Mas como? Então gente que se dedicava a
uma luxúria desbragada, de repente passa a praticar a castidade? Sim, é
verdade; e isto já de si constitui um estupendo milagre na ordem da graça. Vários são os casos de verdadeiros atos de
heroísmo e até de martírios ocorrido entre os índios que praticavam a castidade.
Um valoroso testemunho de São José de
Anchieta:
“Observam-se
em muitos, “máxime” nas mulheres, assim livres como escravas, mui manifestos
sinais de virtudes, principalmente em fugir e detestar a luxúria, que sendo
comum pernície do gênero humano, desta parte parece que teve sempre, não
somente imperioso senhorio, mas até tirania muito cruel. E sendo isto verdade,
é muito para espantar e digno de grande louvor quantas vitórias e triunfos
alcancem dela. Sofrem as escravas que seus senhores as maltratem com bofetadas,
murros e açoites por não consentir no pecado. Outras desprezam as dádivas, que
lhe oferecem os mancebos desonestos.
Outras, a quem pela violência lhe querem roubar sua castidade,
defendem-se, não somente repugnando com a vontade, mas até com clamores, mãos e
dentes fazem fugir os que as querem forçar. Uma, acometida por um e perguntada
de quem era escrava, respondeu: “De Deus sou, Deus é meu Senhor, a Ele te
convém falar, se queres alguma coisa de mim”.
Com estas palavras se foi vencido e confuso e contava isso a outros com
grande admiração.” [1]
Havia também exemplos de índios mancebos
que recusavam se sujar na lama da impureza e procuravam preservar-se. Era comum
o prisioneiro (prestes a ser morto no ritual de antropofagia) receber em sua
cabana uma mulher para conviver com ela até o dia da morte. Em alguns casos,
quando o prisioneiro era cristão, a malfadada companheira era recusada, como
ocorreu num caso narrado por São José de Anchieta com um rapazola de 15 anos.
Exemplo de castidade
heróica entre indígenas
Por ser uma virtude muito detestada pela
Revolução e tenazmente combatida em todas as épocas, não poderíamos deixar de
relatar um caso impressionante da prática da castidade heróica entre os índios
cristãos. Quem conta o caso é o Padre Antonio Blásquez em carta escrita da
Bahia, em 1558, e destinada ao Geral da Companhia de Jesus. Transcrevemos
abaixo todo o relato, com todo o seu sabor da linguagem quinhentista:
“E
para concluir direi por último o que aconteceu nesta cidade digno de edificação
e, por ser no Brasil, de muita admiração. Foi trazida de casa de seus pais uma
índia brasílica mui pequena e, criando-se em bons costumes em casa de uma dona
honrada, afeiçoou-se tanto à virtude e cousas do Senhor que propôs em sua alma
(ensinada não por homens, senão pelo Espírito Santo) de não conhecer varão e
isto quanto lhe fosse possível.
Perseverando ela nestes desejos, cousa muito desacostumada entre as
índias desta terra, o Demônio, inimigo da salvação dos homens, não podendo
sofrer fazer tão grande desonra em terra onde ele é tão honrado, trabalhou que
ela tivesse amos que a tirassem de tal propósito, e creio que assim fora se o
Senhor não a prevenira antes com sua Graça, ornando-a de uma grande fortaleza
para que pudesse resistir e vencer ao Demônio de uns não bons homens, por meio
dos quais lhe queria roubar a jóia da castidade. Estes amos, pois, a cometeram
muitas vezes querendo deflorá-la, aos quais ela resistiu com um ânimo mais que
de mulher, rogando-lhes com as lágrimas nos olhos que tal cousa não quisessem
fazer, pondo-lhes diante o mal que faziam a ela e a si mesmos; finalmente quão grande desonra e desacato
cometiam ao Senhor, verdadeiro amador dos limpos e castos. Os senhores com tal novidade ficavam como
atônitos e pasmados, e reconhecendo nela a virtude e a graça do Senhor, por
algum tempo a deixavam; mas não durava
muito: creio que era parte por sua maldade, parte pela grande inveja do
Demônio, que vendo que era vencido por uma índia brasílica, não criada em mosteiros
nem em recolhimentos, mas nascida de gente boçal e quase selvagem,
solicitava-os a que dobrassem sua alma a que consentisse nos seus torpes
desejos, espantando-a algumas vezes com ameaças, outras atraindo-a com mimos e
palavras brandas; mas por fim, como acerca de Deus valem muito pouco ardis dos
homens e menos malícia do Demônio, ainda que ponha todas as suas forças,
acontecia-lhes ficarem envergonhados e o Demônio confundido e vencido. Vendo-se,
pois, a pobresita perseguida e acossada destes seus amos, e advertindo que nós
outros veneramos a imagem de Cristo Crucificado, pôs em seu pescoço um
Crucifixo para que com isso se amparasse e defendesse dos perversos amadores de
seu corpo, dos quais não se podia ser livre, nem pelos rogos, nem pelas lágrimas
que chorasse; para esse efeito lhe dava
o Senhor grande cópia delas. Entristecia-se a triste de ver a sua desventura,
buscando todos os meios de parecer mal aos homens, para ver se com isto a
deixavam: não queria trazer nada em sua cabeça nem coifa nem outra alguma cousa
que lhe cobrisse os cabelos; mas antes
os trazia descabelados e mal compostos, para que desta maneira,
parecendo feia adiante dos homens, fosse mui formosa diante dos olhos de Deus.
