituir
uma grande unidade. E nos causa não pequeno entusiasmo a idéia de que essa
magnífica unidade religiosa, étnica, cultural, eu diria lingüística, estabeleça
uma espécie de superestrutura arqui-política.
A índole do brasileiro,
ideal para a unidade das nações
Quanto ao Brasil – onde nosso movimento foi fundado
– percebo perfeitamente esse fato: Deus criou suas características geográfica e
a índole de seu povo de tal maneira que este adquirisse uma mentalidade a fim
de servir idealmente para essa obra resumitiva do futuro. E a grande
originalidade do brasileiro está em fazer compêndios dessa natureza. É sua missão na História.
Para auferir esse talento de sintetizar,
recordemo-nos dos clubes de Carnaval do Rio da década de 40, quando essa festa
estava num auge e se apresentava menos como folia do que desfile do
maravilhoso, feito pelo povinho dos subúrbios. Este é propriamente o sentido
nobre e bonito do Carnaval. Então havia salões freqüentado por homens de cor
vestidos à maneira das cortes de Luís XIV e Luís XV, cabeleira empoada e
sapatos de fivela, acompanhados de “marquesas” de ébano! Aquilo que poderia
parecer sumamente ridículo, era contudo elegantíssimo.
Essa gente é de tal modo unida a Portugal que somos
um povo luso-brasileiro, dotado de intensa cordialidade, vivendo num território
imenso, e sempre de braços abertos para acolher os mais diversos imigrantes:
desde o africano com seus costumes que adotamos, ao francês com sua cultura
pela qual nos deixamos embeber. África e França se encontram harmoniosamente no
ambiente brasileiro, em que a mulher de ébano se veste de Pompadour...[2]
Por expressar esses valores, o Carnaval carioca
conquistou a admiração do Brasil inteiro, e obteve certa fama no mundo todo. É
uma arte bem brasileira conseguir algo que pareceria impossível, isto é,
conciliar duas coisas tão opostas: a simplicidade da neta das selvas e a
cultura da marquesa. E tal arte é alcançada sem estudar, sem usar laboratórios
ou levantar problemas teóricos e resolvê-los , mas remexendo coisas com uma
indolência naturalmente sábia, por onde elas vão se colocando no lugar próprio
e de modo acertado.
No fim de contas, o brasileiro nem percebe bem o
que fez; boceja, alimenta-se de uma fruta e prossegue a toada normal de sua
vida. Ele agiu com esse particular savoir faire [saber fazer] que
possui, muito valioso por ser mais subconsciente do que consciente.
Temperado pelo “azeite português”
O Brasil descende de uma nação representativa para
a Europa daquilo que esta precisava. Poder-se-ia comparar o continente europeu
a uma carruagem magnífica – como as do museu do Palácio de Versailles que me
deslumbraram em menino – cujas molas estivessem quebradas e o entrosamento dos
eixos com as rodas pouco lubrificado. Por essa razão, ela andaria penosamente,
sacudindo as plumas, quebrando os vidros, chiando por toda parte. Seria uma
caricatura da carruagem. Se alguém a azeitasse e consertasse o molejo, as
plumas voltariam ao normal, os vidros não se partiriam, os passageiros não se
segurariam nos damascos por receio de cair, e os rangidos grotescos
desapareciam. E novamente se ouviriam a corneta dos postilhões, o trote
elegante dos cavalos e os chicotes estalando no ar. Era a carruagem que
passava...
Portugal é propriamente a nação-azeite da Europa,
ele a complementa, mas seu florescimento não foi inteiramente conhecido por
esta última. Ele possui a doçura, o afeto, a serenidade, afabilidade e uma
acolhida que não se sente em nenhum outro lugar do velho mundo. Sua expansão,
através da influência, teria dado à história do pensamento, do sentimento e da
ação dos europeus o imbricamento e o contexto que lhes faltou.
A Europa empurrou Portugal para um canto. Porém, ao
mesmo tempo que plantava uvas para fabricar seu esplêndido vinho, a não
lusitana dentro de sua própria produzia azeite, o qual foi derramado pelo
Brasil inteiro, embebendo-o e o transformando no povo “azeitado” por
excelência. Suave, amável, compreensível, voltado a admirar os outros,
comprazendo-se de encontrar neles uma qualidade, encantando-se quando aprende
uma moda, um estilo e um arranjo novos. Não pensa em se comparar com ninguém.
