Temos aqui um texto tirado da “Carta Circular
aos Amigos da Cruz”, no qual São Luís Grignion, com uma linguagem inflamada,
inculca mais especialmente a ideia das tribulações, por ver quanto o homem é
tendente a fugir delas.
[24] Não
vos ufanais, caros amigos da Cruz, de serdes amigos de Deus ou de tal poderdes
vos tornar? Resolvei, pois, beber o cálice que é preciso necessariamente beber
para se tornar amigo de Deus. “Calicem Domini biberunt et amici Dei facti sunt”[1]
O bem-amado Benjamin teve o cálice e seus outros irmãos tiveram apenas o
frumento (cf Gn 44, 1-12). O grande favorito de Jesus Cristo [São João
Evangelista], teve seu coração, subiu o Calvário e bebeu o cálice. “Potestis
bibere calicem?”[2] É bom desejar a glória de Deus, mas deseja-la
e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e extravagante;
“Nescitis quid petatis”[3]
“Per
multas tribulationes oportet nos intrare in Regnum Dei (At 14, 21): é preciso,
oportet, é necessário, é coisa indispensável, é preciso que entremos no Reino
dos Céus por meio de muitas cruzes e tribulações.
[25]
Gloriai-vos com razão de ser filhos de Deus.
Gloriai-vos, pois, das chicotadas que este bom Pai vos deu e há de
dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia os seus filhos.
Como a idéia de um Deus que chicoteia seus
filhos é destoante e pouco afeita à falsa piedade sentimental! Mas Ele chicoteia por meio das provações e
das tribulações. Evidentemente temos que nos resignar a essa idéia de que são
presentes dos melhores quando nos faz sofrer. Devemos permitir que Deus nos
castigue, flagele, exatamente por ser o que convém aos homens.
Havia na linguagem portuguesa antiga uma
expressão muito bonita que me lembro de ainda ter ouvido as beatas da Igreja do
Coração de Jesus usarem. Então, uma velha conversando com outra diz: “Deus tem
me visitado...” Eu era ainda menino e pensava: “Será que ela teve uma visão?”
Mas a expressão ficou-me na memória e indica uma coisa muito bonita: cada dor
que nos vem é uma visita de Deus. Ou então, Ele nos visitou por meio de alguém
que nos fez sofrer. Esta é a visita de Deus; devemos recebe-la de boa vontade,
abrir a porta para ela, amá-la, manter a nossa alma em alegria enquanto durar
essa visita.
Essa idéia de que Deus visita alguém nós a
encontramos no Antigo Testamento, quando das visitas que o Todo-Poderoso faz ao
povo de Israel por meio dos profetas. Mas há outra coisa que é essa visita de
Deus pelo sofrimento. Então, a expressão me parece muito bonita.
Se não
sois do número de seus filhos bem-amado, sois – oh! que desgraça,, que golpe fulminante! -, como o diz Santo
Agostinho, dos números dos réprobos. Aquele que não geme neste mundo, como
peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro como cidadão do Céu, diz o
mesmo Santo Agostinho. Se Deus Pai não vos enviar, de tempos em tempos, algumas
boas cruzes, é que já não Se preocupa convosco, está irado contra vós, olha-vos
tão somente como a um estrangeiro fora de sua casa e de sua proteção, ou como a
um filho bastardo que, não merecendo sua proteção na herança de seus pai, não
merece da parte d’Ele nem cuidados nem correção.
No Antigo Testamento acreditava-se que quando
uma pessoa sofria era por ter cometido algum pecado. Portanto, sobre o sofredor
recaía a suspeita de ser uma pessoa má. Pelo contrário, quem era feliz nesta
Terra considerava-se como sendo bom, porque Deus estava premiando as boas ações
que a pessoa tinha praticado.
Porém, aos poucos foi-se tornando mais
explícita no Antigo Testamento a revelação de que havia uma vida eterna. Com
isso, essa impostação foi-se modificando.
Já no Novo Testamento e encontramos a idéia
contrária: o homem sofredor é o amado por Deus, enquanto aquele que não sofre é
o ímpio a quem Deus afastou de Si.
Esse pensamento é muito importante, porque a
maior parte das pessoas têm admiração por quem não sofre e um certo desprezo
por quem padece. Essa é uma visão errada, pois quem é sofredor merece
admiração, mas aquele que não sofre nada merece desconfiança, ou em breve Deus
irá visita-lo com o sofrimento.
[26]
Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da Cruz é
desconhecido dos gentios, repelido pelos judeus e desprezado pelos hereges e
pelos maus católicos. É, porém, o grande mistério que deveis aprender na escola
de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender. Procurareis em
vão, em todas as academias da Antiguidade, um filósofo que o haja ensinado;
consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão Jesus Cristo
que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear este mistério.
