segunda-feira, 4 de julho de 2022

COMO OS PRIMEIROS CRISTÃOS ENFRENTAVAM OS FEITICEIROS

 


            


Feiticeiro ou mago? A expressão “mago” serve para definir os que praticam magias, encantos, ou, feitiçaria. São, portanto, feiticeiros. Mas, também é utilizada em outro sentido, como é comum chamar aos Santos Reis de “Magos”, mas, neste último caso, magos no sentido de sabedoria e especialistas nos estudos dos astros, da área de conhecimento e não na prática de magias. Nos casos que abordamos a seguir estamos nos referindo àqueles que praticam magias, que são os feiticeiros ou bruxos. Nos casos a seguir se iniciava a doutrinação cristã dos mesmos, mas, perante a pertinácia no erro não havia outra saída a não ser a maldição ou excomunhão (dados por São Pedro e São Paulo), com exceção do caso de Cipriano que se converteu e transformou-se num santo. 

“Simão Mago” nos Atos dos Apóstolos

Bruxos e feiticeiros eram muito influentes no paganismo antigo, e muitos deles se destacavam na população por causa de seus admiráveis poderes de magia. E muitos deles, por influência diabólica, tentavam combater o Cristianismo, conforme relatos antigos como dos Atos dos Apóstolos:

“Ora, vivia a tempo na cidade, um homem chamado Simão, o qual, praticando a magia, excitava a admiração do povo de Samaria e pretendia ser alguém importante. Todos, do menor ao maior, lhe davam atenção, dizendo: “Este  homem é o Poder de Deus, que se chama o Grande”

Davam-lhe atenção porque ele, por muito tempo, os fascinara com suas artes mágicas. Quando, porém, acreditaram em Felipe, que lhes anunciara a Boa Nova do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo, homens e mulheres faziam-se batizar. O próprio Simão, também, acreditou. E, tendo recebido o batismo, estava constantemente com Felipe,  admirando-se ao observar os sinais e grandes atos de poder que se realizavam.

Os apóstolos que estavam em Jerusalém, tendo ouvido que a Samaria acolhera a palavra de Deus, enviaram-lhes Pedro e João. Estes, descendo até lá, oraram por eles, a fim de que recebessem o Espírito Santo. Pois não tinha descido ainda sobre nenhum deles, mas somente haviam sido batizados em nome do Senhor Jesus. Então começaram a impor-lhes as mãos, e eles receberam o Espírito Santo.

Quando Simão viu que o Espírito era dado pela imposição das mãos dos apóstolos, ofereceu-lhes dinheiro, dizendo: “Dai também a mim este poder, para que receba o Espírito Santo todo aquele a quem eu impuser as mãos”. Pedro, porém, replicou: Pereça o teu dinheiro, e tu com ele, porque julgaste poder comprar com dinheiro o dom de Deus!” Não terás parte nem herança neste ministério, porque o teu coração não é reto diante de Deus. Arrepende-te, pois, dessa tua maldade e ora ao Senhor, para que te possa ser perdoado este pensamento do teu coração, pois eu te vejo na amargura do fel e nos laços da iniqüidade”. Simão respondeu: “Rogai vós por mim ao Senhor, para que não me sobrevenha nada do que acabaste de dizer”  (At 8, 9-24).

Impor as mãos para que se recebesse o Espírito Santo significava no início do Cristianismo a concessão da Ordem Sacerdotal, não era dado aos simples batizados mas àqueles que comprovassem possuir missão especial para propagar a doutrina cristã.

Foi a partir deste episódio que ficou conhecido o pecado de “simonia”  na Igreja, que define o erro dos clérigos que recebem dinheiro para exercer suas funções sacerdotais.  No entanto, nos Atos dos Apóstolos não há nenhuma referência aos fatos futuros que falam da triste morte do “Mago Simão”, narrado segundo a tradição e crônicas antigas. Em tais crônicas constam que o mago quis dar uma demonstração de poder ao voar, mas São Pedro o fez despencar do céu no solo e morrer em seguida coma uma simples maldição papal seguida do sinal da cruz. Foi assim feito um exorcismo diferente da fórmula clássica, ocasionando a expulsão e perca dos poderes demoníacos sobre as pessoas.

