sexta-feira, 11 de outubro de 2019

É LÍCITO JULGAR O PRÓXIMO?







Fazer juízo é um ato comum entre os homens, e todos nós o fazemos cotidianamente sem mesmo o perceber. E a maioria das pessoas tem o costume de fazer julgamentos apressados, inclusive considerando apenas a questão da culpabilidade do próximo ou de si mesmo perante algum fato. Quebrou-se algum objeto dentro de casa, surge logo a questão: de quem foi a culpa? Como se o fator culpa fosse o mais importante. Aqui entra um fator muito importante, e que os santos levam em consideração para sua própria perfeição: de quem quer que seja a culpa, o primordial não é isso, mas, sim, que valores estão em jogo quando ocorre esse tipo de coisa, se o do objeto ou se o apego ao mesmo. Quando alguém acusava algum santo (Santa Teresinha do Menino Jesus é um exemplo deste procedimento) de fatos assim corriqueiros, geralmente eles não se desculpavam, julgando que bem poderiam realmente ter cometido aquilo, e, neste ato, estão implicitamente fazendo um justo juízo de si mesmos.
O ato de julgar é, portanto, muito importante em nossa perfeição. Devemos apenas ter cuidado ao exercê-lo, como adverte São Paulo: “E tu, ó homem, que julgas aqueles que fazem tais coisas e (também) as fazes, julgas porventura que escaparás ao juízo de Deus?” (Rom 2, 3)
Vejamos o que diz São Tomás de Aquino sobre a licitude do ato de julgar:
“O segundo se discute assim. – Parece que não é lícito julgar.
1.    – Pois, a pena só é infligida a um ato ilícito. Ora, os que julgam incorrem em pena, em que não incorrem os que não julgam, segundo o Evangelho: “Não julgueis para que não sejais julgados” .(Mt 7, 1);.  Logo, é ilícito julgar.
2.    Demais – A Escritura diz: “Quem és tu, que julga o servo alheio? Para seu senhor está em pé ou cai” (Rm 14, 4) . Ora, o Senhor de todas as coisas é Deus. Logo, a nenhum homem é lícito julgar.
3.    Demais - Nenhum homem é sem pecado, conforme àquilo da Escritura: “”Se dissermos que estamos sem pecado, nós mesmos nos enganamos” (I Jo 1, 8).   Ora, a quem peca não é lícito julgar, conforme àquilo da Escritura: “És inescusável tu, ó homem qualquer, que julgas; porque no mesmo que julgas a outro, a ti mesmo te condenas, porque fazes essas mesmas coisas que julgas” (Rm 2, 1)   . Logo, a ninguém é lícito julgar.
Mas, em contrário, a Escritura: “Estabelecerás juízes e magistrados de todas as tuas portas, para que julguem o povo com retidão de justiça”. (Deut 16, 18)..
SOLUÇÃO  – O juízo é justo na medida em que é um ato de justiça. Ora, como do sobredito resulta, três condições se exigem para que um juízo seja um ato de justiça: primeiro, que proceda de uma inclinação justa; segundo, que proceda da autoridade do chefe; terceiro, que seja proferida pela razão reta da prudência. A falta de qualquer delas torna o juízo vicioso e ilícito. – De um modo quando vai contra a retidão da justiça. E, então, o juízo se chama “pervertido” ou “ injusto”. – De outro modo, quando julgamos daquilo para o que não temos autoridade. E, então, o juízo se chama “usurpado”. – De terceiro modo, quando falta a certeza da razão; assim, quando julgamos do que é duvidoso ou oculto, levados por leves conjecturas. E, então, chama-se o juízo “suspeitoso” ou “temerário”.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA PERGUNTA – O Senhor, no lugar citado, proíbe o juízo temerário que incide sobre a intenção do coração ou sobre outras coisas incertas, como diz Agostinho – Ou proíbe, com as palavras citadas, julgar das cousas divinas, as quais, sendo-nos superiores, não devemos julgá-las, mas simplesmente crê-las, como diz Hilário. – Ou proíbe o juízo não procedente da benevolência, mas, do espírito amargo, como diz Crisóstomo.
RESPOSTA À SEGUNDA – O juiz é constituído ministro de Deus; donde o dizer a Escritura: “”Julgai o que for justo”; e depois acrescenta: “é o juízo de Deus”.
RESPOSTA À TERCEIRA – Os réus de pecados graves não devem julgar os que também o são dos mesmos ou de pecados menores, como diz Crisóstomo àquilo do Evangelho: “Não queirais julgar”. O que sobretudo se deve entender dos pecados públicos; porque então o nosso juízo gera o escândalo nos corações dos outros. Se, porém, não forem públicos, mas ocultos, e, por dever, tivermos que dar o nosso juízo, podemos acusar ou julgar com humildade e temor. Por isso, diz Agostinho: “Se nos encontrarmos no mesmo vício que outrem, gemamos com ele e o incitemos a tornar-se melhor, esforçando-nos também nós para consegui-lo, Nem contudo, por isso, ao julgar os outros, nós nos condenamos, por atrairmos sobre nós um novo motivo de condenação; mas, ao condenar a outrem, mostremo-nos merecedores da mesma condenação, por um pecado igual ou semelhante”..[1]

