O tema acima nos veio à mente a propósito das
inúmeras medidas, todas de caráter socialista ou socializantes, que os governos
europeus vêm tomando nos últimos dias a fim de superar a crise econômica e
financeira que lhes assalta até o momento. Essa crise é decorrente de um
amontoado de leis que dão ao Estado prerrogativas cada vez mais absorventes de
toda a sociedade. Para comprovar que o socialismo está na base desta crise,
basta lembrarmos que as principais nações que a sofrem têm forte influência (ou
são governadas) por partidos socialistas (No caso, especialmente a Espanha e a
Grécia: a primeira, vítima de vários anos de domínio do PS, e a última que é
ainda governada por eles). A idéia do “Estado Previdenciário”, muito cara ao PS
europeu, está levando aqueles países à falência... O problema da guerra entre a
Ucrânia e a Rússia é lembrado como um dos principais fatores do acirramento
dessa crise nos últimos dias, mas ela seria menos intensa e maléfica se leis
socialistas não vigorassem nos países europeus.
E a mentalidade que domina a Europa está
bastante disseminada em todas as outras nações do mundo. É muito comum nos dias
atuais a ideia de que o Governo, ou o Estado, deve resolver todos os problemas
sociais. Com base nessa premissa, todas, ou quase todas, as constituições
modernas elegem o Estado como senhor absoluto das vidas dos cidadãos. Nessas
constituições consta a consigna “compete ao Estado”, seguida de atribuições
verdadeiramente extrapolativas das funções de um regime político ou de um
Estado organizado. “Compete ao
Estado...”, dizem, resolver todos os problemas de saúde, de educação, de
trabalho, enfim, tudo o que diz respeito ao bem estar da população. E chega a
tal ponto que o programa paradigmático dos políticos modernos consta de metas
utópicas e até demagógicas, como alguns deles que pretendem, por exemplo,
erradicar a pobreza ou a miséria.
Para que se entenda como esta ideia está
enraizada em nossa população, vamos analisar o texto abaixo, extraído de uma
obra de Amélia Rodrigues[1]. Trata-se de um fato tirado do conto “Mestra e
Mãe”, no qual ela mostra uma personagem como modelo de exemplar professora, uma
verdadeira “mãe” nos cuidados com suas pupilas. O debate abaixo surgiu por
ocasião da construção da escola do lugarejo imaginado pela escritora, quando a
Autora pôs em destaque o choque entre duas mentalidades: a estatólatra[2] (de um comerciante do
lugar), que julga o Estado como pairando
superior a todos os cidadãos, e a da sociedade orgânica (defendida pelo pároco,
que representa a voz da Igreja).
O pároco chama-se Padre Martins, e o
comerciante Sr. Botelho.
“Quando
se fez encomenda de vidraças para as janelas ao Sr. Botelho, que sempre andava
em viagens para a capital, saiu-se ele com uma observação: - que deviam fazer
economias. Vidraças era luxo inteiramente dispensável.
O padre
Martins franzia a testa. O Sr. Botelho pareceu-lhe pequeno, do tamanho de um
mosquito, com aquela avareza.
- Não é
luxo, meu caro amigo. Diga-me o que há de fazer durante as aulas, quando a
chuva açoitar? Ou queremos escola ou não a queremos. Se queremos, que seja tão
completa quanto nos for possível. Ou
então não façamos nada. Que diria o Sr. de um alfaiate que lhe encurtasse as
mangas ao casaco para poupar-lhe um pedaço de pano? Que era idiota, sem dúvida
nenhuma. E eu ainda tenho planos. Há de ver, se Deus nos der vida e saúde, como
isto irá ficando bonito pouco a pouco.
- Mas o
que estamos fazendo já é bastante, é mesmo demasiado para escola de aldeia.
-
Escola de aldeia! Ora, valha-nos Deus. Então as crianças da aldeia valem menos
que as da cidade? Os sertanejos não têm os mesmos deveres a cumprir, reclama-se
menos deles que dos outros? Não. Portanto, as exigências do ensino devem ser
igualmente atendidas em todos os lugares, tanto quanto isso for possível. É da
mais elementar justiça.
- Sim,
quando o governo é quem cuida dele . Aqui o caso é outro. Que o estado faça e
deva fazer liberalidades: a iniciativa privada não é obrigada a tanto.
Já não
era a primeira vez que o Sr. Botelho se manifestava contra o que chamava – os
desperdícios do padre Martins. Este passou a mão pela cabeleira branca, sinal
nele de que precisava apelar para a paciência.
-
Diante do serviço da pátria, Sr. Botelho, tanta obrigação tem o governo como o
cidadão, e quando o cidadão pode mais deve fazer mais. Ainda mesmo – vou mais
longe – ainda mesmo que eu saiba que o governo pode e não quer, se estiver ao
meu alcance o melhoramento exigido devo fazê-lo, devo tentá-lo, sob pena de não
ser patriota. Uma comparação. Se uma mulher desnaturada abandonar o filhinho na
estrada, deverá o Sr. deixá-lo morrer lá, porque a mãe, que era a única obrigada
a criá-lo, o desampara? Com certeza não. Pois é o mesmo, na minha humilde
opinião. Quem nada pode fazer não é obrigado a coisa alguma, mas quem pode,
deve contribuir no limite de suas forças para o bem geral, ou então não é digno
do nome de cidadão. Será um parasita que só aproveita e nada produz.