 

Lenda da Morte de “Simão Mago”, fato não relatado nos Atos dos
Apóstolos segundo a Crônica de Nuremberg[1]

Segundo a lenda, Simão viajou para Roma, onde impressionou as pessoas com sua habilidade ocultista, e depois para o Egito, onde supostamente aprendeu magia como invisibilidade, levitação e mudança de forma em um animal. Dizem que ele criou um homem a partir do nada e se vangloriava de ser parte da Santíssima Trindade.

Em Roma novamente, Simão impressionou Nero e foi nomeado mago da corte.

Então, no dia em que ele se estabeleceu, subiu a uma torre alta que estava no Capitólio, e lá foi coroada de louros. Depois chamou seus deuses, que eram demônios, e começou a voar no ar.

Então disse São Paulo a São Pedro: "Cabe a mim orar, e a ti comandar."

Então disse Nero: "Este homem é muito Deus, e vocês são dois traidores."

Então disse São Pedro a São Paulo: "Paulo, meu irmão, levanta a cabeça e vê como Simão voa."

Então São Paulo disse a São Pedro quando viu Simão, o Mago, erguendo-se bem alto no ar: "Pedro, por que te demoras porque Deus agora nos chama a agir?"

Então disse Pedro: "Conjuro e conjuro a vocês anjos de Satanás, que carregam Simão, o mago, no ar, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não o suportem mais, mas o deixem cair por terra".

E logo o deixaram cair no chão. Com grande velocidade ele desceu e quebrou o pescoço e a cabeça, e morreu ali imediatamente.

E quando Nero soube que Simão estava morto e que ele havia perdido um homem assim, ficou triste e disse aos apóstolos: "Vocês fizeram isso com desprezo por mim, e por isso eu os destruirei". E então o enfurecido Nero prendeu Pedro e Paulo e os jogou na prisão mamertina antes de sua execução

São Paulo e o Mago Elimas

No entanto, quando São Paulo teve que enfrentar o poder de um mago, o fato foi literalmente narrado nos Atos dos Apóstolos:

“Enviados, pois, pelo Espírito Santo, eles desceram até Selèucia, de onde navegaram para Chipre. Chegados a Salaminas, puseram-se a anunciar a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus. Tinham também João como auxiliar.

Tendo atravessado toda a ilhar até Pafos, aí encontraram um mago, falso profeta, que era judeu e se chamava Bar-Jesus. Ele estava com o procônsul Sérgio Paulo, homem prudente, o qual mandara chamar Barnabé e Saulo, desejoso de ouvir a palavra de Deus. Elimas, porém, o mago- assim se traduz o seu nome – começou a opor-se a eles, procurando afastar o procônsul da fé. Então, Saulo, que também se chamava Paulo, repleto do Espírito Santo, fixando nele os olhos, disse: “Homem cheio de toda falsidade e de toda malícia, filho do diabo e inimigo de toda justiça, não cessarás de perverter os caminhos do Senhor, que são retos? Pois agora a mão do Senhor está sobre ti: ficarás cego,e por um tempo não verás mais o sol!”  No mesmo instante, escuridão e trevas caíram sobre ele, de tal sorte que, andando à roda, procurava a quem o levasse pela mão. Então, vendo o que aconteceu, o procônsul abraçou a fé, maravilhado com a doutrina do Senhor”  (At 13, 4-13).

Outro exemplo de ação exorcística por intermédio de uma simples maldição.

