sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

SOBRE A CASTIDADE MATRIMONIAL - I

 





A castidade matrimonial é hoje muito esquecida nas famílias ou mesmo quase não se fala dela entre casais cristãos. Muitos se perguntarão se um cônjuge ainda guarda a castidade. É o que veremos nos textos abaixo. Comecemos por um texto de São Francisco de Sales:

 

1. Da honestidade do leito conjugal

 

“O leito conjugal deve ser imaculado, como o chama o Apóstolo, isto é, isento de desonestidades e outras torpezas profanas. Porque o santo matrimônio foi primariamente instituído no Paraíso terreal, onde até então nunca tinha havido nenhum desconcerto da concupiscência, nem coisa desonesta.

Há alguma semelhança entre os deleites vergonhosos e os do comer: porque ambos dizem respeito à carne, embora os primeiros, em razão de sua veemência brutal, se chamem completamente carnais. Explicarei, pois, o que não posso dizer de uns pelo que direi dos outros.

1. O comer é destinado a conservar as pessoas. Ora como o comer simplesmente, para alimentar e conservar a pessoa, é uma coisa boa, santa e prescrita; assim o que se requer no matrimônio para a geração dos filhos, e multiplicação das pessoas, é uma coisa boa e muito santa, porque é o fim principal do casamento.

2. Comer, não para conservar a vida, mas para conservar a recíproca conversação e condescendência que devemos uns aos outros, é coisa sobremaneira justa e honesta: e da mesma sorte a recíproca satisfação dos cônjuges no santo matrimônio é chamada por São Paulo dívida; mas dívida tão grande que ele não quer que uma das partes se possa dela isentar sem o livre e voluntário consentimento da outra; e isso nem mesmo para as práticas da devoção, que é o que me levou a dizer as palavras que a este respeito deixei no capítulo da Santa Comunhão (parte II, cap. XX): quanto menos, pois se poderão eximir por caprichosas afetações de virtudes, ou pelas rixas e arrufos.

3. Como os que comem pela obrigação do mútuo trato devem comer livremente, e não como por força, e ademais hão de procurar mostrar ter bom apetite; assim também o débito conjugal deve ser satisfeito fielmente, francamente, exatamente como se fosse com esperança de sucessão, ainda que por alguma circunstância não haja semelhante esperança.

4. Comer não pelas duas primeiras razões, mas simplesmente para contentar o apetite, é coisa tolerável, mas não louvável. Porque o simples prazer do apetite sensual não pode ser coisa suficiente  para tornar uma ação louvável. Basta, porém para que seja tolerável.

5. Comer, não por simples apetite, mas por excesso e desordem, é coisa mais ou menos censurável, conforme o grande ou pequeno excesso.

6. Ora, o excesso no comer não consiste somente na grandíssima quantidade, mas também no modo e maneira como se come. É caso, para notar, cara Filotéia, que o mel, tão próprio e salutar para as abelhas, lhes pode, contudo ser tão nocivo que às vezes as põe doentes, como quando comem em demasia na primavera; Porque isto traz-lhes fluxo do ventre, e algumas vezes fá-las morrer inevitavelmente, como quando estão cobertas de mel no focinho e nas asas.