Isto é bem verdade. Nós encontramos alguma
coisa histórica a respeito do sofrimento, mas é uma impostação diversa, uma
espécie de faquirismo. Não é tomar a Cruz como Nosso Senhor Jesus Cristo a
recebeu e, sobretudo, a graça para desejar a Cruz, pois sem a graça não se
compreende isso. É uma coisa toda
sobrenatural.
Tornai-vos
hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre,
e tereis todas as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente.
Este é um ponto fundamental para se entender
essa sabedoria. Quem tem horror ao sofrimento, o espírito desmortificado, não é
capaz de ter sabedoria. Pode participar de um curso sobre a sabedoria, fazer o
que quiser, não adianta. Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira
sabedoria. Vou dizer mais: toda forma de
aquisição intelectual ou de vitória moral, sem sofrimento, não tem valor
nenhum. A única coisa que dá a isso algum valor é exatamente a Cruz.
É a
Cruz a nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e
misteriosa, e nossa pedra filosofal que muda pela paciência os metais mais
grosseiros em metais preciosos, as dores mais agudas em delícias, as pobrezas
em riquezas, as humilhações mais profundas em glórias. Aquele dentre vós que
melhor sabe levar a sua cruz, mesmo que não conheça o A nem o B é o mais sábio
de todos.
Antigamente
se encontrava um estilo de velha senhora sofredora. Às vezes, casada com um
marido péssimo, colérico, que perdia a fortuna e o filho fazia coisas más.
Muitas delas eram beatas de igreja, mas com estilo diferente das beatas sentimentais. Eram mulheres
piedosas, que iam muito à igreja em dias de semana. Olhava-se para algumas
delas e via-se que possuíam verdadeiramente uma resignação, uma dignidade de
alma de chamar a atenção. Esse tipo de mulheres tinha sua respeitabilidade pelo
fato de serem sofredoras. Assim, procurava-se bordar a mulher com a idéia de
que ela deve sofrer, que habitualmente o casamento é um martírio, pois com
frequência os maridos são ruins. Isso não é uma coisa normal, embora seja
habitual. É justo que a mulher sofra com isso e ela deve aceitar esse
sofrimento. A condição dela é, dentro de casa, levar todas as cruzes para dar
ao lar a dignidade que a má conduta do marido não proporciona. Essa era a
impostação de espírito existente em um bom número de senhoras, antigamente.
Então essas senhoras tinham uma dignidade de
alma e uma elevação de vistas que excedia imensamente aos maridos. Eram elas
que davam ao lar um perfume moral, um recolhimento, um recato, uma atração de
que não se tem idéia mais hoje em dia. Mas é porque o espírito de sofrimento
desapareceu. O pressuposto da idéia errada é justamente de que a mulher não
deve mais sofrer, jogando de lado a Cruz de Jesus Cristo. Entretanto, o tipo
feminino anterior a isso era, às vezes, de comover de tanta dignidade.
Alguém me contou o caso de uma senhora de
minha geração que tinha um irmão sem-vergonha. Ambos eram solteiros. E ela
aguentou o irmão a vida inteira, sendo ele, ao que parece, desse tipo de homem
que chega bêbado em casa, derrubando objetos. De tanto beber, ele arruinou a
família completamente e acabou morrendo. Pouco antes de falecer, o irmão chamou
um criado muito fiel a ele e lhe disse: “Eu vou morrer. Logo após a minha
morte, a primeira coisa que você deve fazer é ir à casa de minha irmã,
ajoelhar-se diante dela e dizer-lhe que mandei agradecer tudo o que ela fez por
mim. E que eu até nem tenho palavras para agradecer tantos benefícios, e por
isso mandei você ajoelhar para prestar esse ato de gratidão”.
A atitude desse homem, esta sim, dá uma certa
esperança de que ele tenha se arrependido nos seus últimos instantes, e ainda
tenha tido um último perdão antes de morrer. Terá tido, então, a graça do
perdão obtida por uma das tais mulheres a quem os maridos sem-vergonha, antes
de morrer, pediam perdão, e os filhos, ao vê-la falecer, imploravam perdão
também e levavam, chorando, o caixão dela para o cemitério.
Não há
nada num ambiente que valha o tesouro da
presença de uma alma resignada a sofrer. Esse gênero de pessoas dá bons
conselhos. Pode até ser gente simples, sem experiência e, sendo a última da
família, os outros a ela se dirigem na hora de uma crise moral para pedir um
conselho. Almas assim são sempre, no fundo, as mais alegres do lar, e são elas
que consolam as outras pessoas da família.