Perseverança na castidade converte até um bruxo e o faz santo

A virgem Justina (Santa Justina de Pádua, Mártir, festejada a 26 de setembro), natural de Antioquia e filha de um sacerdote pagão, todos os dias, postada numa janela, ouvia a leitura do Evangelho que o diácono, São Proclo, fazia. Convertida e batizada, logo os pais de Justina souberam que tornara-se cristã. Quando dormiam, apareceu-lhes Jesus Cristo rodeado de anjos e dizendo: "Vinde a mim e lhes darei o reino dos céus". Logo ao amanhecer, os dois esposos foram pedir o batismo e também se tornaram cristãos.

Havia na cidade um tal de Cipriano que praticava a bruxaria desde sua infância. Quando tinha apenas sete anos de idade seus pais o haviam consagrado a Satanás. Por causa disso, e havendo se dedicado com afinco à bruxaria, detinha grande poder diabólico.  Era tão hábil em suas mágicas e bruxedos que conseguia realizar coisas extraordinárias, como transformar pessoas em animais.

O bruxo Cipriano e um companheiro seu chamado Acladio apaixonaram-se perdidamente por Justina. Cipriano recorreu a diversos artifícios de bruxaria para ver se a donzela aceitava ter relações torpes com ele, ou ao menos com seu companheiro Acladio, mas em vão. Acladio, desesperado, resolveu chamar o próprio demônio para ajudar a cumprir seus desígnios. Convenceu o bruxo Cipriano a pedir ajuda a Satanás. Usando de seus recursos mefistofélicos, Cipriano conseguiu fazer com que o demônio aparecesse. Perguntado o que queria, disse que estava apaixonado por uma donzela que praticava a religião dos galileus e perguntou se o demônio não poderia fazer com que ela concordasse em saciar sua concupiscência.

O demônio respondeu:

- Claro que sim! Se pude expulsar o homem do Paraíso e fazer com que Caim matasse seu irmão Abel, e que os judeus crucificassem a Jesus Cristo e que as pessoas andem revoltadas, como não poderei obter que uma simples donzela caia em teus braços e possas fazer o que quiser com ela? Toma este ungüento, espalha-o pelo chão da rua em frente à sua casa; logo passarei por ali, inflamarei o coração da jovem de amor por ti e a inquietarei de tal modo que ela mesma te buscará e se lançará em teus braços.

A partir do momento em que Cipriano fez o que Satanás ordenara, Justina começou a sentir em seu interior desejos ilícitos. Porém ao sentir a tentação se recomendou ao Senhor e traçou o sinal da Cruz em todo os sentidos de seu corpo. O diabo, ao ver que a jovem se persignava fugiu rapidamente dali cheio de terror e apareceu perante Cipriano, o qual lhe interroga:

- Como?  Não vens trazendo contigo Justina?

Ao que o diabo respondeu:

- Tentei trazê-la, porém quando o estava conseguindo ela fez sobre seu corpo um sinal e eu me fiquei de repente sem força e tremendo de medo.

Cipriano, irritado, despediu aquele demônio e invocou ansiosamente a ajuda de outro que fosse mais poderoso que o que acabava de despedir. Apresentou-se outro ante ele e lhe disse:

- Já sei do que se trata. Ouvi o encargo que fizeste a meu companheiro e vi que não foi capaz de realizar sua missão. Porém não te preocupes; eu farei o que ele não fez e conseguirei que se cumpram seus desejos. Me apresentarei ante a jovem e desencadearei em seu coração uma paixão tão violenta que ela se entregará a ti e tu desfrutará dela quanto queiras.

Este segundo diabo aproximou-se de Justina e tratou de acender em seu corpo o fogo da concupiscência e de despertar em sua alma amores impuros; porém Justina novamente se encomendou ao Senhor, persignou-se, rechaçou a tentação, soprou sobre o espírito do mal, e este, da mesma forma que o outro, fugiu dali confuso e envergonhado; e, como seu companheiro, apresentou-se a Cipriano, que lhe perguntou:

- Onde está a donzela que prometeste trazer-me?

