ÍNTIMA RELAÇÃO ENTRE COROMOTO
E FÁTIMA
A história de Nossa Senhora de Coromoto é
sumamente edificante e, para que se compreenda todo o seu alcance, farei algumas
considerações preliminares.
Durante o Concílio, em 1962, os membros de
nosso Movimento que estavam em Roma receberam de um bispo da Venezuela, da
Diocese de Guanare, onde está o Santuário Nacional desse país, estampas
representando Nossa Senhora de Coromoto.
A imagem chamou-me atenção, porque – embora
não tivesse grande valor artístico, no que diz respeito à execução material –
seu porte e a expressão do olhar tinham uma elevação régia, uma majestade
especial. E uma majestade com inteira consciência de sua grandeza, com muita
dignidade; e ao mesmo tempo sem nada de apropriativo, de fruitivo, de como quem
dissesse: “Aqui estou eu, sou extraordinária.” O olhar indica que seu
pensamento está posto em seres de algum modo superiores a Ela, os anjos, no Céu
ou no próprio Deus Nosso Senhor. É a imagem de uma Rainha, ao mesmo tempo
contemplativa e mística de primeira categoria, e que considera todas as coisas
da Terra através de altíssima luz. Por
causa disso, pus a estampa em minha carteira, e dali nunca mais retirei. Das
imagens de Nossa Senhora por mim conhecidas, essa é talvez uma das que mais me
falam à alma.
Embora eu já tivesse ouvido falar várias
vezes de Nossa Senhora de Coromoto, nunca soube de detalhes de sua história. Só
recentemente vim a conhecê-los, e tocou-me enormemente imaginar uma imagem tão
majestosa sendo o veículo para tanta misericórdia. Através dela se tem a
verdadeira idéia de majestade unida à misericórdia. É uma Rainha com fisionomia
extremamente elevada e nobre, com porte muito digno e olhar pairando nas mais
altas paragens do espírito, e ao mesmo tempo cheia de uma misericórdia
inefável. A misericórdia não é demagógica, vulgar, uma condescendência com o
pecado, uma afabilidade criminosa em relação ao mal, mas um ato de bondade generoso,
gratuito, de quem converte o vence o mal, que vem muito de cima, mas entra a
fundo e é capaz de toda espécie de regenerações.
Há um sacrossanto contraste entre a majestade
e a misericórdia. Não há verdadeira majestade sem misericórdia, nem verdadeira
misericórdia sem majestade.
A história do índio Coromoto, ao qual
apareceu a Santíssima Virgem, fez-me lembrar as aparições de Nossa Senhora a um
índio em Guadalupe, no México. A Mãe de Deus tratou-o com uma ternura especial,
uma bondade, como não se vê nas outras aparições – mesmo em Fátima, onde Ela se
manifestou tão condescendente e bondosa. Esse índio sentia tanta liberdade para
com Nossa Senhora que, em vez de chamá-la “minha Rainha”, tratava-A de “minha
filhinha”. E a Santíssima Virgem tomou tão bem esse tratamento, que uma
ampliação fotográfica recente da imagem de Guadalupe mostra que na pupila dos
olhos de Nossa Senhora está a figura do índio, tornando-o imortalizado aos
olhos d’Ela. Estar na menina dos olhos significa ser o centro da atenção, do
cuidado, e isto realizou-se ao pé da letra.
Tudo isso levou-me também a pensar a respeito
do que disse Santo Antonio Maria Claret, após assistir as últimas sessões do
Concílio Vaticano I, há cem anos atrás. Vendo, já naquela época, os sinais de
desagregação da Europa, afirmou querer morar na América, porque aqui
floresceriam santos maiores do que os surgidos na Europa. Essa afirmação me
pareceu extraordinária.
Há mais. Antes de ser confessor da Rainha da
Espanha, Isabel II, Santo Antonio Maria Claret tinha sido Arcebispo de Santiago
de Cuba, e saíra deste país por ser perseguido pelos inimigos da Igreja, apesar
de seu apostolado com a população do lugar, em favor da qual ele praticara
magníficos milagres. No navio que o conduzia, predisse o futuro próximo de
Cuba, sua separação da Espanha e submissão aos Estados Unidos. E apresentava
isso como uma série de apostasias e castigos. Naturalmente, uma apostasia causa
outra, e por fim se chegou à atual e miserável situação de Cuba.