Senhor de uma vastidão de terras continental, distribuindo-as para os que a
desejam, com toda naturalidade, como quem não está fazendo favor.
Além disso, recebe no seu imenso território as mais
variadas raças, penetrando-as no mais íntimo da alma e realizando isso de
curioso: qualquer povo radicando-se neste País, ainda que sem miscigenação, ele
“embrasileira”. É o resultado do “azeitamento”. De um modo inteiramente
ordenado, o estrangeiro, sem perder as suas características originais, acaba
passando por uma mutação na essência de seu espírito.
Mais italiano no Brasil
que na Itália...
É fato notório que no Sudeste do Brasil a imigração
italiana verificou-se torrencial. Se compararmos o ítalo-brasileiro com o
argentino, chileno ou uruguaio de ascendência italiana, ou até com o filho da
cantante Península, julgo realizar-se mais no Brasil do que na Itália,
Argentina, Chile ou Uruguai a figura convencional e folclórica do italiano.
A “Canaã” deles é o Brasil, para onde se mudam em
grande quantidade. E posso dar o testemunho pessoal de que encontrei o autêntico
ítalo no Brás, na Mooca, no Belenzinho[3],
e não comi na Itália uma pizza tão genuína como as elaboradas em certas
pizzarias de São Paulo.
Percebe-se dessa forma como a brasilidade penetra e
muda algo nos povos, mesmo não havendo a mistura de raças. E tal mutação, que é
indizível, efetua-se acrescentando e azeitando. A imagem adequada desse fato é
a de uma gota de azeite espalhando-se sobre uma folha de papel, deixando
intacta a substância desta, que nem sequer fica mais grossa, porém se faz
transparente à semelhança d um vidro.
Grandiosa missão de
harmonizar os povos
Assim é a ação de presença do povo brasileiro, que
torna afáveis as coisas, encaminhando-as para a síntese. Um exemplo peculiar:
os imigrantes vêm para o Brasil com a idéia de, quando ricos, voltarem a viver
na mãe-pátria. Entretanto, muito antes de granjear fortuna, já estão resolvidos
a retornar ao seu país natal – para uma visita e não para morar lá outra vez.
Querem residir no Brasil, e aqui morrer.
Quer dizer, há uma nova forma de imperialismo,
exercida pelo azeite, que domina, penetra e se faz sentir nas mais diversas
localidades do País. Se o imigrante se fixa no Rio, torna-se carioca; se em São
Paulo, fica paulista; em Minas, se “amineira”; no Rio Grande do Sul, se “engaúcha”.
Assim, devido ao modo de ser de seu povo e ao
ambiente por ele criado, o Brasil é um pólo de atração. Pode-se dizer que essa
gente está preparada para contemplar com amor todas as etapas do passado e as
variantes do espírito humano. E isso ela o faz simplesmente olhando, apreciando
os valores, descartando os defeitos, destilando: tal coisa é má, não está de
acordo com os ensinamentos da Igreja; tal outra, apesar de pagã, se encaixa na
doutrina católica; e aquela outra foi predisposta por Deus para, em certo dia,
servir aos interesses da Esposa Mística de Cristo.
O brasileiro consegue apanhar e acertar todas essas
coisas para constituir no fim do mundo a grande síntese da História. Seria o
compêndio da doçura, abarcando a Terra com amor, compreendendo todos os valores
humanos num só olhar, e usando de seu território de proporções continentais
para alojar e harmonizar tudo, com vistas a uma síntese final.
Essa missão encerra uma grandeza superior e mais
bela do que as legiões de Júlio César avançando e estendendo as fronteiras do
império romano...
(Plínio Corrêa de Oliveira - Extraído da revista “Dr. Plínio”, nº 88, junho de 2005, pp.
20/25).
[1]
Ver “O Canto do Cisne” na Humanidade – “Dr. Plínio”, nº 87, de junho 2005.
[2]
Marquesa de Pompadour (1721-1764). Uma das mais prestigiadas damas da corte
francesa, então estabelecida no Palácio de Versailles. Apesar de uma vida moral
pouco louvável, destacava-se pelo luxo e elegância de seus trajes.
[3]
Bairros paulistanos.
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