Indicando que o juízo faz parte da virtude da Sabedoria, assim fala São Boaventura sobre o mesmo:
“A sexta coluna da casa da sabedoria é a maturidade de juízo; e isto se adverte quando diz: “não se meta a julgar”. Há maturidade no juízo quando o homem não julga temerariamente. De onde se diz no Eclesiástico: “O juiz sábio fará justiça ao seu povo”, isto é, ao povo sobre o qual tem autoridade. Mas se passa dos limites da autoridade, não é juiz sábio, senão o juízo será temerário. Se alguém julga sem autoridade, aquele, quem é? Nada, certamente. É necessário também que o juízo do sábio tenha a retidão do zelo e a claridade do conhecimento. Do primeiro se disse: “A boca do justo derramará sabedoria, e a língua falará judiciosamente”. Justo juiz é o que se move por um justo zelo, aprova todo o bem e reprova o mal; porém o que não tem reto zelo não pode julgar bem. O amor e o ódio pervertem o juízo. Se me odeias não podes julgar-me retamente; e por que não? Porque te parece que tudo o que há em mim é mal, - Desta forma é necessário que o juiz tenha a claridade do conhecimento. Como julgaria bem de uma coisa desconhecida? Por isso, quando os inimigos de Job o argüiam que não era justo, dizendo: “O justo Deus não o castiga, e, contudo, a ti te castiga”, quiseram julgar de coisas ocultas.[2] Job, ouvindo estas coisas, respondeu-lhes dizendo: “”Arrependei-vos e vinde, e não encontrarei entre vós nenhum sábio”. Por isso disse o Bem-Aventurado Santiago: “não se meta a julgar”; não quer dizer que o homem não deva julgar, em seu devido lugar e a seu devido tempo, de uma coisa sobre a qual tenha certeza, autoridade e reto zelo, do contrário os homens julgam o mal como bem, e ao contrário, o bem como mal. O homem deve ser mais inclinado a escusar com clemência que a julgar mal. Agora todos são julgados de “sentenças iníquas”. Deve, pois, o homem não ultrapassar os limites da autoridade nem julgar temerariamente sem a retidão de zelo e sem a claridade do conhecimento. São Mateus disse: “Não julgueis aos demais se não quereis ser julgados”. É suma necedade que os homens julguem os defeitos interiores dos outros e não tenham cuidado de si mesmos. São Gregório disse:”Quanto mais curioso é o ânimo para indagar das coisas alheias, tanto mais néscio é para conhecer as próprias”. [3]
A dificuldade que sentimos em exercer um julgamento sobre o próximo é por causa da semelhança de situação: trata-se de seres feitos da mesma carne, mesmo espírito, com vida terrena compatível entre si, e por causa disso não passível, em sua essência, de exercer juízo sobre os outros. Isso ocorre porque, na concepção comum das pessoas, só pode julgar quem tem autoridade para tanto, aquele que foi investido no cargo de juiz. E isso é verdade no que diz respeito ao juízo público, mas não no que diz respeito ao juízo interior, ao juízo particular de cada um. No entanto, tal juízo é necessário para que possamos nos exercitar na regência mútua e atingirmos a perfeição para a qual fomos criados, podendo até a chegar a ser público, conforme o caso, mesmo que não estejamos investidos do cargo apropriado.


[1] Summa, Questão LX, Art. II (tradução de Alexandre Correia), edição da Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes – Universidade Caxias do Sul – Livraria Sulina Editora),
[2] Para se “julgar coisas ocultas” é  necessário clareza de conhecimento, que  é o mesmo que discernimento dos espíritos, necessário também para se exercer o juízo em certos casos.
[3] Obras de San Buenaventura – vol. V – BAC, págs. 509/510.

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