Contrastando com a visão idílica de
certos autores, tanto humanistas ou renascentistas do passado como os modernos estruturalistas, a vida tribal na realidade nada mais
é do que um afundamento na promiscuidade, ocasionando todo tipo de imundícies e
doenças. Os índios do Maranhão, que chegaram a ser catequizados pelo Padre
Vieira, tiveram a vida tribal assim descrita por um biógrafo do missionário
italiano Gabriel Malagrida:
“Dificilmente
se conhece o tipo humano nos índios moradores destas regiões. Abrigam-se em
cavernas como as feras, vivem dispersos nos matos, e alimentam-se unicamente de
caças. Às vezes travam-se em cruéis pelejas, e então ai dos vencidos! Estes são
amarrados em postes e engordados algum tempo como sórdidos animais, e depois,
em horríveis banquetes, acompanhados de danças e de frenética gritaria, são
comidos pelos seus algozes” [1]
A descrição acima retrata tais
silvícolas mais de um século depois da chegada dos portugueses no Brasil. No
entanto, quando os jesuítas iniciaram a catequização a situação era mais ou
menos esta descrita pelo padre Cardim:
“Moravam os índios antes de sua conversão,
em aldeias, em umas “ocas” ou casas mui compridas, de duzentos, trezentos ou
quatrocentos palmos, e cinqüenta em largo...
...com as paredes de palha ou de taipa de mão, cobertas de “pindobas”...
...dentro delas vivem logo cento ou duzentas pessoas, cada casal em seu rancho,
sem repartimento nenhum, e moram duma parte a outra... ...e todos ficam como em comunidade, e
entrando na casa se vê quanto nela está, porque estão todos á vista uns dos
outros, sem repartição nem divisão...
Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam, outros choram, outros
comem, outros fazem farinha e vinhos, etc., e toda a casa arde em fogo...”[2]
Talvez não estejamos longe de ver o dia
em que algumas localidades modernas cheguem a tal estado, se continuar a se
propagar entre alguns o “ideal” de vida
comunitária. É lá que caminha o que se
chama de comunitarismo moderno.
A vida tribal não traz
doenças aos índios?
A afirmação de que a vida tribal não
atrai doenças tanto quanto a vida do civilizado, carece completamente de
fundamento. A realidade é bem outra, pois vivendo completamente despidos, sob
os efeitos do sol, da chuva e dos ventos, convivendo em cabanas sujas e sem o
mínimo cuidado de asseio, os silvícolas são muito mais susceptíveis de contrair
doenças do que o civilizado. A
“tokelau”, por exemplo, é uma doença típica do selvagem. Trata-se de uma
dermatose causada por cogumelos ou plantas onde os indígenas sem querer (ou
querendo) se esfregam nos matos, ou mesmo quando espremem os sumos delas para
curar suas enfermidades. Esta doença foi
relatada pela primeira vez pelo navegador inglês William Dampier em 1616;[3]
As doenças da vida selvagem começa nos
próprios pés dos índios, os quais, andando descalços são atacados pelos “bichos-de-pé”,
chamados naquela época por outros nomes como “tom” ou “tunga”. Alguns tinham os pés completamente deformados pela quantidade
excessiva daqueles bichinhos. E dos pés, passavam para a cabeça, atingindo os
olhos, como certas oftalmias causadas pela excessiva exposição à fumaça de suas
fogueiras, e também o couro cabeludo, em geral tão cheios de piolhos que
chegavam a causar feridas e sangramentos.
Doenças sexuais, fruto da
luxúria e sensualidade
As doenças mais degradantes eram as de
origem sexual, provenientes da excessiva promiscuidade e luxúria em que viviam.
São José de Anchieta fala de uma velha índia
que havia morrido “tendo corrupto
os órgãos secretos (esta era uma enfermidade, que é muito comum nestas mulheres
do Brasil, ainda nas virgens), exalava de si tão mau cheiro, que os mesmos seus
a desamparavam”. Tratava-se da índia Bartira, mulher de João Ramalho.
A doença que causou maior controvérsia
entre os estudiosos foi, na realidade, a sífilis, conhecida como “mal
americano” exatamente por supor-se que tenha se originado dos índios
americanos. Antes da descoberta das Américas esta doença não era conhecida na
Europa. O seu nome originou-se de “Syphilis”, o protagonista de um poema
renascentista de Girolamo Fracastoro, publicado pelo início do século XVI. A sífilis tomou diversos nomes pelos
primeiros cronistas que a descreveram, chamada inicialmente de “pian”, que era
como os aborígines a denominavam. O naturalista Guilherme Piso, que esteve no
Brasil com os holandeses em 1637, a denomina de “bouba”, afirmando que trata-se
do “mal da América” e aqui foi encontrado pelos portugueses. Angyone Costa nega que a “pian” seja a mesma sífilis, baseado em estudos
publicados pelos Drs. Chapot-Prevost, Austregésilo e Silva Araújo, mas não
transcreve as razões de tais estudiosos para contestar Guilherme Piso e outros.
