(Análise sobre o espírito de nosso povo feita por Dr. Plinio Corrêa de Oliveira)
Há verdades que aos homens
impressionam como o ouro. Há outras que lhes são suaves e perfumadas como o
incenso.
Quanto à mirra, é mais modesta. A raiz
etimológica dessa palavra se relaciona com o vocábulo "mur", que em
árabe quer dizer "amargo". Os especialistas descrevem a mirra como
uma resina gomosa, em forma de lágrima, dotada de gosto amargo, aromática,
vermelha, semitransparente, frágil e brilhante. Seu odor é agradável, mas um
pouco penetrante. Como se vê, tem ela a beleza discreta, austera, forte, do
sangue. E seu perfume é o da disciplina e da sobriedade.
Diríamos que no campo ideológico a
grande verdade representada pela mirra é o princípio de contradição (*), pelo
qual o sim é sim e o não é não Todas as outras são ouro e incenso, mas só valem
se apreciadas num ambiente perfumado pela mirra. E é desta mirra que larga,
muito, muito largamente necessita o Brasil.
Não se confunda o princípio de
contradição, que é quinta-essência da lógica, da coerência, da objetividade,
com o espírito de contradição. Este é um vício que resulta do prazer
jactancioso de contrariar o próximo: é volúvel, e faz do sim, não e do não sim,
conforme convenha à posição arbitrariamente tomada de momento.
Somos um povo que tem o defeito de
suas qualidades. Propensos habitualmente a tudo que é bom, infelizmente não
somos ao mesmo tempo infensos a tudo quanto é mau. Em geral, os outros povos,
quando amam uma verdade, odeiam o erro que lhe é contrário. E reciprocamente,
quando amam o erro detestam a verdade que a ele se contrapõe. Em última
análise, é pelo jogo desse princípio que se explicam as grandes fidelidades,
como as grandes apostasias. Na psicologia do brasileiro, o ódio explícito e
declarado à verdade e ao bem é raro. Neste sentido somos um dos melhores povos
da terra. Mas quando se trata, para nós, de deduzir do amor à verdade e ao bem
uma atitude militante contra o erro e o mal, o caso é outro. E no fundo isto se
dá porque o princípio de contradição é antipático à pacateza brasileira. Uma
expressão muito conhecida exprime em linguagem popular o princípio de
contradição: "pão, pão; queijo, queijo". Mas em inúmeros casos
confundimos pão com queijo.
Esta tendência de espírito se reflete
em muitos aspectos da nossa mentalidade. O Brasil é uma República. Entretanto,
em nenhum lugar o monarca destronado e a monarquia deixaram mais saudades.
Separamo-nos de Portugal numa atmosfera borrascosa. Entretanto, no tratado em
que a antiga Metrópole reconhecia nossa independência asseguramos a D. João VI
até o fim de seus dias o título de Imperador do Brasil. O quadro corrente, e
por assim dizer oficial do Marechal Deodoro, proclamador da República,
apresenta-o com o peito constelado com as insígnias do Império que derrubou.
Expulsamos em 1930 o Presidente Washington Luiz. Restaurado o regime
constitucional regressou ele ao Brasil num ambiente de respeito e de simpatia
tão gerais, que com exceção de D. Pedro II nenhum homem público reuniu em torno
de si unanimidade maior. Porque então foi destituído? Dessas pitorescas
contradições, poder-se-ia fazer uma longa lista. E o assunto Getúlio Vargas -
ainda quente demais para ser abordado num artigo desta índole - forneceria a
este respeito farta documentação.
Talvez, à vista destas reflexões,
algum leitor sorria, como quem está em presença de um amável desfeito. Pois não
deixa de ter algo de simpático e tranqüilizador um tal cúmulo de bonomia.
Mas estudemos este assunto no terreno
da moral. Trata-se de analisar esta tendência psicológica, para ver se é
conforme à Lei de Deus. E não é com meros sorrisos, mas com muita seriedade que
se resolvem os problemas morais.