Parecia-me curioso que ele, falando de Cuba
com tal energia e precisão, previra tanta santidade na América Latina. Isso
significava a presença de um grande perdão e uma imensa misericórdia, ao lado
do abismo representado pelo anúncio dessa severidade.
E, afinal, como a santidade tem sua origem,
sua causa primeira, numa misericórdia de Deus para conosco, eu achava muito
razoável que houvesse esse nexo entre a profecia de Santo Antonio Maria Claret,
de um lado, e de outro o fato de Maria Santíssima ter-Se manifestado tão
carinhosa, condescendente, em relação a esse índio do México. Nossa Senhora de
Guadalupe foi proclamada pela Santa Sé Patrona da América Latina e,
evidentemente, esse índio representava, para o olhar d’Ela, a América Latina
inteira, e todos nós somos simbolizados por esse índio. De certo modo, pode-se
dizer que cada um de nós está na menina dos olhos da imagem de Nossa Senhora de
Guadalupe.
Apesar da extrema
maldade do índio, Maria Santíssima manifesta sua inesgotável misericórdia
Essas considerações estavam reunidas em meu
espírito quando soube do fato ocorrido em Guanare, Venezuela, com o índio
Coromoto, em seus detalhes. Através destes, se vê que é impossível a um homem
levar mais longe a obstinação no mal, e inimaginável por nós que a Mãe de Deus
chegasse a extremo sua “obstinação” em
convertê-lo. Realmente é a última palavra em matéria de condescendência: depois
de o índio ter querido flechar e golpear Nossa Senhora, Ela fez um milagre,
deixando nas mãos dele um pergaminho com sua imagem, e depois o converteu! Não
se pode excogitar misericórdia mais excelsa, mais excelente, do que essa.
Alguém poderia observar que o pecado dos que
mataram Nosso Senhor Jesus Cristo foi um pecado maior do que o desse índio,
tentando agredir a Santíssima Virgem. Tudo quanto toca à Pessoa Divina de Nosso
Senhor Jesus Cristo ultrapassa qualquer dimensão e não pode ser comparado com
absolutamente nada. Porém é preciso considerar que em sua Paixão Jesus estava
na prostração, na humilhação própria à sua natureza humana. Nossa Senhora, em
Guanare, Se apresentou em visão, de forma esplendorosa, mostrando-Se superior a
tudo quanto o índio conhecia, e de uma maneira evidente, como Nosso Senhor não
fez com seus verdugos. Apesar disso, a maldade dele foi tão grande que tentou
agredi-La. Não afirmo ter sido isso mais grave do que o deicídio, mas, sob
certo aspecto, revela uma dureza de alma ainda maior. Pois bem, para esse
homem, a Mãe de Deus manifestou tanta bondade e misericórdia.
“À sua bondade
soberana ninguém resiste”
Que ensinamentos retiramos desse fato? Antes
de tudo, para Nossa Senhora a maldade humana não consegue opor obstáculos
decisivos. De um jeito ou de outro, se a Santíssima Virgem quer mesmo, e até o
fim, Ela acaba vencendo a maldade humana. Portanto, se em determinado momento
da História da Humanidade Nossa Senhora quiser praticar um ato de generosidade
excelso em relação a um homem, ou a uma série de homens, Ela poderá fazê-lo e
vencerá, porque à sua bondade soberana ninguém resiste.
A Santíssima Virgem é soberana em tudo,
inclusive em sua bondade. Querendo, Ela derruba todos os obstáculos, como
Rainha cheia de suavidade, de tal maneira que ume pessoa, liberta dos grilhões
do vício, dos apegos maus, realiza o verdadeiro livre arbítrio, o qual consiste
em se confiscado por Nossa Senhora. Trata-se de um verdadeiro confisco, porém a
Mãe de Deus quando confisca, liberta. Ela não cobre o indivíduo de algemas, mas
torna-se sua senhora, e ele torna-se senhor de suas más inclinações, de seus
vícios, de seus pecados, de tudo quanto impede que sua alma voe para o bem.