Pode ser que não haja consenso entre os
estudiosos neste particular, mas o certo é que a primeira epidemia da doença se
deu no ano de 1495, portanto 3 anos após a primeira viagem de Colombo. Uma
teoria surgiu, parecendo plausível, que teriam sido os marinheiros de Colombo
(não foi possível evitar que alguns se contaminassem com as índias) que tenham
levado o vírus para a Europa no retorno de suas viagens. E a primeira epidemia surgiu exatamente em
Nápoles, uma região que deu muitos marinheiros para aquelas viagens.
Seria, portanto, a “pian” ou “bouba”,
a mesma sífilis, haja vista que a descrição dessas doenças se
assemelham. O padre Thevet a descreve como doença proveniente de certos abusos
relacionados aos excessos de contatos carnais entre homens e mulheres. A mesma
opinião é expressada por todos os cronistas da época. Jean de Léry é mais detalhado, embora
defenda a tese de que os índios sofrem menos os efeitos de tais doenças:
“Além
das febres e doenças comuns, às quais, em razão do clima saudável estão menos sujeitos do que nós, sofre os
nossos americanos de uma moléstia incurável denominada “pian” e que tem por
causa a luxúria, embora tenha visto meninos tão atacados dessa doença, que se
pareciam com variolosos. Transformando o mal em pústulas mais grossas do que o
polegar, que se espalham por todo o corpo, os indivíduos que o contraem ficam
recobertos de marcas que se conservam durante a vida toda, tal como entre nós
ocorre com os engalicados e cancerosos que se contagiaram na torpeza e na
impudicícia. Com efeito, vi nesse país um intérprete natural de Ruão que, tendo
chafurdado na obscenidade com as raparigas da terra, recebeu tão amplo e
merecido salário que tinha o corpo coberto de “pians” e o rosto desfigurado a
ponto de parecer com um desses leprosos em que as cicatrizes se tornam indeléveis.
É essa a moléstia mais perigosa do Brasil”[4]
Os índios idosos eram os mais
vulneráveis a essas doenças. Jean de Léry e o padre Thevet contam que os índios
velhos usavam de algumas folhas de plantas para cobrir o membro viril, não
tanto com propósitos de natural pudor mas para encobrir as enfermidades de que
eram atacados. Mais adiante, São José de
Anchieta conta que vários índios adquiriam uma moléstia sexual causada pela excitação
da luxúria provocada por uma lagarta de fogo, chegando ao ponto de apodrecer
seus membros viris.[5]
As pestes provinham
somente dos homens civilizados?
A teoria já foi muito difundida: os índios
são mais vulneráveis às pestes que grassam entre os homens civilizados pois seu
organismo não possui os anticorpos com que as combata. Será que isto é tão
verdadeiro quanto dizem?
Vejamos um exemplo. Ocorreu no Brasil
uma peste, pelos idos de 1563, provavelmente de bexiga, causando terrível
mortandade principalmente entre os índios. O fato é fartamente narrado em
diversas cartas dos jesuítas e foi para eles motivo de muito heroísmo ter que
cuidar de tantos doentes, muitos incuráveis, outros morrendo, numa situação
calamitosa. O padre Leonardo do Valle afirmou que “chegou a cousa a tanto que
já não havia quem fizesse covas e alguns se enterravam pelos monturos e
arredores das casas e tão mal enterrados que os tiravam os porcos...”
Em carta ao Padre Provincial, datada da
Bahia de 30.05.1564, o padre Antonio Blásquez assim relata como deu-se aquela
peste:
“...saiba
que houve entre eles duas grandes mortandades: a primeira teve origem e
princípio de umas febres que, segundo eles diziam, “lhes dava logo no coração”,[6]as
quais mui rapidamente os derrubavam, sem se lhes poder valer nem socorrer com
auxílios humanos, salvo com os espirituais, como eram confissões e batismos, no
que se houveram os padres com muito fervor e caridade, usando com estes
miseráveis do ofício de médico e enfermeiro, tanto no espiritual quanto no
corporal.
“...Neste
tempo não se viam entre eles nem ouviam os bailes e regozijos costumados, tudo
era choro e tristeza, vendo-se uns sem pais, outros sem filhos, e muitas viúvas
sem maridos, de maneira que, quem os via neste seu desamparo, recordando-se do
tempo passado, e quão muitos eram então e quão poucos agora, e como dantes
tinham o que comer e ao presente morriam de fome, e como antes viviam com
liberdade e se viam, além de sua miséria, a cada passo assaltados e cativos à
força pelos Cristãos...
