domingo, 14 de agosto de 2022

ALJUBARROTA, UMA GUERRA VENCIDA POR UM SANTO

 


A batalha de Aljubarrota, vencida por São Nuno de Santa Maria, o valoroso Condestável de Portugal, ocorreu em agosto de 1385, época em que os católicos passavam pela terrível crise do “cisma do Ocidente”, quando foi estabelecido em Avignon, na França, a sede do Papado e, depois que o Papa resolveu voltar para Roma, alguns cardeais resolverem eleger um outro papa naquela cidade, criando assim uma divisão, ou um cisma.

O reino de Castela sempre ambicionava tomar Portugal e a controvérsia do cisma ficou patente nessa questão de fronteiras e de domínios territoriais. Já haviam tentado invadir Portugal outras vezes, sem sucesso. Corria entre os castelhanos uma história que os fazia mais temerosos ainda de que obtivessem desta vez uma vitória completa. Ambos os reis, tanto de Portugal quanto de Castela, chamavam-se João I. Antes do primeiro cerco, a rainha-mãe de Castela, D. Joana, mandara alguns emissários consultar um piedoso frade franciscano, de Guimarães, sobre a questão da sucessão papal. Em resposta à consulta, o santo frade respondeu:

- Sabei que a rainha que vos mandou morreu; e que o vosso rei D. João não dará obediência ao Papa Urbano, e por isso Deus o castigará. 

O fato era lembrado pelos castelhanos quando se referiam à forma como tiveram que recuar no primeiro cerco à Lisboa. Agora, o teimoso rei retomava o mesmo caminho. Será que não seria castigado novamente? 

Quando Dom Nuno recebeu o chamado do rei, partiu imediatamente ao seu encontro, contando então com um contingente de quase três mil homens. Reunido com os conselheiros reais, fizeram-no ver que a melhor opção de luta era entrar com o seu exército invadindo a Andaluzia: assim o rei de Castela seria obrigado a recuar para proteger seus territórios. Para todos, seria loucura enfrentar o exército invasor, muito mais poderoso e bem equipado do que o português.

O santo Condestável Nun'Álvares Pereira fez ouvir sua possante voz para verberar a opinião dos tímidos, aqueles mesmos que tinham aconselhado o rei a não deixá-lo perseguir as tropas de Castela no cerco do ano anterior quando fugiam da peste. Desta vez, porém, era diferente. Agora ele era o Condestável do reino, era ele quem decidia os destinos da guerra. E ele estava ali para exercer o seu mando. Entrar na Andaluzia, indo a Sevilha cortar duas oliveiras podres, equivalia a perder Lisboa, e, perdida Lisboa, estava perdido o reino.  Será que era isto o que desejavam aqueles conselheiros tímidos? Abandonar Lisboa, sem capitão, à mercê da fome? Nunca! Tinha prometido por cartas à cidade que vedaria a passagem ao castelhano, e haveria de deixá-la à mercê da pilhagem e do saque? Não, nunca! Se el-rei não quisesse, iria ele sozinho! Mas, mudar de propósito, não mudava.

Foi inútil os argumentos. Todo o conselho foi contrário à opinião de Dom Nuno. Assim, partiu ele resolutamente para ir sozinho cumprir o seu propósito. Foi até seus homens, mandou selar os cavalos e em pouco tempo já estavam a caminho de Tomar, por onde deveria passar o exército castelhano. Os que ficaram no conselho apertavam as mãos na cabeça perante a grande loucura. Após a saída do Condestável, acusaram o mesmo perante o rei de rebeldia e insubmissão às suas ordens. Um conselho, porém, fez o rei tomar uma decisão.

Um entendido em leis, o jurista Gil de Ocem, disse ao rei que ele tinha que jogar todas as cartadas, pois não se podia lutar com o rei de Castela se valendo de estratégias e sim com o jogo da sorte e da vontade firme de vencer a qualquer custo. Deste modo, o Mestre de Avis conseguiria de qualquer forma sair com honra do confronto: se vencesse, a honra de vencedor; se perdesse, a honra de ter se batido com valor a defender sua pátria. Era preciso apoiar Dom Nuno.

Dom João I, de Portugal, sorriu e nesta hora, ao ouvir conselho tão vibrante, viu que a razão estava com o Condestável. Despachou então um emissário a Dom Nuno ordenando que voltasse, mas agora já com o propósito de partirem juntos a fim de combaterem o inimigo. Mas a resposta do Condestável, embora não surpreendesse Dom João I, foi dura:

- Não sou homem de muitos conselhos; tinha tomado a determinação de não deixar passar o rei de Castela e não mudei de opinião. Por mercê, deixe-me continuar no meu caminho. Se o rei quiser vir, encontrar-nos-emos em Tomar.  