- Reconheço, respondeu o demônio, que fui vencido, e até medo me dá dizer-te como me venceu: traçou sobre seu corpo um sinal terrível e quando fez isso me deixou sem forças.,

Cipriano, mofando do segundo diabo, o despediu, e em seguida chamou ao próprio chefe dos demônios, que logo atendeu a seu chamado. Ao vê-lo, Cipriano lhe disse:

- Como é que tua gente é tão pusilânime e covarde que se deixa vencer por uma jovenzinha?

O recém chegado lhe respondeu:

- Deixa este assunto por minha conta. Eu irei pessoalmente resolvê-lo. Me apresentarei ante ela, a atormentarei com altíssimas febres, provocarei em seu ânimo uma violentíssima paixão, acenderei em seu corpo um ardente fogo de irreprimíveis desejos, a farei ver visões lúbricas, conseguirei que se excite freneticamente e à meia-noite  te a trarei até aqui.

Logo em seguida o príncipe dos demônios começou a executar seu plano. Adotou a aparência de uma donzela, apareceu perante Justina e lhe disse:

- Venho ver-te porque quero que me ajudes a viver em perfeita castidade. Sinto vivíssimos desejos de praticar fidelissimamente esta virtude, porém às vezes me assaltam dúvidas deste teor: em troca do muito que é preciso lutar para conservar a pureza que recompensa receberemos?

Justina declarou:

- Não são tão grandes estas lutas; eu não vejo que custe tanto conservar a virgindade;  por outro lado, estou segura de que o prêmio que receberemos por isto será muito valioso.

- A mim me preocupa muito - continuou o demônio - esse mandamento divino que diz: "Crescei e multiplicai e enchei a terra", e a miúdo penso, minha boa amiga, que nós, ao apegarmo-nos ao propósito de viver virginalmente, estamos desprezando este preceito, obrando contra a vontade de Deus, desobedecendo a Ele e enganando-nos a nós mesmas. Às vezes me assalta o temor de que quando chegue a hora do Juízo vamos nos encontrar com a terrível surpresa de que, em lugar dos prêmios em que confiamos, receberemos o castigo da eterna condenação por haver negligenciado um mandamento divino tão claro.

Estas considerações turbaram a paz interior de Justina. A jovem, atormentada pelo demônio, começou a sentir maus pensamentos e torpes desejos cada vez mais fortes e mais desonestos, até o ponto de que em determinado momento esteve prestes a abandonar seus propósitos de castidade;  porém naquele crítico instante caiu em si de que estava sendo tentada pelo espírito maligno, persignou-se, soprou sobre a visitante e ficou atônita ao ver que a que parecia virtuosa donzela se derretia repentinamente como se fosse de cera, e que ela, livre já de maus pensamentos e de desejos impuros, recobrava plenamente a paz interior e o sossego de seu corpo e de sua alma.

Mas, em poucos instantes, o mesmo demônio apareceu-lhe novamente, desta vez em forma de um formosíssimo mancebo que se aproximava de seu leito, se lançava sobre ela e tentava abraçá-la. Justina recorreu a seu poderoso remédio, persignou-se novamente e, enquanto o fez, o jovem galhardo, como se fosse de cera, derreteu-se da mesma forma que a antes fingida amiga. Mesmo com este segundo fracasso, Satanás ainda não se rendeu. Deus permitiu-o seguir tentando a donzela, que o fez desta forma: o espírito maligno desencadeou uma terrível epidemia na cidade de Antioquia. Justina caiu enferma com altíssima febre. A peste propagou-se pela comarca e causou a morte de muitas pessoas e de infinidade de animais domésticos. A região ficou quase sem ovelhas e sem vacas. Os demônios fizeram correr a voz entre a gente de que, se Justina não se casasse, viriam sobre a cidade e o país outras calamidades maiores. Os moradores de Antioquia, sobretudo os doentes, começaram a acudir em massa à porta da casa dos pais de Justina e pedir a eles, aos gritos, que casassem sua filha o quanto antes e livrassem as pessoas dos grandes males que estavam padecendo.