Já vi gente nadando em felicidade e dinheiro
chorar junto desse tipo de pessoa, e pedir consolação. Esse é o fascínio, essa
é a influência sem nome, a ação prestigiosa da Cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo. É o tesouro das famílias. E porque acabou até isso, a família
praticamente morreu.
Queira ou não queira, quando a alma aceita
bem o sofrimento ela toma uma tal autoridade que se diria ser a pessoa
crucificada um outro Crucificado. Quer dizer, diante da pessoa que aceita o
sofrimento seriamente até o fim, os outros se alteram. Pode durar mais tempo ou
menos, mas eleva a alma a uma grandeza que lhe dá ima força divina, e exerce
uma influência sobre as almas que arrasta tudo.
Tome-se, por exemplo, um padre que seja
verdadeiramente um penitente, um homem que carrega a cruz do sacerdócio de um
modo sério. Pode ser o último padrezinho do interior, de batina já rota,
esmolambada. Ele entra num ambiente, sente-se ser um sacerdote que aceita
contente o papel de vítima. Podem rir dele e até mata-lo, ele dominou a situação.
Na alma que tenha aceito a sua própria cruz há qualquer coisa de divino que nos
leva a pensar o seguinte: o apostolado verdadeiramente vem do fato de que uma
alma resolve aceitar sofrer. Aí se prepara o campo para os melhores discursos,
as mais bonitas tiradas, as melhores coisas que sejam feitas. Mas é preciso que
se trate de uma alma crucificada.
Isso nós precisamos sempre lembrar. No Reino
de Maria, se não houver numerosas almas crucificadas, ele morre. Porque o
prestígio da Igreja e a força da Civilização Cristã vêm das almas que sofrem.
Tornai-vos
hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande
Mestre...
Escutai
o grande São Paulo que, ao voltar do terceiro céu onde conheceu mistérios
ocultos aos próprios Anjos, exclamava não saber e não querer pregar senão Jesus
Cristo crucificado.
Regozijai-vos,
pobre ignorante ou pobre mulher sem espírito e sem ciência: se souberdes sofrer
alegremente, sabereis mais que um doutor da Sorbonne, que não soube sofrer tão
bem quanto vós.
Podem imaginar o que era, naquela época, um
professor da Sorbonne e qual o desafio que uma coisa dessas representava! Era a
época em que os formados, já não digo os empossados no cargo, na maior parte
das cidades onde havia universidade, eram montados num animal, acompanhados
pelos parentes e toda a cidade em desfile. Vestidos de um traje de formatura,
de alguém que está por cima, o doutor passeando no meio de todo mundo. E um
membro da classe profissional era ainda muito mais. Chega a dizer que o pobre
ignorante é mais do que um doutor da Sorbonne...Se os doutores da Sorbonne
fosse levar a sério o que São Luís dizia, que injúria! É um desafio atirado ao
espírito mundano.
[27] –
Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por
causa disso! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados
de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário,
e os membros estariam no trono, cobertos de perfume? A cabeça não um
travesseiro para repousar, e os membros estariam delicadamente deitados entre
plumas e arminhos? Seria uma monstruosidade inaudita.
Não,
não, meus caros companheiros da cruz, não vos enganeis, estes cristãos que
vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados,
excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos, nem
verdadeiros membros de Jesus crucificado; faríamos injúria a essa cabeça
coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.
Ah, meu
Deus! Quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são
seus mais traiçoeiros perseguidores porque, enquanto fazem com a mão o sinal da
cruz, são de coração seus inimigos. Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se
viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não
espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, Cruz – porque é
necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça.
E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma coroa de
espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a
Jesus Cristo.
Isso deve ser visto como dito àquela gente de
um século que levou o “raffinement”[4]
o mais longe possível. E como merecido por eles por causa exatamente do sentido
de gozo desse “raffinement”. Era um
requinte que não vinha acompanhado de espírito de Cruz e, como resultado,
causava horror à Cruz verdadeira. E que, por isso mesmo, dava em decadência.
Cada vez mais, as modas iam sendo feitas apenas para o gozo da vida e perdendo
a pompa e a majestade, passando do majestoso para o raffiné, do raffiné ao
gracioso, do gracioso ao vulgar. Realmente, a decadência da civilização se deu,
no fundo, devido a esse excesso de moleza dentro da arte, da literatura, da
moda, da vida social.
Vemos, assim, em São Luís Maria Grignion de
Montfort uma homem que possivelmente não era um sociólogo, mas que percebia de
longe coisas que homens de seu tempo não sabiam ver. Por quê? Não por ser ele
muito inteligente, mas porque era um amigo da Cruz. A Cruz dá a possibilidade
de ver as coisas que os outros não sabem ver.
(Extraído de conferência de 23/09/1967)
(Transcrito da revista “Dr. Plínio”., edição
n. 234, setembro de 2017)
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