Em vez dele voltar, o rei que fosse ao seu encontro. Com sua decisão Dom Nuno procurava salvar e arrastar consigo aqueles homens que poderia perder pela timidez. Enquanto esperava o rei, despachou três emissários ao arraial inimigo. Um deles levava uma carta ao rei de Castela, intimando-o a voltar para seu reino sob pena de sofrer batalha. Os dois outros emissários eram espiões com o objetivo de colher informações sobre as forças inimigas.

Dom João I chegou com sua hoste, que juntou-se à de Dom Nuno. Juntas as duas, via-se quão fracas eram para enfrentar o inimigo. Os nobres portugueses haviam se bandeado quase todos para o exército castelhano, poucos eram aqueles que aderiram ao Mestre. Era um exército bisonho, mal armado, sem homogeneidade, composto de cerca de 10 mil homens, tropas improvisadas para aquele momento e quase sem nenhum preparo.Do efetivo de dez mil, sete mil eram combatentes e o restante formava o pessoal de apoio logístico. Mas havia no comando um anjo celeste, com o dom de operar prodígios com recursos tão parcos.

Quando os espiões voltaram, contaram estarrecidos a Dom Nuno como se formava o exército inimigo. O Condestável, após ouvir o relato dos espias, ficou um pouco pensativo, e depois proibiu-lhes com determinação que não contasse nada daquilo aos outros, mas pelo contrário dissesse que os castelhanos eram poucos e mal treinados. E quando o Condestável ordenava, era obedecido.  Os espiões fielmente contaram aos soldados que os castelhanos eram gente muito descoroçoada... sem ânimo para a luta.

No entanto, o exército castelhano era de bom quilate e muito bem organizado. Tanto aparato e poder, de um exército muito mais vistoso do que forte, no entanto, era comandado por um rei jovem, mas doente e irresoluto. Além da falta de comando, sofria o jovem rei de uma doença que o fazia ficar sempre numa liteira. Temendo que poderia morrer a qualquer hora naquela guerra, havia feito o seu testamento. Esta situação deixava os comandados mais próximos muito inseguros. Ao mesmo tempo, corria entre a tropa miúda muitos receios e superstições, muitos dos quais Dom Nuno era mestre em espalhar no inimigo. Parece até que o Condestável de Portugal, por algum dom de discernimento, sabia onde morava a fraqueza de seus inimigos e não se deixou enganar pelas aparências.

Tanta era a confiança dos castelhanos em sua força e poder, que não procuraram embaraçar os movimentos de Dom Nuno, embora estivessem tão próximos e pudessem faze-lo.  Olhando de cima dos outeiros, Dom Nuno traçou ali mesmo em sua mente o plano de guerra. Saiu dali com todo o projeto da batalha construído em seu espírito. Num relance, percebeu como poderia derrotar o inimigo.

Havia no lugar uma fileira de montes, entre os quais um vale que tinha a passagem vedada para o nascente. Em sentido contrário, para o poente, havia um terreno levemente ondulado que ia terminar num lugar chamado Aljubarrota. Depois de Aljubarrota, segue o caminho para o sul em direção de Alcobaça. Era um terreno que numa parte era amplo, mas ia afunilando com os contrafortes dos morros até se fechar completamente a passagem no nascente. Uma espécie de cunha que obrigaria o grande exército castelhano a se bater contra os portugueses apenas nas partes mais apertadas. Uma verdadeira armadilha natural, que só o espírito meticuloso e santo do Condestável percebia.

Depois de analisar bem tais condições, Dom Nuno voltou ao seu acampamento em Porto de Mós, e nessa noite não conseguiu dormir. O dia ainda não tinha amanhecido e manda tocar a alvorada para preparar a partida. Os padres rezaram missa, os cavaleiros e soldados comungaram preparando-se para uma santa morte.

Enquanto os castelhanos não apareciam, Dom João I passava o tempo armando novos cavaleiros, uma forma de manter a moral da tropa elevada. Era auxiliado pelo arcebispo de Braga, Dom Lourenço, que levava no elmo, em vez de uma pluma, a imagem da Virgem Maria.  Havia escolhido aquele local também com outro propósito: evitar as deserções tão comuns nestas batalhas; era impossível que os soldados fossem tentados a fugir, pois só havia uma saída: para frente onde estava o inimigo.

O Condestável ajoelhou-se e rezou fervorosamente. Trazia uma jaqueta de lã verde bordada de rosas sobre a armadura. Portava a mesma espada que o alfageme lhe preparara em Santarém, e uma adaga que só tirava quando estava na igreja assistindo Missa. Em suas orações fervorosas, prometeu à Virgem Maria construir ali uma igreja em Sua homenagem, e à São Jorge também outra.

