Fazer juízo é
um ato comum entre os homens, e todos nós o fazemos cotidianamente sem mesmo o
perceber. E a maioria das pessoas tem o costume de fazer julgamentos
apressados, inclusive considerando apenas a questão da culpabilidade do próximo
ou de si mesmo perante algum fato. Quebrou-se algum objeto dentro de casa,
surge logo a questão: de quem foi a culpa? Como se o fator culpa fosse o mais
importante. Aqui entra um fator muito importante, e que os santos levam em
consideração para sua própria perfeição: de quem quer que seja a culpa, o
primordial não é isso, mas, sim, que valores estão em jogo quando ocorre esse
tipo de coisa, se o do objeto ou se o apego ao mesmo. Quando alguém acusava
algum santo (Santa Teresinha do Menino Jesus é um exemplo deste procedimento)
de fatos assim corriqueiros, geralmente eles não se desculpavam, julgando que
bem poderiam realmente ter cometido aquilo, e, neste ato, estão implicitamente
fazendo um justo juízo de si mesmos.
O ato de julgar
é, portanto, muito importante em nossa perfeição. Devemos apenas ter cuidado ao
exercê-lo, como adverte São Paulo: “E tu,
ó homem, que julgas aqueles que fazem tais coisas e (também) as fazes, julgas
porventura que escaparás ao juízo de Deus?” (Rom 2, 3)
Vejamos o que
diz São Tomás de Aquino sobre a licitude do ato de julgar:
“O
segundo se discute assim. – Parece que não é lícito julgar.
1. –
Pois, a pena só é infligida a um ato ilícito. Ora, os que julgam incorrem em
pena, em que não incorrem os que não julgam, segundo o Evangelho: “Não julgueis
para que não sejais julgados” .(Mt 7, 1);.
Logo, é ilícito julgar.
2. Demais
– A Escritura diz: “Quem és tu, que julga o servo alheio? Para seu senhor está
em pé ou cai” (Rm 14, 4) . Ora, o Senhor de
todas as coisas é Deus. Logo, a nenhum homem é lícito julgar.
3. Demais
- Nenhum homem é sem pecado, conforme àquilo da Escritura: “”Se dissermos que
estamos sem pecado, nós mesmos nos enganamos” (I Jo
1, 8).
Ora, a quem peca não é lícito
julgar, conforme àquilo da Escritura: “És inescusável tu, ó homem qualquer, que
julgas; porque no mesmo que julgas a outro, a ti mesmo te condenas, porque
fazes essas mesmas coisas que julgas” (Rm 2, 1) . Logo, a ninguém é lícito julgar.
Mas, em contrário, a Escritura:
“Estabelecerás juízes e magistrados de todas as tuas portas, para que julguem o
povo com retidão de justiça”. (Deut 16, 18)..
SOLUÇÃO – O juízo é justo na medida em que é um ato
de justiça. Ora, como do sobredito resulta, três condições se exigem para que
um juízo seja um ato de justiça: primeiro, que proceda de uma inclinação justa;
segundo, que proceda da autoridade do chefe; terceiro, que seja proferida pela
razão reta da prudência. A falta de qualquer delas torna o juízo vicioso e
ilícito. – De um modo quando vai contra a retidão da justiça. E, então, o juízo
se chama “pervertido” ou “ injusto”. – De outro modo, quando julgamos daquilo
para o que não temos autoridade. E, então, o juízo se chama “usurpado”. – De
terceiro modo, quando falta a certeza da razão; assim, quando julgamos do que é
duvidoso ou oculto, levados por leves conjecturas. E, então, chama-se o juízo
“suspeitoso” ou “temerário”.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA
PERGUNTA – O Senhor, no lugar citado, proíbe o juízo temerário que incide sobre
a intenção do coração ou sobre outras coisas incertas, como diz Agostinho – Ou
proíbe, com as palavras citadas, julgar das cousas divinas, as quais, sendo-nos
superiores, não devemos julgá-las, mas simplesmente crê-las, como diz Hilário.
– Ou proíbe o juízo não procedente da benevolência, mas, do espírito amargo,
como diz Crisóstomo.
RESPOSTA À SEGUNDA – O juiz é
constituído ministro de Deus; donde o dizer a Escritura: “”Julgai o que for
justo”; e depois acrescenta: “é o juízo de Deus”.