- Os
particulares pagam impostos para ter escolas e etc., Sr. Cura. Logo, já fizeram
o seu dever, produzem, e terão somente que exigir.
- Isto
é um sofisma anti-patriótico. A renda do país não chega para prover todas as
necessidades do ensino, sabemos disso; e, porque o rico paga um imposto, deve
cruzar os braços indiferente, deve passar descuidoso, aqui ou acolá, pelas
escolas paupérrimas, desprovidas de tudo, as escolas, os ninhos dos cidadãos
futuros, - donde sairia uma geração nova de brasileiros dignos de sua pátria se
as elevassem à altura de sua missão, - esperando que o governo faça tudo?...
Não, meu amigo, isso não é amar o Brasil! Imagine que cada ricaço protegia a
escola de sua freguesia, que se interessava pelo progresso dela, que dotava-a
de melhoramentos... Uma coisa belíssima! Daqui a dez anos estaria mudada a face
do país.
O Sr.
Botelho não ficou convencido. Vão lá convencer a coruja a que adeje de dia
pelas cumeadas brilhantes das montanhas! O Sr. Botelho era um egoísta. Só
olhava para dentro do bolso. Ele, sua família e acabou-se. Como por vaidade ou
para não fazer figura feia tinha dado alguma coisa para a edificação da escola,
receava que a despesa fosse longe e que se visse obrigado a desembolsar ainda.
Porém
não teve remédio senão aceitar a encomenda das vidraças, com intenção feita de
cobrar mais do que lhe custassem. E o Sr. Botelho era um homem bem apessoado,
bonito, olhar altivo e seguro, que não tinha cara de velhaco e passava por
homem de bem!”
Como se viu acima, a escritora caracterizou
bem o homem fanático pela supremacia do Estado sobre o indivíduo, verdadeiro
estatólatra. O Sr. Botelho é um comerciante, um homem que só pensa em si, no
dinheiro, um sujeito securitário que não quer dar do que é seu para ajudar a
comunidade onde vive (a não ser o suficiente para viver) – para ele, seu
imposto deve bastar para o Estado resolver tudo, como num passe de mágica! Eis
a mentalidade do homem moderno... que está resumida nessa frase do comerciante:
“Os particulares pagam impostos para ter
escolas e etc., Sr. Cura. Logo, já fizeram o seu dever, produzem, e terão
somente que exigir”.
Com base neste pensamento, vamos exigir que o governo não somente construa escolas, mas também hospitais, creches, transportes, estradas, ruas, esgotos sanitários, enfim, tudo aquilo que se exige para vivermos em sociedade. E, com base nesta obrigatoriedade do Estado provir a tudo, cruzemos os braços e esperemos que as providências sejam tomadas! E isso incentiva a esquerda impor seus programas de controle social sobre toda a sociedade, além de leis antinaturais e criminosas como as do aborto e tantas outras lesivas aos interesses sociais, mas alegadas como protetivas da sociedade.
O Princípio de Subsidiariedade
Não é essa a filosofia da verdadeira
convivência política e social. O princípio defendido pela Igreja chama-se
“Princípio de Subsidiariedade”, pelo qual o governo só deve intervir onde o
cidadão, seja por si mesmo ou através de sua família e de suas organizações
sociais, não puder realizar. O governo subsidia, auxilia, socorre, é elemento
suplementar e organizador da sociedade, e não o único e exclusivo responsável
pela solução dos problemas sociais. Foi este erro que gerou o estado socialista,
absorvente e que suprimiu as liberdades individuais no decorrer do século
passado. É o mesmo erro que está levando a Europa para a bancarrota
generalizada, junto à qual irão os Estados Unidos da América e todo o resto do
mundo civilizado se não forem tomadas medidas que façam com que o Estado
intervenha menos e deixe a sociedade por si mesma solucionar seus problemas.
Este princípio (da subsidiariedade do Estado)
foi exposto na Encíclica “Quadragésimo Anno”, do Papa Pio XI (de 15.5.1931), da
seguinte forma:
“...assim, como é injusto subtrair aos indivíduos o que
eles podem realizar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à
coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o
que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave
dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua
ação é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los.
“...Persuadam-se todos os que governam de quanto mais
perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo este
princípio da função “supletiva” dos poderes públicos, tanto maior influência e
autoridades terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação”.
A mesma doutrina foi defendida por Pio XII:
“...Sua função [do Estado], sua magnífica função é, pelo
contrário, favorecer, auxiliar, promover a íntima coalizão, a cooperação ativa
no sentido de uma unidade mais elevada de membros que, ao mesmo tempo que
respeitam sua subordinação ao fim do Estado, provêm do melhor modo ao bem de
toda a comunidade, precisamente na medida em que conservam e desenvolvem seu
caráter particular e natural. Nem o indivíduo, nem a família devem ser
absorvidos pelo Estado. Cada um conserva e deve conservar a própria liberdade
de movimentos, desde que ela não crie o risco de causar prejuízo ao bem comum.[3]
[1] Notável escritora e dedicada educadora católica, nascida a 26 de maio de 1861 na localidade chamada Oliveira dos Campinhos, na época pertencente ao município de Santo Amaro, Bahia, e falecida a 22.8.1926 em Salvador(BA).
[2] “Estatolatria” – neologismo surgido recentemente: veneração, adoração pelo poder do Estado.
[3] Discurso ao Congresso Internacional das Ciências Administrativas. 5.8.1950.
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