Tanto o rei quanto alguns de seus homens, como Dom Nuno, haviam jejuado porque era véspera da Assunção de Nossa Senhora, 14 de agosto.

Os castelhanos tinham tanta confiança na vitória que nem sequer formaram para a batalha, continuaram em ordem de marcha e começaram a mover-se como se estivessem recuando. Sem saber para onde, alguns pensaram que haviam desistido da batalha. Mas não.  Temendo o confronto direto naquela trincheira bem fortalecida, planejavam rodear os montes e atacar pela retaguarda.  Percebendo a manobra, Dom Nuno ordenou que seu exército invertesse as posições, passando a vanguarda para o local onde estava a retaguarda, e esta para onde estava aquela; também mudou a disposição das alas esquerda e direita, trocando-se as posições.

Fortuitamente, a nova disposição era mais favorável aos portugueses. Silenciosa e rapidamente, sem que os castelhanos percebessem, pois estavam circundando as colinas em marcha lenta, Nun'Álvares com sua vanguarda foi se postar na estreita garganta, por entre a retaguarda do rei que abriu passagem. Logo em seguida o mesmo movimento foi feito pelas alas.  Uma das vantagens era que agora a vanguarda ficava mais bem defendida, apertada entre dois ribeiros, reforçada com um fosso e toros de madeira, aproveitando os barrancos do terreno e os matagais, disposição feita por orientação dos amigos ingleses.

Quando os dois exércitos encontravam-se alinhados e prontos para a batalha, surgiu do meio dos castelhanos três parlamentares, fato corriqueiro momentos antes da batalha.  Dom João I acolheu-os e, percebendo que um deles era um dos irmãos de Dom Nuno, Diogo, mandou que o Condestável o recebesse. O irmão veio lhe pedir que passasse para o lado dos castelhanos, pois estava irremediavelmente perdido. A desproporção de forças era muito grande. Dom Nuno, secamente, respondeu que não e mandou-o de volta sem mais dizer palavras.

A batalha começou renhida e de difícil definição nos seus primeiros entrechoques. A luta se resumia no corpo a corpo, pois a cavalaria castelhana não tinha condições de avançar naquele terreno fechado e afunilado.

Do alto, o rei Dom João I viu que a retaguarda havia cedido um pouco. Corajosamente, desceu a colina com seus homens e partiu para frente a fim de defender os homens de Dom Nuno. Contam os cronistas que foi guiado nesta investida por Nossa Senhora das Oliveiras. Estava o rei valorosamente combatendo os inimigos, quando um castelhano o consegue desarmar e lança-o ao chão. Ia desferir o golpe mortal contra o rei, mas surge um português que mata o inimigo e livra o rei da morte iminente. Estando o rei envolvido na frente dos combates, isto foi motivo para animar mais ainda os soldados portugueses. Qual o filho que vê seu pai envolvido numa luta e não dá tudo por ele e por sua causa?

Esta era uma grande diferença entre os dois exércitos. Enquanto no exército português o rei combatia valorosamente, no castelhano o monarca encontrava-se doente e impotente para participar da peleja. Na época em que os reis tinham que mostrar seus valores no comando da batalhas, este fator pesou muito a favor dos portugueses.  E assim, foram eles gradualmente repelindo o assédio inimigo, matando cavalos e ginetes, castelhanos ou não

De longe, o rei de Castela, amarrado a uma mula, febril e confuso, notava que a balança estava pendendo contra ele. Haviam desobedecido sua ordem e estavam atacando o inimigo. Nesta situação, não restava outra opção senão mandar seguir o ataque com mais rigor. De lá onde estava acampado mandou a ordem que avançasse então a segunda linha de ataque, contrariando suas próprias determinações anteriores de aguardar com calma para que o inimigo se rendesse pela fome.

Um perigo começou a ameaçar os portugueses. A batalha que se vencia na vanguarda, começou a ser ameaçada na retaguarda, onde os castelhanos tinham mantido uma grande força de ataque e já iniciavam a investida. O Condestável, que percebia muito bem onde estava o maior perigo, correu imediatamente em socorro de seus homens na retaguarda. Chegando lá, restabeleceu o ânimo de sua tropa, repeliu valorosamente o ataque, conjurando o perigo. Deixando sua retaguarda em ordem e sem perigo iminente, voltou para a vanguarda, excitando em seus homens tal valor e coragem que alguns supunham ter chegado à loucura.

Restabelecidas as linhas de combate, restava agora aguardar o curso dos acontecimentos, que seriam favoráveis ao Condestável.  Em alguns instantes, os castelhanos começam a ceder, a recuar, muitos fogem para não morrer. Quando a soldadesca castelhana voltou-se sobre si e debandou em fuga desordenada, os portugueses gritavam de seu lado:

- Já fogem! Já fogem!