Justina suportou com firmeza a pressão a que estava submetida, e se negou a aceitar o que se lhe propunham. Em vista de sua negativa, o povo, sublevado e irritado, apinhava-se em frente de sua casa proferindo constantemente ameaças de morte contra ela.

Sete anos durou a peste. Ao final, um dia Justina rezou fervorosamente por seus perseguidores e obteve do Senhor a graça de que a epidemia terminasse. Porém não terminou a obstinação de Satanás, o qual, irritado ao comprovar que não avançava nem um só passo no que se havia proposto, elaborou um novo plano: foi até Cipriano e com manifesta jactância lhe assegurou que logo teria ante ele a donzela rendida de amor. Depois disto, tanto para manchar o bom nome de Justina quanto para enganar ao libidinoso enamorado, assumiu a aparência da jovem e, disfarçado de modo que parecia ser exatamente ela, apareceu na casa de Cipriano e qual sem languidez de paixão arrojou-se em seus braços e deu-lhe a tender que queria beijá-lo. Cipriano, acreditando que era efetivamente sua amada quem lhe abraçava tão ternamente, louco de alegria exclamou:

-  Oh, Justina, a mais formosa das mulheres! Bem-vinda sejas a esta casa!

Porém, tão logo Cipriano pronunciou a palavra "Justina", o diabo, incapaz de resistir à virtude que emanava da mera articulação daquele nome, repentinamente perdeu a aparência que havia assumido e desapareceu, deixando em seu lugar uma espessa nuvem de fumo. Com isto Cipriano caiu na conta de que havia sido objeto de uma burla enganosa por parte de Satanás; sua alegria se converteu em tristeza e caiu num estado de profunda melancolia;  porém a melancolia por sua vez reavivou ainda mais as chamas do amor que sentia por Justina, e, para ver se podia lograr seus desejos de desfrutar de sua amada, decidiu vigiar constantemente a casa em que ela vivia; e como era exímio em feitiçaria, recorrendo a suas artes mágicas conseguiu adotar diferentes aparências, umas vezes de mulher, outras de ave, e sob estas e outras formas permaneceu perto da jovem, constantemente, porém a certa distância, porque, tão logo tentava se aproximar suas artimanhas falhavam e recobrava seu verdadeiro aspecto de Cipriano.

Acladio, seu amigo, se uniu a ele nestas tarefas de vigilância permanente; com tal efeito, mediante artes diabólicas, se converteu em pássaro e andava continuamente sobrevoando em volta da casa da virtuosa jovem. Em certa ocasião, o falso pássaro pousou na janela da casa de Justina. No entanto, tão logo ela olhou para o pássaro, este perdeu sua forma de ave e voltou à de Acladio, o qual, ao ver-se em seu verdadeiro ser, começou a tremer de medo e de angústia porque não podia fugir dali voando, nem sem perigo de cair ao solo e morrer.

Justina, ao notar a comprometida situação em que Acladio se encontrava e temendo que de um momento a outro pudesse cair e estatelar-se contra o pavimento da rua, acudiu em seu socorro: mandou colocar uma escada por fora a fim de que pudesse descer seguramente. Estando o mesmo a salvo, fez-lhe ver que largasse semelhantes loucuras e que, se voltasse a cometer alguma impertinência, o denunciaria às autoridades e exigiria que de acordo com as leis fosse castigado pelo delito de praticar a magia.

Satanás, no final, convenceu-se de que jamais conseguiria o que se propunha e de que quanto tentasse neste sentido estava condenado ao fracasso; por isso, confuso e envergonhado, se apresentou na casa de Cipriano. Este, logo ao vê-lo, lhe dirigiu a palavra:

- Olhando o semblante que trazes acredito adivinhar que te dás por vencido. Tu e todos os de tua corja sois uns desgraçados. A que vem tanto alardear de força se logo resulta que não podeis nada contra uma menina que inclusive os vence com suma facilidade e os deixa miseravelmente humilhados?  De todos os modos quero que me digas uma coisa: de onde tira esta jovem a enorme fortaleza que demonstra ter?

O demônio lhe respondeu:

- Se me juras que nunca nem por nada te apartarás de mim, responderei a tua pergunta e te descobrirei de onde provêm sua valentia e as vitórias que sobre nós tem conseguido.

- Por quem ou por quais coisas queres que eu te jure? - diz Cipriano.

- Por meus poderes. Jura por meus poderes que jamais te separarás de mim.

- Por teus extraordinários poderes prometo com juramento que nunca me separarei de ti.

Então o diabo, fiando na promessa que seu aliado acabava de fazer, diz:

- Esta jovem, quando me apresentei perante ela, fez o sinal da Cruz, e, tão logo traçou sobre seu corpo esse sinal, eu fiquei sem forças, como se estivesse acorrentado, e naquele mesmo momento me derreti como se derrete a cera diante do fogo.

- Significa isso acaso que o Crucificado é mais poderoso que tu?

- Por suposto que sim. Ele é o maior que existe no universo; tão grande e poderoso que em virtude de seu infinito poder nos mantém aos demônios em estado de perpétua condenação e lança ao fogo eterno que nós padecemos a quantos conseguimos enganar com nossas trapaças.

- Do que acabas de dizer se segue que, se eu não quero incorrer nesses horríveis tormentos, devo fazer-me amigo do Crucificado.

- Não  esqueças que há pouco juraste que por meus extraordinários poderes jamais te separarás de mim, e  não esqueças que uma coisa assim não se jura em vão.

- Sabes o que te digo? Que me rio desse juramento e me rio de ti, e me rio de teus poderes, porque esses poderes que tu chamas extraordinários, não são mais que fumo. Escuta o que segue: renuncio a ti, e renuncio a todos os diabos, teus companheiros, e em prova disto agora mesmo vou fazer eu também sobre meu corpo o sinal da Cruz.

Em seguida, Cipriano persignou-se e, enquanto o fazia, Satanás, confuso e aterrado, fugiu precipitadamente.

Depois disto Cipriano foi ver o bispo. Este, ao vê-lo entrar, pensou que vinha seduzir com suas artes mágicas aos cristãos e, antes que o visitante pronunciasse uma só palavra, disse:

- Cipriano, contenta-te em enganar aos infiéis e deixa em paz aos nossos. Ademais, advirto-te que quanto trates de fazer contra a Igreja de Deus será completamente inútil, porque o poder de Cristo é invencível.

- Por suposto que o poder de Cristo é invencível; disso tenho provas.

Dizendo isto contou ao bispo tudo o que acabara de lhe ocorrer. Terminada sua narração pediu o batismo. E a partir de sua conversão fez tais progressos nas virtudes e ciências que, anos depois, tornou-se também bispo. Nos primeiros dias de seu episcopado instalou a virgem Justina num mosteiro com várias outras donzelas, nomeando-a abadessa da comunidade.

São Cipriano abjurou a bruxaria e tornou-se não só um grande animador dos mártires, mas um deles, pois morreu decapitado em defesa da Fé. [2]

 



[1] Crônicas de Nuremberg foi publicada em 12 de julho de 1493. Trata-se de uma enciclopédia ilustrada composta de relatos da história mundial, contados através da paráfrase de passagens bíblicas. Os assuntos incluem a história humana em relação à Bíblia, criaturas mitológicas ilustradas e as histórias de importantes cidades cristãs e seculares da Idade Média. 

[2]Relato extraído da “La Leyenda Dorada" – Edição española, Alianza Forma - vol. 2 - págs. 611/614


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