“Ó
vergonha e confusão da gente cristã! Que uma moça brasílica confunda seus
atavios e galas, com que desejam parecer bem aos homens e não a Deus, o que não
fazia esta, que lhe sendo dito que se limpasse e, deixados os vestidos sujos
que trazia, tomasse outros, respondia que não era necessário, que o seu intento era agora dar e parecer bem a Deus,
que aos outros não lhe dava nada parecer feia e descomposta. Não se acabaram
com isto os seus trabalhos, porque, vendo um seu amo a sua grande constância,
não se atreveu a cometer tal abominação dentro de casa, porque temia que dando
ela vozes e gritos, fosse sentido e por conseguinte tido em má conta: assim, levou-a para uma roça e estando ali
sós, vendo ela que não tinha ali remédio humano, socorreu-se ao divino, que
nunca a ninguém soe desamparar, e posta de joelhos diante do Senhor, os olhos
arrasados de lágrimas, tirou o Crucifixo do pescoço e disse a seu amor:
“Senhor, em reverência a este teu Deus que adoras, te rogo que não toques em
mim, porque não te aconteça algum mal se o fizeres”. Movido o amo com isto, desistiu de sua danada
intenção e, vendo que não lhe aproveitava para o que ele queria, a vendeu a
outro homem, com quem experimentou as mesmas fadigas e angústias e por isso
muitas vezes lhe fugia e andava amontada por casas de homens honrados, rogando
mui continuamente aos Padres que fizessem com que algum homem casado a
comprasse, porque com solteiros já tinha experimentado que não podia ter vida: sua
consolação e alegria é ouvir pregações e confessar-se muitas vezes e procurar
que as outras índias façam o mesmo, e
dá-lhes o Senhor tanta graça em falar dele, que os homens Cristãos se maravilham das cousas que diz. Vendo os
Padres a sua aflição, determinaram tirar nesta Páscoa alguma esmola, para que a
forrassem e ela estivesse em casa de um homem
honrado, para que dali servisse aos pobres do hospital e da cidade,
trazendo-lhes água e o mais necessário para o seu serviço; já se tem toda junta
a esmola em que ela foi apreçada. Prazará ao Senhor, que a livrou de tantos
trabalhos, dar-lhe sempre perseverança em seu serviço, pois, sendo antes
cativa, tão livremente o servia”.[2]
Virtudes da
índia Bartira contada por São José de Anchieta
“Um só exemplo contarei ainda, por me não
deter em cada coisa particular, que não será cousa de menor alegria. Faleceu
pouco há uma velha, que havia sido manceba de um português quase quarenta anos
e havia gerado muitos filhos. Esta, como nossos irmãos, haverá nove anos, a
admoestassem que olhasse para si e não quisesse ir-se ao inferno por aquele
pecado, logo arrependida e conhecendo a maldade, em que havia vivido, aborreceu
o p ecado e, perseverando em castidade, trabalhava de purgar seus pecados com
muitas esmola, que nos fazia. Agora, ferida de uma longa e incurável enfermidade,
foi-se a Piratininga, onde, feita uma casa por seus filhos e escravos, entendia
somente em coisas relativas à salvação de sua alma. Confessava-se e comungava
muitas vezes e, dando-nos muitas esmolas, aparelhava eternos tabernáculos no
céu. Visitavam-na muitas vezes os irmãos e confortavam-na como divinas palavras,
principalmente quando, já no fim, tendo corruptos os órgãos secretos (esta era
uma enfermidade, que é muito comum nestas mulheres do Brasil, ainda virgens),
exalava de si tão mau cheiro, que os mesmos seus a desamparavam. Mas o Pe.
Afonso Brás e o Ir. Gaspar Lourenço, intérprete, dando maior atenção ao olor,
que daí a pouco sua alma havia de dar, venciam o fedor que aos outros ere
intolerável, e estavam toda a noite sem dormir, animando-a com divinas
palavras, nas quais ela muito se deleitava, até que expirou com ditoso fim, com
é de crer”
Nota: Desde
1551 cuidara, como se vê, Leonardo Nunes de atrair essa alma, cristã pelo
batismo, à observância das leis divinas, no que “logo” foi bem sucedido. Não há dúvida, pelas circunstâncias aqui
enumeradas, que se trata da companheira de João Ramalho, mãe de seus numerosos filhos.
Mbcy (Mbcy mesmo!), seu primeiro nome indígena, passou a ser conhecida pelo
nome de Bartira. Isabel Dias, o seu nome cristão. [3]
[1] “Cartas
– Correspondência Ativa e Passiva – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Ed. Loyola,
1984, págs. 160/161
[2] “Cartas
Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas” – Azpilcueta Navarro e outros – Ed. Itatiaia,
págs. 216/218
[3] “Cartas – Correspondência Ativa e
Passiva – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Ed. Loyola, 1984 – págs. 157/158 – Nota,
à página 170
Nenhum comentário:
Postar um comentário