Estávamos numa segunda-feira, dia 14 de agosto de 1385, véspera da festa da Assunção de Nossa Senhora, uma das datas mais memoráveis na história de Portugal.

Foi uma terrível carnificina sobre o inimigo que fugia espavorido. Quando os castelhanos viram a tragédia, rapidamente desmontaram o rei da mula em que estava preso para assistir à luta, e depois o colocaram num veloz cavalo. O rei também foge! A notícia corre e a debandada é maior ainda.  Levaram o rei para Santarém, onde julgavam mais seguro. Aquilo fazia com que a derrota fosse mais irremediável.  Chegando a Santarém, o pobre rei dava punhadas de desespero no rosto, chorando e gritando. Quando seus homens mais importantes chegaram a Santarém para ver o que fazer para reorganizar as tropas, o rei, percebendo a gravidade do desastre, já partira. Regressou rapidamente a Castela.

Graças á Nossa Senhora da Assunção

Mas o Condestável não era destes homens que se embriagava fácil com a vitória. Temia ele que os inimigos, poderosos como eram, poderiam se reorganizar e voltar ao ataque. Além do mais, haviam alguns destacamentos castelhanos que não haviam entrado em combate, os quais estavam recolhendo os feridos e procurando os fugitivos, animando-os para uma nova investida.  O desastre fora uma surpresa inesperada e as perdas, embora consideráveis, não eram bastantes para deixar inativo o exército invasor. 

Prudentemente, Dom Nuno manteve-se em sua posição, fortalecendo seu arraial e armando guardas e vigias preparados para o que desse e viesse. Como sempre fazia em suas batalhas, deixava livre quem quisesse desertar, mas animava aqueles que ficavam fiéis com promessas de grandes legados, de alta estima e consideração, de participação inclusive nos butins, que eram sempre vantajosos.

No dia seguinte, terça-feira, era dia de Nossa Senhora da Assunção, a quem o Condestável e seu rei deviam toda aquela vitória fantástica. Como Dom Nuno viu o campo livre de castelhanos, que haviam fugido, resolveu seguir sozinho em romaria a Ourém, para agradecer à Virgem Maria pelos favores concedidos naquela batalha.  Muitos que o viam passar, imaginavam que estava indo ao enterro do irmão, Pedr'Álvares, morto na batalha. Engano, pois o cadáver de seu irmão não foi encontrado para ser enterrado dignamente.

A notícia correu pelo país. Os castelhanos haviam sido vencidos em Aljubarrota pelo Condestável Dom Nun'Álvares Pereira, o rei deles fugira, o exército deles estava destroçado e sendo caçado em todos os lugares em que estavam. As guarnições castelhanas que haviam em Portugal começavam a fugir com medo. Os alcaides portugueses, que antes temiam apoiar Dom João I, finalmente se pronunciavam. A batalha de Aljubarrota mudava o rumo da nação portuguesa. Muitos agora, antes indecisos, queriam apoiar o rei vitorioso.

No sábado seguinte, dia 19 de agosto, Dom João I entrava em Santarém, reduto invencível dos castelhanos, já como rei vitorioso, aceito como rei inconteste daquele povo. Vinha trazendo a sua coroa com o batismo do sangue, o sacrossanto batismo do sangue da guerra que Dom Nuno a muito tempo o animava a receber.

Enquanto isto, em Lisboa, o povo se regozijava com as notícias que lhe traziam os viajantes. No próprio dia 15 de agosto, já chegara um homem com a notícia de que vira o rei de Castela fugindo; outro contara que a vitória dos portugueses, em Aljubarrota, tinha sido total.  Não havia como duvidar daquelas notícias, trazidas por gente séria. Finalmente, estavam salvos! Estavam livres! Abraçavam-se, bailavam, choravam de alegria. Como bons cristãos que eram, logo formaram uma procissão para agradecer à Nossa Senhora pelos favores celestes, concedidos no dia de tão grande festa.

Mas a guerra, para Dom Nuno, não acabou. Ele havia vencido uma batalha, mas sabia que tinha ainda muitas lutas a travar para finalmente jugular a arrogância de Castela. Não podia dormir sobre os louros daquela vitória. Despediu-se do rei e partiu para o campo de batalha. Antes de tudo, tinha que saldar contas com Nossa Senhora, que o protegera, e assim fez uma romaria a Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. Depois, começou logo a cumprir a promessa de mandar erigir uma igreja em honra de Nossa Senhora no próprio local da batalha.  Dom Nuno era um homem desapegado ao dinheiro, e tudo o que lhe foi dado como ganho em Aljubarrota entregou aos religiosos para iniciar a construção do templo. 

 (Extraído, com adaptações, do livro "A Vida de Nun'Álvares", de Oliveira Martins, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1983).

 


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