Um exemplo do poder dos legistas ou juristas do direito romano podemos constatar num episódio da vida de São Nuno de Santa Maria, o famoso Condestável de Portugal Dom Nun’Álvares Pereira. Naquele tempo (século XIV) já estava bastante sedimentada a idéia de que o Estado é o senhor de tudo, superior a todos os indivíduos e organismos sociais intermediários. Essa idéia fazia parte de um princípio jurídico defendido pelos legistas do chamado direito romano e predominava em vários países. Na França, desde o tempo de “Felipe o Belo” (início do século XIV) que tal princípio predominava: foi este o motivo da afronta perpetrada por aquele rei (que, por sinal, era neto de São Luís IX) contra o Papa Bonifácio VIII, mandando esbofeteá-lo em praça pública. Para demonstrar que o Estado era superior à igreja, fez com que a autoridade papal sofresse uma humilhação pública. Quer dizer, era uma demonstração de força para comprovar a legitimidade de seu poder de regência e, de outro lado, da ilegitimidade do poder regencial dos papas, que só deveria reger as almas. Era, assim, a demonstração da regência pela força e não pelo amor filial.
Em Portugal, tais princípios demoraram a
chegar. A nação encontrava-se em guerras constantes com seu antigo reino, o de
Castela, e por mais de uma década lutou bravamente para confirmar sua independência
e seu reino. Nessa luta, foi de capital importância a participação do grande
Condestável, Dom Nuno Álvares Pereira. Quando, finalmente, o país começou a
auto-reger-se, a idéia da supremacia estatal já predominava na Europa por causa
da influência dos legistas, e terminou por influenciar os assessores do rei de
Portugal.
Quando a guerra acabou, o Condestável havia
concentrado em suas mãos uma riqueza incalculável, formada em geral pelos
despojos e pelos butins que arrebatava dos inimigos e dos presentes que recebia
do rei e dos amigos. Dizia-se que lhe pertencia a metade do reino. Os invejosos
chegavam a espalhar os boatos de que Dom João I resolvera dividir o reino com
Nun'Álvares desde o momento em que, juntos, no ano de 1384 partiram para fundar
a nova dinastia de Avis.
Muitos eram aqueles que tinham inveja de tais
riquezas, e o Condestável mostrou completo desapego às mesmas, resolvendo doar
tudo. As pessoas mais beneficiadas com estas dádivas foram seus próprios
homens, com os quais dividiu dinheiro, propriedades, jóias e tudo o que ganhara
ao longo destes dez anos. Considerava que seus soldados e cavaleiros haviam
sido seus sócios naquela empresa, com os quais dividiu sacrifícios e desgostos,
e por isso teria que dividir também os louros da vitória. Sentia vergonha de se encontrar tão rico, ao
lado de seus cavaleiros, soldados e peões, seus fiéis companheiros de armas,
sem nada possuir ou com poucas posses.
No final, ao terminar de dividir tudo, percebeu que havia ficado apenas
com o hábito de sua Ordem, que nunca largara. Tal desapego em doar todos os
seus bens deveria causar assombros de admiração, mas em muitos aumentava mais a
inveja ao perceberem que Dom Nuno com este ato se elevava ainda mais em magnanimidade,
erguendo-o muito acima do comum dos vassalos do reino.
E o ciúme invejoso açulou alguns assessores
do rei, principalmente os juristas, a verem um mal naquele ato. Alegavam que
Dom Nuno não podia doar aqueles bens, pois não lhe pertenciam e sim ao reino
(quer dizer, ao Estado). Aquelas doações representavam uma afirmação pura e
simples de soberania aristocrática, contrária ao novo conceito jurídico que
surgia na Europa em que o Estado era o único elemento soberano numa nação. Era como se fosse uma afronta ao novo
conceito de monarquia recém-nascido em Portugal com a dinastia de Avis.
Levaram a Dom João I vários argumentos
jurídicos, terminando por convencê-lo a chamar o Condestável à corte a fim de
rever as doações que fizera a seus homens. A oposição daqueles homens para com
suas doações fizera Dom Nuno ficar muito confuso, pois não entendia porque
havia ele conquistado todos aqueles bens e não os podia doar a quem quisesse.
