Imaginemos como se inicia a formação de
uma “família” na tribo. Inicialmente se forma um casal, que muitas
vezes é fruto da conquista brutal do
homem que raptou a mulher, acrescido, algum tempo depois, de outras
mulheres e de quantos filhos elas quiserem ter, na medida que assim o consentir
a vontade de agradar ao homem. Carl von Martius afirma que “além deste modo
violento (raptos), o selvagem brasileiro pode adquirir sua companheira por
consentimento pleno do pai, de duas maneiras: por serviços prestados na cabana
do sogro... ou por compra”. Esta
“compra” deve ter consumado o seu pagamento por certa quantidade de animais
caçados ou de alguma roça de milho plantada. De modo geral, portanto, a mulher
se nivela a uma escrava, e muitas vezes de um senhor brutal que a submete pelo
resto da vida sob ameaças até de morte.
Na incipiente união tribal não há palavra dada, promessas e juramentos a
cumprir, isto é, qualquer forma rudimentar de contrato social: requer apenas
(quando o pai o exige) a presença de um
pajé ou do cacique para aprovar aquela união, feita sem qualquer comprometimento
moral de ambos os consortes.
Informações do Padre
Anchieta sobre a noção que os índios tinham da família
I
– Indissolubilidade – Nenhuma
noção, apenas casos isolados de índios que viveram toda a vida com uma só
mulher sob seu poder, mas sempre tendo outras em outros lugares:
“Dos
que têm uma só mulher de que houveram filhos, com a qual perseveraram até à
velhice, pode haver mais dúvida, porque parece que estes têm diferente afeição
e ânimo marital, não porque no princípio o tivessem tal, porque todos se juntam
com elas duma mesma maneira. E também estes, como todos os outros, “in
preparatione animi” têm muitas, e se não as tomaram, foi não por se terem por
obrigados àquelas, senão porque houveram filhos delas, e os serviram bem, e
lhes foram leais, e não tiveram poder para ter outras...”
II
– Adultério, poligamia, ciúmes
– “O adultério não costuma suscitar atentado
contra a vida da mulher, havendo exceções porém de extremas crueldades, coisa
que nem sempre ocorre contra os outros homens por medo de suscitar revides. A
diferença entre concubinas e esposas legítimas praticamente não existe”.
III
– Legitimidade familiar
– “Jamais usavam o adjetivo “etê”
(legítimo, verdadeiro, excelente), em matéria de parentesco. Sobrinhas por
parte das irmãs eram despojadas, pois só considerava do mesmo sangue ou
“filhas” as que nasciam dos irmãos: só a geração paterna era levada em conta,
nada mais representando a mulher do que
um saco para o desenvolvimento do ser humano; o nome “Temirecô etê”, isto é,
“Uxor Vera”, creio que o tomaram dos padres, que lhes queriam dar a entender a
perpetuidade do matrimônio, e qual é a mulher legítima, porque este vocábulo
“etê”, que quer dizer legítimo, usam eles nas coisas naturais da sua terra, e
assim o seu vinho chamam “cãoy etê”, vinho legítimo, verdadeiro, à diferença do
nosso a que chamam de “cãoy áyá”, vinho agro. As suas antas chamam “tapiretê”,
verdadeira, e às nossas vacas à sua semelhança chamavam “tapyruçu”, vacas
grandes, etc. Mas na matéria de
parentesco nunca usam deste vocábulo “etê”, porque chamando pais aos irmãos de
seus pais, e filhos aos filhos de seus irmãos, e irmãos aos filhos dos tios
irmãos dos pais, para declararem quem é
seu pai, ou filho verdadeiro, etc., nunca dizem “xerubetê”, meu pai verdadeiro,
senão “xeruba xemonhangára”, meu pai que “me genuit”, e ao filho “xeraiara xeremimonnhanga”,
meu filho “quem genuit”. E assim nunca
ouvi o índio chamar a sua mulher “xeremirecô etê” senão “xeremerecô” (simpliciter) ou “xeraicig”, mãe de meus
filhos; nem a mulher ao marido “xemenetê”, “maritus verus”, senão “xemêna”
(simpliciter) ou “xemenbira ruba” pai de
meus filhos, do qual tanto usam para o marido, como para o barregão; e se
alguma hora o marido chamar algumas de suas mulheres “xeremirecô etê”, quer
dizer, mulher mais estimada ou mais querida, a qual muitas vezes é a última que
tomou, porque “etê” também quer dizer fino ou estimado, como “caá etê”, mato
fino, de boa madeira, “igbira etê”, pau fino, etc”[1]
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