Aquele que veio ao mundo para pregar
as Bem-aventuranças, nos deixou por preceito que fossemos fiéis ao princípio de
contradição: "seja vossa linguagem sim, sim; não, não" ( Mt. 5, 37 ).
E se tal deve ser nossa linguagem, tal deve ser nosso pensamento. Em matéria de
moral, mais do que em qualquer outra, todo excesso é um mal, ainda que seja de
qualidades tão simpáticas quanto a bonomia, e a suavidade de trato. E um mal
que conforme o caso pode tornar-se muito grave.
Exemplifiquemos. No terreno religioso,
não é bem verdade que o amortecimento do princípio de contradição nos conduz
com muita freqüência a atitudes lamentáveis? Quantos são os católicos que se
julgam no direito de discordar da Igreja em algum ou em muitos pontos? Com
isto, embora se ufanem de católicos, pecam contra a fé. Porque? Simplesmente
porque imaginam possível um "tertium genus" entre ser católico e não
ser. O mesmo se diga da naturalidade com que se admite entre nós uma categoria
de católicos "não praticantes"! Claro que os há no mundo inteiro. Mas
parece-nos que em nenhum país eles têm tão pouca consciência do que seu estado
apresenta de cacofônico, de antitético, em uma palavra, de contraditório. Por
fim, mais um exemplo. Quantas famílias temos, modelarmente constituídas! Porque
progridem tanto as modas imorais? É que essas famílias, que prezam tanto a
virtude, são por vezes pouco enérgicas no combate ao vício. Em todos estes casos
o que nos falta? Viveza no princípio de contradição lapidarmente definido por
Nosso Senhor, quando mostrou a incompatibilidade entre o "sim" e o
"não".
Este artigo se vai alongando. Não
resisto entretanto ao desejo de indicar outro exemplo. Todos se queixam da
anemia de nossa vida partidária, de nossa atonia em matéria de ideologia
política, e do predomínio das questões pessoais em nossa vida pública. Uma das
causas deste fato está na carência do princípio de contradição. Pois se em face
de uma idéia que temos por certa não nos arregimentamos para a defender
resolutamente contra as que lhe são opostas, como pode haver partidos de
verdadeiro conteúdo ideológico?
O amortecimento do princípio de
contradição gera o gosto, a mania das soluções intermediárias, eu quase diria a
servidão às soluções intermediárias. Dados dois caminhos, escolher sempre o do
meio, o que não é carne nem peixe: é no que se cifra para muita gente toda a
sabedoria. Ora, se rejeitar por princípio as soluções intermediárias é um erro,
erro também é adotá-las por princípio. Pois há casos em que a Sabedoria as
condena formalmente: "Oxalá fosses frio ou quente; mas, como és morno, nem
frio nem quente, começarei a vomitar-te de minha boca" ( Apoc. 3,15-17 ).
A pessoa viciada nas soluções
intermediárias é a vitima ideal de todos os velhacos. Pois a habilidade do
velhaco consiste precisamente em fazer com que o ingênuo aceite, com algum
disfarce, aquilo que, a nu e sem maquilagem, ele repudiaria. Os hereges são
useiros e vezeiros em velhacarias desta natureza. Rejeitado o pelagianismo,
obtiveram eles a adesão de inúmeros ingênuos por meio do semi-pelagianismo.
Condenado o arianismo, puseram eles em circulação o semi-arianismo. Fulminado o
protestantismo, inventaram o baianismo (**) e o jansenismo. Condenados o
comunismo e o socialismo fabricam um "socialismo mitigado", que em
última análise não é senão comunismo velado. E assim por diante.
Que essa tática é particularmente
desenvolvida em nosso tempo, nada mais notório. Estamos no século da 5ª
coluna. E que uma das formas mais hábeis de solapar os meios católicos é esta,
as mais altas Autoridades Eclesiásticas de nossos dias já o disseram. Disse-o
Sua Eminência o Cardeal Saliège, Arcebispo de Toulouse, quando afirmou em
declaração mundialmente famosa, que tudo se passa como se houvesse uma ação
articulada para "preparar no seio do Catolicismo um movimento de acolhida
ao comunismo" ( cf. CATOLICISMO, nº 37, de janeiro de 1954, pág. 8 ).
