O mundo tem a sua formosura na sua variedade, porque
se ele não fora vá-rio, não fora formoso: daqui nasce aquela grande
inconstância com que o mundo reparte ordinariamente as suas felicidades. Que
esta conseqüência tenha lugar nos mundanos, seja embora; porque na sua adoração
podem ser a sua desculpa: mas que tenha também lugar no filho de Deus e na
Virgem Santíssima, que a golfo de Cristo se ver adorado: “Venimus adorare eum”,
se siga a pena de se ver fu-gido: “Fugem Aegyptum”. E que à alegria de se ver
Maria venerada por Rainha do Céu, se siga a pena de se ver obrigada, das
perseguições de Herodes a fugir com o Santíssimo Filho, é muito para admirar.
Que sendo a Providência Divina tão grande, que é infinita; disponha que Maria
se veja obrigada a se desterrar; e que o Filho seja obrigado a fugir? Que as
luzes, e mais as sombras sejam os mesmos ditames e corram a mesma fortuna,
grande maravilha! Mas alcançando-se o mistério, cessará logo o espanto. Cristo
e Maria eram luzes, era Cristo Sol: “Crietur nobis Sol justitiae”; era Maria
luz: porque era Lua: “Pulchra ut luna”. Justo era que Maria com a ocasião desta
pena, fosse luzir no desterro com o seu exemplo; e que Cristo, fugindo à
perseguição de Herodes, fosse luzir no Egito com o seu amparo, como diz
Crisóstomo. Esta é a natureza das luzes. Os seus resplendores são as suas
influências. Os Astros em tanto luzem, em quanto aproveitam, que senão
aproveitaram, não luziram; e assim vão Maria e seu Santíssimo Filho desterrados
para luzirem e para espalharem no Egito os resplendores de suas divinas
virtudes. E dispunha a Divina Providência, que as sagradas imagens de que compõem
este soberano mistério, sejam levados pela devoção católica ao novo mundo da
América para nele como lá se viu no Egito, arruinar os ídolos daquela Gentilidade
bárbara e inculta, ilustrando-as com suas luzes para o inflamarem e guiarem aos
caminhos da verdadeira Religião, como aqui veremos.
Pouco depois de se dar princípio à Cidade de São
Salvador, ou Bahia de todos os Santos, foi isto pelos anos de 1560 sendo
Governador Mem de Sá, se erigiu uma Ermida no Sertão, ou alguma cousa distante
da nova povoação; aonde uns devotos, não sem destino do Céu (porque havia
escolhido aquele lugar para Palácio), colocaram as imagens de Jesus, Maria e
José. Imagens de vulto formadas de madeira, o menino, e São José com seus
bordões. Era esta Ermida feita de tábuas e o teto coberto de folhas de palma. O
sítio desmatá-lo-iam; mas afrouxando a devoção, tornou a crescer o mato; e
assim era muito infestada de animais ferozes e peçonhentos, com cobras jibóias
ou de veados muito grandes, jacarés e outros que saíam das lagoas que lhe
ficavam vizinhas. E, ou fosse que se acabasse de todo a devoção, ou que o temor
de cair dos dentes daquelas feras cruéis e medonhas, fez que se acabasse
totalmente o ir a venerar a Senhora à sua Ermida. E assim se perdeu a devoção;
e quando algumas pessoas (se iam lá) levavam armas de fogo para se evitar
qualquer perigo.
Pelos anos de 1567, sendo ainda Governador o referido
Mem de Sá, se diz por tradição comum, que fora um homem (ou Nossa Senhora lhe
inspirou que lá fosse). Ia este a cavalo para aquela parte e vendo Ermida, ou
casa de palha, perguntou a uns negros o que aquilo era, e eles lhe responderam:
era a casa de Nossa Senhora do Desterro; mas que se não podia lá ir, porque era
aquele sítio muito reparo o homem, no que os presto referiram; e assim se
resolveu a entrar na Ermida e ir fazer oração à Senhora do Desterro. Foi
chegando, se apeou e entrou dentro a encomendar-se à Senhora.
