Já
tem quase dois séculos de existência entre nós a devoção ao Coração de Jesus,
mas nunca foi de tanta atualidade como na hora presente. Esta devoção é um
remédio e o remédio supõe um mal, o mal estar geral da sociedade moderna.
E'
lei geral da Providencia acomodar às necessidades dos tempos as instituições que inspira e suscita. Pode
dizer-se que a história da Igreja não é senão a execução desta lei admirável.
Se
a devoção ao Coração de Jesus nos foi dada como remédio aos males dos últimos
tempos , se estamos em plena era do Coração de Jesus, grande correspondência há
de existir entre esta devoção e aqueles males.
Na
verdade, estudando a índole e caracteres da nova devoção e as necessidades modernas, descobre-se logo entre
eles a mesma relação entre o remédio e a doença, entre o veneno e o antídoto.
Qual
é o espírito e o mal dos nossos tempos ? qual é o espírito e o fruto da devoção
ao Coração de Jesus ?
Vejamo-lo
no seguinte esquema de Costa Rosetti.
Índole
e crlmes característlcos do nosso tempo
1
. Apostasia, renegando de Cristo.
2_
Infidelidade total e dia a dia cada vez mais alastrada.
3.
Desesperança e pessimismo : desesperação causada pelas calamidades sociais e
pela miséria geral : freqüentes suicídios
4·
Enregelamento da caridade para com Deus e Cristo : indiferentismo.
5.
Langor da vida católica com manifesto definhamento : a tibieza e oscilante claudicação
própria do liberalismo.
6.
Opressão da Igreja, disfarçada ou desfaçada ; indiferença ou hostilidade para com
o Sumo Pontífice.
7·
Materialismo teórico ou pratico.
8.
Voluptuosidade de terrenas deleitações ; fastio dos bens celestes.
9·
Sórdida cobiça de granjearias terrenas ; descaridoso egoísmo na economia particular
e pública, esbulhando os mais opulentos aos menos abastados ate á miséria.
10.
Rivalidades sociais e discórdias acerbíssimas : a questão operária, a questão agrária,
libertação civil e franquias populares
11
. O socialismo fremente e o comunismo, cada vez mais vorazes e insaciáveis.
12.
A relaxação, a lenta decomposição da família e da sociedade, operada pelo liberalismo por
meio das escolas emancipadas da religião e dos inumeráveis ardis dos pedreiros
livres.
Espírito
e frutos do culto do SS. Coração
1
. Estreita união com Cristo.
2.
Fé viva, fomentada pela caridade do SS. Coração.
3.
Melhoria da esperança, aumentada pela consideração da clemência e infinita misericórdia
do SS. Coração.
4·
Caridade, acesa pelo Coração inflamado de Jesus : afervoramento da vida cristã.
5.
Florescência da vida católica, visivelmente patenteada ; frequência de
sacramentos; pujança de associações católicas, opostas ao liberalismo.
6.
Amor ao Vigário de Jesus Cristo ; defesa enérgica dos direitos da santa Igreja,
esposa de Cristo.
7·
Anelo aos bens supras sensíveis e sobrenaturais, ateado peIas labaredas do amor
do SS. Coração.
8.
Saudades e uso freqüente da SS. Comunhão.
9·
Abnegação caridosa a bem do próximo, haurido no vulnerado Coração de Deus, circundado
de espinhos e coroado pela cruz.
10.
Solução feliz de toda a questão social, se vão todas as classes beber no SS.
Coração os seus sentimentos de abnegação, de justiça comutativa e legal, o seu
inesgotável amor.
11
. O socialismo e comunismo debelados com reformas sociais inspiradas pela justiça e caridade do SS. Coração.
12.
A tutelar conservação católica, consentânea com o verdadeiro progresso, que há
de sanar todos os males sociais com a virtude regeneradora do divino Coração.
Hoje,
como no tempo de S. Agostinho, como sempre, o mundo está dividido em duas
grandes cidades ou reinos: a cidade de Deus, o reino da luz, e a cidade do
erro, o reino das trevas e de Lúcifer.
As
grandes lutas e combates no mundo travam-se todos em volta de Jesus.
Os
partidos intermédios e as outras lutas são pequena coisa em comparação da eterna luta que d1vide o mundo naqueles dois
grandes reinos.
Não
queremos que Jesus reine sobre nós ! “nolumus hunc regnare super nos”, exclamam hoje com mais
furor do que no tempo de Pilatos os blasfemos filhos do erro.