Na realidade, o comércio conjugal, que é tão santo, tão justo, tão recomendável, tão útil à república, é, contudo em certos casos perigoso para os que o praticam: porque às vezes faz adoecer as suas almas gravemente com o pecado venial, como sucede com os simples excessos, e algumas vezes dá-lhes a morte pelo pecado mortal, como sucede quando a ordem estabelecida para a geração dos filhos é violada e pervertida; nesse caso, consoante o desvio dessa ordem é maior ou menor, os pecados são mais ou menos abomináveis, mas sempre mortais. Porque, como a geração dos filhos é o primeiro e principal fim do matrimônio, nunca se pode licitamente  aberrar da ordem que ele requer: embora por qualquer acidente, não possa por então levar-se a efeito; como sucede quando a esterilidade ou a gravidez atual estorvam a produção e a geração; porque nestes casos o comércio corporal não deixa de ser justo e santo, contanto que se observem as regras de geração: não podendo jamais qualquer acidente prejudicar a lei que o fim principal do matrimônio impôs.  Na verdade, a infame e execrável ação de Onan, no seu matrimônio, era detestável aos olhos de Deus, como diz o citado texto sagrado no capítulo trigésimo oitavo do Gênesis; e embora alguns heréticos do nosso tempo, mil vezes mais censuráveis que os cínicos (de que fala São Jerônimo sobre a Epístola aos Efésios) tenham querido dizer que era a perversa intenção deste malvado que desagradava a Deus, todavia a Escritura fala de outro modo, e assegura em particular que a mesma coisa que ele fazia era detestável e abominável aos olhos de Deus.

7. É uma verdadeira prova de um espírito truanesco, vil, abjeto, e infame, pensar nas iguarias e nos manjares antes do tempo da refeição, e ainda mais, quando depois dela se saboreia o prazer que se teve, comendo, tomando-o por assunto de conversas e pensamentos, e refocilando o espírito na lembrança do prazer que se sentiu ao tragar os bocados, como fazem aqueles que antes do jantar estão com o espírito preocupado no assador, e depois de jantar nos pratos; pessoas dignas de serem moços de cozinha, que fazem, como diz São Paulo, do seu ventre um deus; as pessoas honradas e dignas não pensam na mesa senão quando se sentam a ela, e depois da refeição lavam as mãos e a boca para não ficar com o gosto, nem com o cheiro do que comeram. O elefante não passa de um grande animal, mas é o mais digno que vive sobre a terra, e que tem mais instinto; eu quero dizer-te aqui um rasgo da sua honestidade: nunca muda de fêmea e ama ternamente a que escolheu, com a qual não tem coito senão de três em três anos, e isto por apenas cinco dias, e tão secretamente que nunca é visto neste ato; é, porém bem visto no sexto dia, no qual, antes de tudo, vai direito a algum rio, onde lava todo o corpo, sem querer de modo algum voltar ao rebanho antes de se ter purificado. Não são belas e honestas as qualidades deste animal pelas quais convida os casados a não ficarem presos de afeição às sensualidades e prazeres, que segundo o seu estado tiveram; mas, passadas estas, a lavar delas o coração e o afeto, e a purificar-se o mais cedo possível, para poder depois praticar com toda a liberdade de espírito as outras ações mais puras e elevadas?

Neste aviso consiste a perfeita prática da excelente doutrina que São Paulo ensina aos Coríntios: O tempo é breve, lhes diz, o que resta é que os que têm mulheres sejam como se não as tivessem. Porque, segundo São Gregório, tem uma mulher como se não a tivesse aquele que toma as consolações corporais com ela de tal maneira que por isso não é desviado das solicitudes espirituais. Ora, o que se disse do marido entende-se reciprocamente da mulher. Os que usam deste mundo, diz o mesmo Apóstolo, hão de ser como se não usassem; que todos, pois usem do mundo, cada um conforme o seu estado: mas de tal sorte que, não lhe ganhando afeição, se fique livre e pronto para servir a Deus, como se dele não usasse. É o grande mal do homem, diz Santo Agostinho, querer gozar das coisas de que só deve usar, e querer usar daquelas de que só deve gozar: devemos gozar das coisas espirituais, e das corporais somente usar; e quando o uso destas se converte em gozo, a nossa alma racional converte-se, outrossim, em alma brutal e bestial.

Creio ter dito tudo o que queria dizer, e dado a entender, sem dizer, o que queria não dizer”. [1]

 

(Extraído de “A Felicidade Através da Castidade”, -Págs. 281/283 – Desejando receber o texto integral desta obra enviar mensagem para meu e.mail juracuca@gmail.com )

 



[1] "Filotéia ou Introdução à Vida Devota" - São Francisco de Sales - págs. 347/352.

 


Nenhum comentário: