quarta-feira, 6 de julho de 2022

A PUREZA E A ORDEM POLÍTICA E SOCIAL

 


História de Pedro I e Eleonora

Após a primeira Cruzada, quando Jerusalém foi tomada pelos cristãos em 1099, estabeleceu-se no Oriente uma dinastia católica de reis provinda da França, muitos dos quais foram reis de Jerusalém.  O último reduto desta dinastia ficou estabelecido na ilha de Chipre, para onde se mudaram os reis depostos de Jerusalém pelos árabes.

Referida dinastia, da família Lusignan, reinou cerca de 300 anos em Chipre. Quando se deperecia o espírito de cruz e a Cavalaria se transformara em cortesã, reinava na ilha Pedro I. Foi coroado em Santa Sofia de Nicósia no ano 1358, dois anos depois novamente "coroado"  (ato simbólico, pois a cidade estava em poder dos mouros) como rei de Jerusalém. Casou-se com a princesa da Catalunha chamada Eleonora, do reino de Aragão.

Muito católico ainda, o rei decidiu reavivar o espírito das Cruzadas e resolveu viajar para a Europa com o objetivo de convencer os príncipes cristãos da necessidade de novas investidas contra os mouros. A 24 de outubro de 1362 embarca, então, levando consigo seus principais cavaleiros e, em vez da rainha, levava apenas uma camisola sua como tesouro e lembrança de sua figura.

Os cronistas dizem que o rei "amava a rainha Eleonora de acordo com os mandamentos divinos".  Por isto, ao partir para a Europa, demonstrando já está possuído do romantismo fátuo da Renascença, ordenou a seu camareiro que pegasse uma camisola da rainha e a colocasse junto dele quando preparasse sua cama para dormir à noite. Desse modo ficaria o rei abraçado à camisola da rainha enquanto dormia.  Estranha forma de manifestar seu amor "de acordo com os mandamentos divinos"...

Na Europa, encontrou-se com diversos príncipes e reis, mas havia uma espécie de obstinação cega contra qualquer projeto de uma Cruzada. A única cruzada que os atraía era para lutarem entre si em suas guerras de fronteiras e de questões dinásticas. Em todos os lugares em que passava, Dom Pedro I era recebido com danças, torneios e banquetes, cada príncipe ou soberano desdobrando-se em cortesias.  Mas em nada encontrava ele o espírito de cruz, de amor a Deus. Os prazeres da vida começavam a dominar a vida dos príncipes. Visitou a França, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha, sendo que nesta percorreu a Bavária, a Saxônia, a Boêmia e a Áustria. Por toda parte era cumulado de presentes e retribuía sempre da mesma forma.

Apesar de tanta indiferença ao espírito guerreiro e de cruz, o rei ainda conseguiu arregimentar 115 naus e cerca de 10 mil homens para a sua Cruzada. Sua primeira investida foi contra a cidade de Alexandria, conquistada com facilidade. Como já não predominava nestes cruzados o espírito de cruz e de amor a Deus, a cidade foi objeto de pilhagens e de saques desenfreados. Os cronistas dizem que "no entanto, a inutilidade da tomada da cidade - abandonada imediatamente - já revela a alteração do espírito cavalheiresco, o feito gratuito ao qual de fato se entregaram Pedro e seus companheiros".

O demônio da luxúria

Pedro I voltaria novamente à Europa, novamente sem a esposa. Ao que parece o amor platônico do casal continuava vivo, pois o rei estava levando a mesma camisola consigo. Foi recebido em Roma, Treviso e Florença com as maiores homenagens.  Porém más notícias chegaram aos ouvidos da rainha.

Um cronista assim descreve o que houve:

"Como sabeis, o demônio da luxúria que atormenta o mundo inteiro, seduziu o bom rei, fazendo-o cair em pecado com uma dama nobre, chamada Joana Laleman, viúva do senhor João de Montolif, senhor de Khulu (na região de Pafo), e ele deixou-a grávida de oito meses". Como o rei fora pela segunda vez ao Ocidente, lá se demorando muito, a rainha mandou chamar Joana para sua corte, e esta aceitou o convite. Aqui começa o pior drama da família real.

Assim que a cortesã chega à corte de Eleonora, esta dirige-lhe estas palavras:  "Péssima cortesã, roubaste meu marido!"  A nobre dama calou-se, sentindo-se culpada, e também em respeito pela rainha.  Eleonora deu, então, ordem a suas servas para que a jogassem no chão; em seguida, trouxeram um grande almofariz de mármore, que elas colocaram sobre seu ventre e com o qual moeram várias coisas e uma medida de sal para fazê-la abortar.

Apesar de tanta violência e lhe haver torturado o dia inteiro, a criança continuava viva no ventre da mãe.  A rainha, vendo inúteis seus esforços, ordena que a escondessem numa casa até o dia seguinte. Ao amanhecer, ordenou que a trouxessem à sua presença novamente. Nova cessão de tortura para provocar o aborto da criança, novamente sem êxito. Utilizaram de todos os recursos, desde ervas e drogas, coisas ensinadas por feiticeiras e parteiras.  Por um desígnio de Deus, a criança continuava viva dentro do ventre da mãe. Estando sob o completo domínio de Eleonora, a miserável cortesã foi obrigada a ficar reclusa numa casa até conceber o filho.