E assim nada mais perigoso para o
Brasil, nesta hora, do que o amortecimento do princípio de contradição. E nada
mais necessário do que trabalhar para que, em nosso país, este princípio tome
mais força, mais cor, mais eficiência em toda a vida mental.
Não sei se um leitor não brasileiro
compreenderá bem toda esta problemática. Duvido bastante. Mas para um
brasileiro isto é bem mais inteligível. E é inteligível sobretudo para Vós,
Senhor Jesus, que, deitado num berço rústico, sondais entretanto até o fundo as
almas e os corações. Para Vós que, sendo a Sabedoria incriada, e tendo nascido
d'Aquela que é a Sede da Sabedoria, conheceis totalmente a índole de cada povo,
a todos amais, a todos quereis santificar. Para Vós que desde toda a eternidade
tão particularmente amastes o povo brasileiro, e o predestinastes a uma
grandeza que encherá a história de amanhã.
Nossa obra é principalmente de mirra.
Jornal feito para católicos militantes e praticantes, queremos que eles Vos
amem sem mescla de qualquer outro amor. Que só sirvam a um Senhor. Que sejam
cada qual em seu coração uma cidade sem divisão, contra a qual nada pode o
Inimigo. Que não olhem para trás, ao empunhar o arado, e que no afã de semear
não se esqueçam de arrancar a erva daninha.
De certo modo, os católicos militantes
e praticantes são, também eles, sal da terra e luz do mundo. Em parte depende
da cooperação deles que o mundo não se corrompa, nem caia nas trevas. Queremos
que eles sejam um sal muito e muito salgado, uma luz posta no mais alto da
montanha, e muito brilhante. Neste sentido, Senhor, é nossa cooperação. Este o
presente de Natal que acumulamos durante o ano inteiro, para Vos oferecer.
Outros Vos darão o incenso de suas inúmeras obras, capazes de um bem
inapreciável. Nós nos inserimos nessa grande obra queimando em abundância, no
solo bem amado do Brasil, a mirra austera mas odorífera do "sim, sim; não,
não".
Que Maria Santíssima aceite essa mirra
em suas mãos indizivelmente santas e Vo-las ofereça. Ela terá para Vós então o
encanto do ouro, e do incenso, com alguma coisa a mais: e isto lhe virá do
suor, do sangue de alma, e das lágrimas de um apostolado que tem suas horas
muito amargas... Mas na Cruz está a luz. E neste amargor o melhor da alegria e
da beleza de nosso apostolado.
(Plinio
Corrêa de Oliveira - excerto do artigo “Apparuit
Benignas et Humanitas Salvatoris Nostri Dei” - “Catolicismo” Nº 60 - Dezembro
de 1955)
NOTAS
(*) "Princípio de
Contradição", segundo São Tomás de Aquino, é o princípio primeiro e supremo do pensamento, o juízo mais
simples e universal de todos, que se traduz na seguinte verdade: é impossível
que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo. Por ter a evidência primeira
desse princípio o homem é capaz de conhecer e de pensar. Sem percebê-lo, o
aplicamos continuamente. Sem ele, não
conseguiríamos distinguir o que é do que não é, nem um ser de outro; não
teríamos noção da hierarquia que há entre os seres da Criação; não poderíamos
separar o homem da natureza irracional e do cosmo. A partir do "Princípio
de Contradição" e das outras evidências primeiras vinculadas a ele, a
razão não só conhece a distinção universal entre verdade e erro, senão que é
capaz de ir passando do conhecimento de uma coisa a outra. Adquire assim
verdades sucessivas, sempre contrastando, explícita ou implicitamente, o que é
do que não é; o que é mais com o que é
menos; o verdadeiro com o falso.
(**)Baianismo
– doutrina protestante pregada por Miguel de Bay ou Baius (falecido em 1589),
professor de exegese bíblica da universidade de Louvain, na Bélgica.
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