RESPOSTA À TERCEIRA – Os réus de
pecados graves não devem julgar os que também o são dos mesmos ou de pecados
menores, como diz Crisóstomo àquilo do Evangelho: “Não queirais julgar”. O que
sobretudo se deve entender dos pecados públicos; porque então o nosso juízo
gera o escândalo nos corações dos outros. Se, porém, não forem públicos, mas
ocultos, e, por dever, tivermos que dar o nosso juízo, podemos acusar ou julgar
com humildade e temor. Por isso, diz Agostinho: “Se nos encontrarmos no mesmo
vício que outrem, gemamos com ele e o incitemos a tornar-se melhor,
esforçando-nos também nós para consegui-lo, Nem contudo, por isso, ao julgar os
outros, nós nos condenamos, por atrairmos sobre nós um novo motivo de
condenação; mas, ao condenar a outrem, mostremo-nos merecedores da mesma
condenação, por um pecado igual ou semelhante”..[1]
Indicando
que o juízo faz parte da virtude da Sabedoria, assim fala São Boaventura sobre
o mesmo:
“A sexta coluna da casa da sabedoria é a
maturidade de juízo; e isto se adverte quando diz: “não se meta a julgar”. Há
maturidade no juízo quando o homem não julga temerariamente. De onde se diz no
Eclesiástico: “O juiz sábio fará justiça ao seu povo”, isto é, ao povo sobre o
qual tem autoridade. Mas se passa dos limites da autoridade, não é juiz sábio,
senão o juízo será temerário. Se alguém julga sem autoridade, aquele, quem é?
Nada, certamente. É necessário também que o juízo do sábio tenha a retidão do
zelo e a claridade do conhecimento. Do primeiro se disse: “A boca do justo
derramará sabedoria, e a língua falará judiciosamente”. Justo juiz é o que se
move por um justo zelo, aprova todo o bem e reprova o mal; porém o que não tem
reto zelo não pode julgar bem. O amor e o ódio pervertem o juízo. Se me odeias
não podes julgar-me retamente; e por que não? Porque te parece que tudo o que
há em mim é mal, - Desta forma é necessário que o juiz tenha a claridade do
conhecimento. Como julgaria bem de uma coisa desconhecida? Por isso, quando os
inimigos de Job o argüiam que não era justo, dizendo: “O justo Deus não o
castiga, e, contudo, a ti te castiga”, quiseram julgar de coisas ocultas.[2]
Job, ouvindo estas coisas, respondeu-lhes dizendo: “”Arrependei-vos e vinde, e
não encontrarei entre vós nenhum sábio”. Por isso disse o Bem-Aventurado
Santiago: “não se meta a julgar”; não quer dizer que o homem não deva
julgar, em seu devido lugar e a seu devido tempo, de uma coisa sobre a qual
tenha certeza, autoridade e reto zelo, do contrário os homens julgam o mal
como bem, e ao contrário, o bem como mal. O homem deve ser mais inclinado a
escusar com clemência que a julgar mal. Agora todos são julgados de “sentenças
iníquas”. Deve, pois, o homem não ultrapassar os limites da autoridade nem
julgar temerariamente sem a retidão de zelo e sem a claridade do conhecimento.
São Mateus disse: “Não julgueis aos demais se não quereis ser julgados”. É suma
necedade que os homens julguem os defeitos interiores dos outros e não tenham
cuidado de si mesmos. São Gregório disse:”Quanto mais curioso é o ânimo para
indagar das coisas alheias, tanto mais néscio é para conhecer as próprias”. [3]
A dificuldade que sentimos em exercer um
julgamento sobre o próximo é por causa da semelhança de situação: trata-se de
seres feitos da mesma carne, mesmo espírito, com vida terrena compatível entre
si, e por causa disso não passível, em sua essência, de exercer juízo sobre os
outros. Isso ocorre porque, na concepção comum das pessoas, só pode julgar quem
tem autoridade para tanto, aquele que foi investido no cargo de juiz. E isso é
verdade no que diz respeito ao juízo público, mas não no que diz respeito ao
juízo interior, ao juízo particular de cada um. No entanto, tal juízo é
necessário para que possamos nos exercitar na regência mútua e atingirmos a
perfeição para a qual fomos criados, podendo até a chegar a ser público,
conforme o caso, mesmo que não estejamos investidos do cargo apropriado.
[1] Summa,
Questão LX, Art. II (tradução de Alexandre Correia), edição da Escola Superior
de Teologia de São Lourenço de Brindes – Universidade Caxias do Sul – Livraria
Sulina Editora),
[2]
Para se “julgar coisas ocultas” é
necessário clareza de conhecimento, que
é o mesmo que discernimento dos espíritos, necessário também para se
exercer o juízo em certos casos.
[3] Obras de San Buenaventura – vol. V – BAC,
págs. 509/510.
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