Quando a criança nasceu, levaram-na e entregaram-na à rainha, e nunca se soube o que foi feito dela. Em seguida, movida por um ódio passional, mandou que trouxessem Joana à sua presença, e ordenou em seguida que a jogassem numa prisão subterrânea, ainda ensangüentada, onde sofreu tudo tipo de maus-tratos. No entanto, o capitão do lugar onde estava presa Joana mudou, sendo substituído por Hugo d'Anathiaume, que era aparentado dela. Em segredo, Hugo tratou de arrumar o fosso subterrâneo onde a infeliz fora jogada. Deu-lhe lençóis para dormir, tratou-a bem, servindo-lhe comida e bebida.

Enquanto estes fatos ocorriam em Chipre, Pedro I ainda permanecia em seu périplo pela Europa. Apesar de Eleonora dominar a situação, não conseguiu evitar que seu esposo tomasse conhecimento do que ocorria. Inconformado, o rei escreveu uma carta à rainha, onde dizia: "Fiquei sabendo das maldades que fizestes à minha muito querida dama Joana Laleman. Por isso anuncio-te que, se, com a ajuda de Deus, eu voltar a Chipre, irei te fazer tanto mal que todos estremecerão. Assim, antes que eu volte, faz todo o mal que puderes".

Temerosa, Eleonora mandou soltar a prisioneira, obrigando-a, entretanto, a ficar reclusa num convento de Santa Clara.

Mas o rei Pedro I continuava sendo dominado pelo demônio da luxúria. Ainda na Europa arranjou outra amante, chamada Echive de ShavelZion, mulher do senhor Grenier, "o Pequeno", e como dama era casada. Neste caso, Eleonora nada poderia fazer contra ela, pois tinha a proteção do marido.  O demônio da luxúria consegue fazer com que Pedro cometesse agora um pecado maior, o do adultério duplo.

Um cronista da época comenta que o rei, quando levava em suas viagens apenas a camisola de sua esposa, já demonstrava estar dominado pela luxúria. E que após o primeiro pecado, cometido com uma viúva, não era de se estranhar que cometesse tantos outros com outras cortesãs dissolutas, como este último com uma mulher casada.

A desgraça se abate sobre a família real

Enquanto o rei se consumia em pecados de luxúria na Europa, a rainha procurava sobrepujá-lo e cometer pecados piores. Assim, ela também resolveu  amasiar-se a outro homem. Seus parentes comunicaram o fato ao rei através de uma carta. A partir daí foi que Pedro mandou que seu camareiro retirasse a camisola de seu quatro, com qual já se acostumara a dormir. Como aquele nobre senhor não mais nutria em seu coração sentimentos cristãos de caridade, de bondade e de amor a Deus, passou-se em sua alma terrível transformação, a qual impressionou vivamente a seu círculo de amizades. Ficou macambúzio, triste e melancólico, fechado em si mesmo. Tal estado de alma influenciou  vivamente seu comportamento e suas decisões.

Determinado apenas a se vingar daquilo que supunha ser uma traição,  sua cólera caiu sobre todos os que imaginava ter culpa de suas misérias morais. Para aquele que lhe traiu com sua esposa, conseguiu mandar que fosse aprisionado num castelo até morrer de fome. A rainha, sentindo-se incapaz de enfrentá-lo, foge de seu furor. Sabia agora que seu antigo amoroso esposo a traía desonrando todas as pequenas e grandes damas.

Mandou construir uma torre e rodeá-la de redutos fortes com fossos. Sentia a necessidade de se proteger contra a fúria do rei. Os cavaleiros que eram de seu círculo de amizade, alguns familiares seus, desconfiavam de que o rei quisesse mandar prendê-la. A partir deste momento começaram a ocorrer atos de demência de ambas as partes.

Segundo conta o cronista Maharias, "começou a brotar a árvore do ódio. Os cavaleiros da corte iriam reunir-se e dirigir-se a dois irmãos do rei. Desde o seu retorno o rei tornou-se tão soberbo que traiu seus juramentos devido ao ódio que alimentava..."  Em vão, um de seus próximos, o almirante João de Monsori, tentou fazer o rei ponderar e depois acalmar os barões que haviam ido à igreja de São Jorge dos Potros, que tramavam nada menos que a morte de Pedro I".

Intrigas, calúnias, injúrias, mortes, traições e guerras seguiram-se até à completa extinção da dinastia dos Lusignanem Chipre, cedendo lugar à invasão turca que alguns anos mais tarde retomaram a ilha. Como se vê pelos fatos acima, se o casal fosse fiel cumpridor dos deveres cristãos e tivessem praticado as virtudes da caridade, sobretudo da castidade matrimonial, teriam evitado não só o desmoronamento de sua família e da dinastia, mas até mesmo de todo o seu povo.  Se os turcos vieram a se apossar de Chipre foi por castigo de Deus por causa desta apostasia.

Pedro I foi assassinado numa cena selvagem,  assim lamentada pela escritora francesa ReginePernoud: "Cena selvagem, por maiores que fossem os erros de  Pedro, e sem precedentes, pois em vão se procura o exemplo de um regicídio nos anais do Ocidente na época feudal".[1]

 



[1] Dados extraídos do livro "A Mulher nos Tempos das Cruzadas" - de RéginePernoud - Papirus Editora - págs. 278/288.


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