Depois de fazer a sua oração, saiu para fora e
assentou-se à porta da Ermida, e ali encostado, dizem, que adormeceu. Despertou
logo todo sobressaltado; porque se viu cingido e cercado de uma grande jibóia,
ou securiubam (1) a qual já fazia diligência pelo tragar. Neste tempo, e neste
perigo, invocou em seu favor à Senhora do Desterro, e com ela animado puxou de
ma navalha, que também dispôs Deus que a levasse consigo; tal golpe e com tal
sucesso lhe deu pela garganta que a degolou e caiu morta aquela fera e animal
espantoso. Reconhecendo logo de onde lhe viera o socorro, entrou dentro da
Ermida a dar graças à Senhora, que o havia livrado da morte. E depois saindo
fora, carregou como pôde no cavalo aquele medonho animal, e com ele se foi à
praça da Cidade, apregoando a grande maravilha e o favor que a Senhora lhe
fizera. Tem aquele animal a pele tão dura, que dizem por encarecimento que tem
sete couros. E é esta tão dura que parece impenetrável, porque para o abrirem
não bastavam os machados. E aqui se viu o mais o portentoso do milagre, que
sendo aquela pele tão dura e tão impenetrável , a fez o favor de Maria
Santíssima tão e tão branda no pescoço que com uma navalhada pôde aquele homem
degolar aquela grande fera. Esfolaram-na e depois encheram a pele de algodão, e
com a navalhinha na boca a foram oferecer à Senhora do Desterro, em memória do
benefício que fizera em livrar da morte aquele seu devoto.
Com este grande milagre se ascendeu o povo em
fervorosa devoção para com a Senhora do Desterro, e tanto que o mesmo
Governador Mem de Sá pediu a todos os moradores que tinham pretos, aos que
tinham seis, que dessem três, e aos que tinham quatro, que dessem dois, e assim
aos mais, para irem roçar todo aquele mato, que estava em o circuito da Ermida da
Senhora. Limpa toda a terra até o sítio da casa da Senhora, trataram de lhe
edificar outra mais grande e capaz de pedra e cal, e alevantar casas junto a
ela. E o mesmo Governador mandou ali edificar uma casa nobre, ou palácio, para
sua vivenda. E depois se foram fazendo tantas casas, que a Cidade se estendeu
até aquele sítio. O mesmo Governador desejou logo, que naquele mesmo sítio se
edificasse um Convento para religiosas, que perpetuamente louvassem a Nosso
Senhor e a Nossa Senhora, e fez as dili-gências possíveis para que estes seus
desejos se efetuassem. E porque ele o não pôde conseguir em sua vida, o
recomendou à Câmara daquela Cidade. E tão certo estava de que a Senhora do
Desterro havia de ser servida naquele lugar por religiosas, que na sua morte deixou
ao Padre Reitor do Colégio da Companhia (2) daquela Cidade mil cruzados em
depósito, para que assim que chegassem as religiosas a tomar posse daquela casa
lhes entregasse para a ceia daquele dia; como em efeito o executou, indo logo
entregá-los ás religiosas. E reparando elas na aceitação, o Padre Reitor as
certificou, de que aquele dinheiro era seu, e que se lhe havia deixado em
legado para quando elas chegassem.
Isto mesmo testemunha ainda hoje uma companheira das
Madres Fundadoras, que vive no Convento de Santa Clara da Cidade de Évora (de
onde saíram para fundar) neste presente ano de 1705, a qual disse que estes mil
cruzados depositaram logo as Madres Fundadoras, para se dar com ele princípio a
obra do seu Convento. O ano em que as Fundadoras saíram do seu Convento de
Évora, foi o de 1676 em oito de novembro. E tomaram posse do Convento novo na
Cidade da Bahia em nove de março de 1677. As Fundadoras eram a Madre Soror
Margarida da Coluna, que ia por Abadessa, a Madre Soror Luiza de São José por
Vigária, as outras duas eram a Madre Soror Maria de São Raimundo e Soror Jerônima
do Presépio. E teve muito de mistério, que todas quatro voltaram a Portugal e
foram para o seu Convento, aonde se restituíram todas em oito de novembro de
1686. Gastando dez anos justos e completos nesta obra, que podíamos dizer fora
profetizada por aquele pio e devoto Governador Mem de Sá. Esta casa da Senhora
do Desterro é juntamente paróquia daquele distrito; se o era já quando as
religiosas tomaram posse não me constou; mas já o devia ser. A imagem da Senhora
é de talha estofada, e por ornato lhe põem um rico manto, e assim a Senhora
como São José; e o soberano menino se vem com varas de prata por bordões, a sua
estatura da Senhora são cinco palmos. Obrou sempre, e obra muitos milagres. A
sua festividade se faz sempre com grandeza em dia de Reis, na qual se acaba o
seu septenário.
NOTAS: 1) Tudo
indica que o autor quer se referir à cobra sucuri.
2) Refere-se à Companhia de Jesus.
(Transcrito do livro “Santuário Mariano e História das
Imagens Milagrosas de Nossa Senhora” – de Frei Agostinho de Santa Maria – Em
Lisboa – 1722- págs. 28/30).
Nota: O trabalho de Frei Agostinho (“Santuário Mariano...”) foi feito sob encomenda do Bispo, Dom Sebastião Monteiro da Vide, que viu a necessidade de documentar todas as imagens milagrosas de Nossa Senhora que haviam na Bahia.
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