É
necessário que Ele reine, e há de reinar sobre todos ! “oportet illum regnare”,
repetem por sua parte com 'S. Paulo os filhos da verdade.
Reinar
ou não reinar Jesus no mundo, eis a eterna luta que divide irreconciliavelmente os homens, eis a vida ou
a morte da sociedade.
E'
o amor em luta aberta com o ódio.
O
grande mal dos nossos tempos não é a pobreza - nunca os recursos foram tantos e
tão divididos como hoje·- ; não é a ignorância - a ciência barateou-se e está
ao alcance de todos - ; o grande mal, que a todos resume, é o ódio, é o egoísmo
desta sociedade sem-fé.
Quando
não ha fé nem Deus, o amor é impossível, e sem amor a sociedade é um covil de
feras, é o pleno reinado do egoísmo, cada um vive para si.
Então
o amor do próximo é um a mentira. O egoísta sem fé nunca chega a ter a noção do
amor ; quando dá mostras de amar, é a si que ele ama, é o seu interesse que
procura sempre. E, se o próximo o contraria,.afasta-o, persegue-o, mata-o.
E
sai da ordem individual e apodera-se da força e faz as leis e as leis são a divinização
da matéria, a glorificação das paixões.
Esta
é a grande aspiração do reino das trevas, hoje principalmente concretizado na
maçonaria, a igreja internacional do ódio.
É
no meio d'esta sociedade pervertida e desnorteada que se levanta o Coração de
Jesus com o seu reino do amor, para fazer recuar o ódio.
O
amor é a vida, é o sangue e a seiva da sociedade ; é o homem que sai para fora
de si mesmo, que esquece os seus interesses, domina os seus instintos maus,
vive para os outros, sacrifica-se por eles, dá-lhes o que tem, e até a própria
vida.
Esta
dedicação e este amor não veio, não podia vir da terra : é a lição que o
Coração de Jesus constantemente prega aos homens.
Admiravelmente
grandiosa é a idéia que a Beata Margarida nos dá do Coração de Jesus.
É
o Santo dos santos, o Santo do amor, que desejava ser conhecido, para ser o
Mediador entre Deus e os homens ; porque é onipotente para fazer as pazes,
afastando os castigos que os nossos pecados provocam, e para nos alcançar
misericórdia.»
Esta
idéia de mediações ou, melhor, de nova ou segunda mediação entre Deus e os
homens aparece com frequência nos escritos da Beata Margarida.
“É
o último esforço” do seu amor, “uma redenção amorosa” , “uma nova efusão do
amor de Deus, de todos os tesouros de amor, de graça, santificação e salvação
que possui”.
E'
verdade que Deus já tinha dado tudo, quando deu seu Filho e o Filho tinha
consumado a doação de si na Encarnação, na Redenção e na Eucaristia
- parece que não podia dar mais ; mas deu : a
nova declaração de amor que fez aos homens nas revelações de Paray com tais
extremos de bondade e misericórdia são um chamamento) paternal, um apelo
divinamente apaixonado ás infinitas
ternuras do seu amor.
Como
a Eucaristia é um resumo de todas as obras de Deus e encerrando todas as
manifestações do amor, constitui a mais excelente e admirável de todas, assim o
Coração de Jesus, dando-nos no amor que simboliza e encerra a razão da Eucaristia
e de todas as obras de Deus, constitui um novo dom, uma declaração nova do seu amor,
um chamamento mais íntimo, um novo descer e caminhar para os homens,
oferecendo-lhes o perdão, a vida, o amor e a glória.
Oh
! como é belo este descer de Jesus, este aparecer aos homens com o Coração nas
mãos a escorrer sangue e a pedir-lhes o retorno do seu amor infinito ! As
revelações de Paray abriram uma nova era na historia do amor de Deus e hoje
estamos em pleno esplendor desta era bendita.
O
livrinho que vai ler-se despretensioso na forma, sem preocupações de estilo nem
artifícios literários, sem querer armar ao efeito nem persuadir com argumentos
ou razões humanas, dá-nos a grande novidade de conter o verdadeiro espírito da devoção
ao Coração de Jesus e corresponder ás necessidades da hora presente com um remédio
aplicado pelo próprio Deus.
Lisboa, 15 d'agosto de 1 907. PADRE JOAQUIM DOS SANTOS ABRANCHES
Nenhum comentário:
Postar um comentário