“Passada
esta atribulação, já quando queriam erguer um pouco a cabeça, sobreveio-lhes
outra doença muito pior que a outra, a qual eram umas varíolas e bexigas, tão
asquerosas e hediondas que não havia quem as pudesse suportar com grande
fetidez que delas saía, e por essa causa morriam muitos ao desamparo comidos
dos vermes que das chagas das bexigas nasciam e se engendravam em seus corpos,
em tanta abundância e tão grandes, que causavam um grande horror e espanto a
quem os via, e com isto resultava grande merecimento a quem os curava, que eram
os nossos Padres e Irmãos; porque, além de exercerem este ofício de caridade em
suas aldeias, onde os nossos nasciam, era este nosso colégio um como hospital
deles, onde ganharam muito os nossos Padres e Irmãos com eles, nos serviços e
ministérios que lhes faziam em lavar-lhes as chagas e tirar-lhes os bichos e
gusanos que ferviam em seus corpos como formigas em formigueiros. Mas, posto
que isto em si fosse muito asqueroso e causasse grandíssimo fedor não pequena
dor de cabeça, e os serviçais irmãos nossos mui prontamente, não tendo em conta
outra cousa senão o que a obediência lhes encarregava, se exercitaram nesta
obra de caridade e creio que tanto mais obra de misericórdia quanto mais eles
são miseráveis”.[7]
Mas de onde teria vindo peste tão
terrível? O padre Leonardo do Valle tece
considerações sobre a origem de tal praga que são dignas de credibilidade. Segundo
ele, ela teria vindo do sertão e não do litoral, o que poderia indicar que tais
epidemias já eram comuns antes dos portugueses aqui chegarem.
“De
maneira que seu pecado foi castigado com uma peste tão estranha que porventura
nunca nestas terras houve outra semelhante; alguns querem dizer que se pegou da
nau em que veio o padre Francisco Viegas, porque começou nos ilhéus, onde ela
foi aportar, mas parece mais certo ser açoite do Senhor, e começar donde os
romeiros primeiro começaram a correr a “Santidade” que andava pelo sertão a
dentro, e mesmo se pode dizer da fome que quase é geral entre eles, porque
nesta terra nem a água nem o muito causa
fome como em Portugal e outras partes...
“(...)
e com tudo isto diziam os Índios que não era nada em comparação da mortandade
que ia pelo sertão, que ainda nisto nos diz Nosso Senhor favorecer para eles
acabarem de crer que, não pela conversação dos Cristãos nem por causa da
doutrina, mas por sua cegueira e péssimos ritos, lhes veio o castigo como
alguns da Taparica[8]
confessavam, dizendo que bem os avisava o Padre que ninguém passasse para a
banda de além de Paraguaçu enquanto lá andasse a “Santidade” e que alguns revés
que lá foram sem querer dar por isso trouxeram dela a morte”.[9]
O que poderia se esperar de um
ajuntamento de gente, convivendo promiscuamente em palhoças fétidas, sem
qualquer noção ou prática de higiene, com os pés no chão e completamente
despidos, sujeitos a todo tipo de infecções oriundas das próprias intempéries,
e ainda por cima praticando os costumes mais bárbaros e desumanos? Gripes,
infecções pulmonares devido à exposição do corpo ao tempo sem proteção, não
predispõem tais pessoas a qualquer tipo de doenças, como alguns vírus vindos de
fora? É o que sucedia vez por outra, causando inclusive uma praga coletiva.
Como, pois, acusar unicamente os europeus de haver trazido tais epidemias? Também lá, quando não havia profilaxia
adequada, as epidemias grassavam e matavam em
massa. É bem verdade que haviam homens inescrupulosos que se promiscuíam
com os índios, daí se originando todo tipo de misérias que os jesuítas tanto
procuravam evitar, como as doenças venéreas e a propagação de tais vírus. Mas
afirmar que os europeus eram os únicos
responsáveis pela mortandade em massa de índios é evidente exagero sem
comprovação histórica.
[1]
“História de Gabriel Malagrida” - Paul Mury – Instituto Italiano di Cultura e
Edições Loyola, pág. 50
[2] “Tratado
da Terra e Gente do Brasil” – Fernão Cardim – Ed. Itatiaia e Ed. Da
Universidade de São Paulo, 1980, pág. 152
[3] vide
reportagem na revista “Visão”, de 01.11.1989
[4] “Viagem
à Terra do Brasil” – Jean de Léry – Liv. Martins Editora, 1967, pág. 207
[5] v. item “c” sobre
nudismo e sensualidade dos índios nos “aspectos morais”.
[6] Os
antigos clínicos diziam ser a febre terçã maligna, espécie de malária, com a
morte pelo coração.
[7] “Cartas
Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas” – Azpilcueta Navarro e outros – Ed. Itatiaia,
págs. 431/432
[8] Ilha de
Itaparica, na Bahia de todos os Santos.
[9] “Cartas
Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas” – Azpilcueta Navarro e outros – Ed. Itatiaia,
págs 408/411
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