Essa é a própria substância da definição do livre arbítrio, segundo a Doutrina
Católica.
A misericórdia de
Nossa Senhora se estende aos povos e às instituições
Outra lição muito importante que decorre das
aparições da Virgem Maria ao índio Coromoto é a seguinte: se Nossa Senhora fez
isso com esse homem, não poderá realizá-lo com as pessoas de um continente, ou
de uma parcela da Humanidade, especialmente suscitada para ser d’Ela, e para
seu futuro reino? Maria Santíssima não tem o poder de provocar a conversão da
América Latina? Pobre América Latina, tão endurecida, opaca e apagada na Fé que
recebeu, na pureza e elevação dos costumes que já não possui; tão longe das
esperanças dos santos e dos missionários que vieram cá, para fazer um novo
reino de Deus, a fim de compensar, no balanço das coisas entre a Terra e o Céu,
o que a Santa Igreja estava perdendo com a apostasia protestante! Essa
conversão não ocorrerá de um momento para outro?
Por fim, voltamos nossos olhos para nosso
Movimento.
Vendo as coisas bem de frente, tendo Nossa
Senhora desígnios sobre nosso Movimento e sua atuação na América Latina, não é
bem verdade que o episódio de Coromoto, a graça desse perdão, que dulcifica
qualquer dureza e vence qualquer ingratidão, precisa começar dentro de casa? E
que devemos pedi-la para nós e para toda essa parte da Humanidade, aonde Nossa
Senhora quis fazer esse milagre extraordinário? E não é verdade também que,
apesar de todas as nossas fraquezas e infidelidades, temos razões
especialíssimas para confiar, e nunca devemos consentir num pensamento de desespero,
à vista de uma graça tão extraordinariamente grande?
Aqui está o ponto central da meditação a
respeito de Nossa Senhora de Coromoto, que visa mais especialmente nosso
Movimento – porque tem uma missão muito em ordem a isso – e, dentro dele, cada
um de nós. Mas essa meditação deve também ter em vista a América Latina, como
sendo especial protagonista do dia de amanhã, no Reino de Maria.
Coromoto e Fátima:
íntima relação
Finalmente, podemos nos perguntar qual a
relação de tudo isso com as profecias de Fátima. São os mistérios de Nossa
Senhora... A realização das promessas da Virgem de Fátima purificará e
preparará as almas para o Grand Retour
(*). Quando ele vier, receberemos a graça da misericórdia, da conversão
completa.
Com esta visualização, temos um grande
enriquecimento para o conjunto de nossas concepções sobre o futuro da História,
isto é, a idéia do Grand Retour fundada
num milagre extraordinário como foi o de Guanare. É um fato concreto que nos dá
uma esperança especial e nos explica emalgo como vai ser o Grand Retour.
Poder-se-ia objetar que não foram
apresentadas provas que demonstram a veracidade da história de Nossa Senhora de
Coromoto. A prova é: em Guanare está o pergaminho contendo a imagem, com base
na qual foi tirada essa estampa que estou comentando, colocada num belíssimo
relicário de ouro. Todo o povo, desde quando ocorreu o milagre, vai venerá-lo,
indicando assim que já naquele tempo se espalhou sua fama; foi, portanto,
admitido por todos os que conheciam aquele índio e sua família, que os fatos
relacionados à imagem e a eles eram reais. E essa versão e essa crença foram
conservadas através das gerações.
Mas, para mim, isso que poderia ser uma prova
histórica muito boa é de pouca importância. O importante é saber que Nossa
Senhora é assim, conforme nos ensina a Doutrina Católica. Portanto, ainda que
as aparições de Nossa Senhora de Coromoto não tivessem acontecido, elas são
reais na sua substância: a misericórdia de Maria Santíssima pode chegar até lá.
Se pedirmos, seremos atendidos.
E, para esse efeito, poderíamos fazer uso da
seguinte jaculatória: “Nossa Senhora de Coromoto, cuja misericórdia a dureza do
coração do índio pecador não conseguiu deter, tende pena de mim, entretanto tão
pecador e tão endurecido”.
(Plinio Corrêa de Oliveira, conferência de
16/7/72- Extraído da revista “Dr. Plínio” n. 139, de outubro de 2009, págs. 19/23)
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