Percebeu claramente que tal oposição não passava de obra da inveja. Lutou
bravamente para manter a validade de suas doações. Como ficaria ele perante
seus homens? Como chegaria até eles e pedir tudo de volta para entregar ao rei
(ou ao reino), que não era dono de nada daquilo?
Como Nun'Álvares se recusasse a reaver os
bens doados para os entregar ao reino, Dom João foi convencido pelos juristas e
assessores de que fizesse expropriação de tudo, usando simplesmente o poder da
força. Seria um ato arbitrário, mas os legistas haviam preparado uma bem
arrumada documentação para reforçar os argumentos do ato real. Quando Dom João
I lavrou a sentença, Dom Nuno já havia partido da corte para o Alentejo.
Que pensava fazer? Mandou reunir seu
exército, aquele mesmo que o acompanhara durante mais de dez anos, onde estavam
os homens mais fiéis que havia, e lhes comunicou o que estava ocorrendo e qual
a sua decisão. Disse-lhes que o rei queria tomar todos os bens que ele havia
doado, que lhe pertenciam há muito tempo, e perante tal afronta ele havia
decidido abandonar o reino e partir para o exterior a procura de outro senhor a
quem pudesse servir mais dignamente. Quem quisesse poderia ir com ele, ou então
ficasse porque ninguém estava obrigado a segui-lo naquela viagem. Todos seus homens resolveram partir com seu
senhor, e logo de imediato tomaram o rumo da fronteira. Vê-se, nesse ato, o que
falamos acima: a plena liberdade com que os medievais serviam a seus senhores,
podendo desistir da servidão a qualquer momento, assim o desejasse.
A notícia logo voou até a corte. Quando Dom
João tomou conhecimento da decisão de Dom Nuno, sabendo que tipo de caráter ele
possuía e do que seria capaz, mandou urgentemente um emissário procurá-lo.
Quando o emissário partiu, logo partiram também na mesma direção alguns
personagens de grande peso na corte. Tinham a intenção de fazer o Condestável
mudar de propósito. Encontraram-no no caminho, e a todos Dom Nuno respondeu que
iria pensar nas novas propostas e pedidos do rei, que era muito seu amigo.
Em pouco tempo, o caso ficou resolvido. O rei
voltou atrás e anulou as expropriações feitas. As doações ficaram mantidas, mas
ele pediu a Nun'Álvares que viesse na corte a fim de assinar um documento
protocolar. Era um "jeitinho"
que o bom diplomata de Avis achara para contentar a ambos: aos legistas
e a Dom Nuno. O Condestável assinaria um documento transferindo todos os bens
para o reino, e no mesmo momento o rei assinaria outro documento doando todos
aqueles bens aos atuais possuidores.
Dentro de pouco tempo o Condestável teve a
oportunidade de provar que não guardava nenhuma amargura contra o seu rei. Tendo o rei de Castela rompido novamente as
pazes e invadido algumas localidades portuguesas, Dom João I convocou alguns
fidalgos de sua corte para preparar a defesa sem pensar em Dom Nuno. Sabendo que seu Condestável estava muito
magoado com os últimos acontecimentos, preferiu pedir apoio dos outros seus
fidalgos mais fiéis. O rei aguardou algum tempo em Santarém pela chegada das
forças para repelir os invasores, mas ficou frustrado pela completa deserção de
seus melhores homens. Após longa espera, havia se decidido a voltar para Lisboa
porque ninguém tinha atendido seu apelo. De repente, vê chegar um destacamento
militar composto de mais de mil e duzentas lanças, comandado pelo incansável
Nun'Álvares Pereira. Mesmo sem ser convocado, ao saber de que o rei precisava
dele, marchou imediatamente ao seu encontro. O rei exultou de contentamento,
quase chorava de alegria porque sentia naquele gesto de Dom Nuno a completa
reconciliação dos dois.
Numa breve correria, o Condestável fez voltar
aos homens do exército real português a antiga alegria de combater pela nova
monarquia. Depois de haver vencido aqueles rápidos combates, resolveu repartir
o butim de guerra ali mesmo com seus homens, pois queria evitar alguma querela
com os juristas da corte. Em seguida, voltou para o seu Alentejo, onde morava
com a mãe e a filha, enquanto o rei seguia para Avis.
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