Guilherme Marechal foi um nobre inglês que
participou das Cruzada e se fez Cavaleiro da Ordem dos Templários no século
XIII. William Marshal, seu nome verdadeiro, foi o primeiro conde de Pembroke,
nascido em 1146 (1145, segundo outros) e falecido no dia 14 de maio de 1219,
portanto, oito séculos atrás. Assim como El Cid na Península Ibérica foi
considerado o modelo do cavaleiro medieval, Guilherme Marechal foi tido como
“maior cavaleiro de seu tempo”. Como era costume aos cavaleiros cristãos o
serviço, serviu a quatro reis: Henrique II, Ricardo Coração de Leão, João (o
famoso “João Sem Terra”) e Henrique III.
Na Idade Média surgiu o título de marechal
dado a um alto oficial militar responsável pela logística dos exércitos em
guerra, cargo inferior ao de Condestável. No entanto, o personagem em questão
trazia em seu nome já esta denominação (William Marshal), que em português se
traduz hoje por marechal, tudo indicando que foi pioneiro na ostentação do
cargo e que deu origem ao título.
Encontramos numa obra biográfica do
historiador medievalista Georges Duby um relato do que os cronistas deixaram
sobre a morte de tão nobre e católico cavaleiro.
Possuía mais de 70 anos, em 1217, e ainda era
visto em campo de batalha, exibindo vigor e coragem. Era comum que cavaleiros
cristãos, nascidos e criados sob rigorosas disciplinas das ordens de cavalarias
ostentassem tal vigor até à idade senil. Alexandre Herculano conta o caso de um
de tais cavaleiros em seu livro “A Morte do Lidador”: o cavaleiro cristão
Gonçalo Mendes da Maia, o qual, em 1170, aos 95 anos de idade, resolveu
comandar uma última batalha contra os mouros, morrendo em combate mas
provocando a fuga do inimigo. O cavaleiro que comandou as defesas de Malta, em
1565, Jean Parisot de La Vallete, estava aos 70 anos
de idade, mas demonstrou grande vigor e combatividade. No entanto, na Festa da
Candelária, 2 de fevereiro de 1219, Guilherme Marechal “desabou de repente”. De
início, nada revelou de suas dores e passou algum tempo sofrendo, sabendo que
seu fim aproximava-se. Quando não aguentou mais, chamou os médicos, os quais
lhe disseram que tinha poucos dias de vida. A partir daí começou a se preparar
para a morte. Sua primeira decisão foi mandar reunir todos seus homens para
comunicar a proximidade de seu fim. “Precisa desse séquito numeroso para o
grande espetáculo que vai começar, o da morte principesca”, disse Georges Duby.
Pede para o levarem até sua casa, onde poderia ter morte mais digna, ao lado da
esposa, filhos e seus criados.
“Desde que chegam, sua
primeira preocupação é libertar-se do fardo que tanto lhe pesa. Pois o homem
que se aproxima da morte deve desfazer-se pouco a pouco de tudo, começando por
abandonar as honrarias do mundo. Primeiro ato, primeira cerimônia de renúncia.
Ostentoso, como serão também os atos seguintes, pois naquele tempo todas as
belas mortes são verdadeiras festas – elas exibem-se como num teatro, perante
grande número de espectadores, de ouvintes atentos a cada atitude, a cada
palavra, atentos a que o agonizante manifeste seu valor, a que fale e aja
segundo a sua posição, a que legue um verdadeiro exemplo de virtude aos que lhe
vão sobreviver”, comenta o historiador. Em seguida completa: “...aproveitemos
que a grandeza alcançada pelo Marechal o mostre a nossos olhos, brilhando com
luz excepcional, e acompanhemos a cada passo, a cada pormenor, o ritual da
morte à maneira antiga, que não era uma partida furtiva, esquiva, porém numa
chegada lenta, regrada, governada – um prelúdio, passagem solene de uma
condição para outra, superior, mudança de estado tão pública quanto as bodas,
tão majestosa quanto a entrada dos reis em suas leais cidades. A morte quer perdemos, e que talvez nos faça
falta”.[1]
Após decidir sobre o os bens
a legar para seus familiares e fieis soldados, tem que deixar herdeiros também
de seus cargos. Para tanto, manda chamar à sua casa o representante do rei e o
legado papal. Vinham junto alguns barões e outros nobres para assistir o ato do
moribundo. Verdadeira multidão se aglomerou em sua residência, tanto que não
houve espaço para todos. Alguns tiveram que se hospedar num mosteiro próximo.
Ainda exercia o cargo de
tutor do herdeiro do trono, o pequeno Henrique, começando por este suas
despedidas: Pede desculpas por não poder guardá-lo ou protege-lo por mais
tempo, passando a desenvolver um discurso moral ao filho do rei como se o mesmo
fosse seu próprio filho. Admoesta a criança a viver no respeito à moral e
renuncia ao cargo que detivera sem nomear ou recomendar um sucessor, assunto
que pede ainda mais um pouco de tempo para pensar.
Não havia documento
testamentário: bastava a palavra do declarante. Quando, depois, um notário
fosse escrever os documentos legatários bastava que ouvisse aquelas testemunhas
ali presentes para registrar os fatos. Nada era posto em dúvida, todos
respeitavam as decisões do moribundo. Inclusive os cargos públicos, ali também
renunciados em favor de terceiros, presentes ou não naquele momento.
No entanto, o lembram de que precisa também
determinar sobre os preparativos de seu féretro. Sendo assim, determina que
alguém vá num depósito seu e de lá traga dois lençóis de seda, e diz: “Parecem
desbotados? Quero-os abertos. Senhores, olhai bem. Tenho estes panos já faz
trinta anos; quando voltei do Ultramar trouxe-os comigo, para o uso que agora
terão. Haveis de cobrir com eles meu corpo, quando eu for enterrado.”. Ao ser
indagado por um filho onde seria sua sepultura, respondeu: “Bom filho, quando
eu estava no Ultramar dei meu corpo ao Templo para nele repousar após minha
morte. Vós me cobrireis com os lençóis
quando eu morrer. Com eles cobrireis o esquife. E, se fizer mau tempo, comprai
um tecido cinzento, bom e grosso, qualquer tecido, colocai-o por cima para que
a seda não se estrague, e depois que os irmãos templários me enterrarem
deixai-a a eles, para que façam dela o que melhor lhes parecer”.
A partir deste momento se inicia os
preparativos, com carpimentos e vigílias tão comuns em tais ocasiões.
Os preparativos religiosos para sua morte
começam também a ser feitos como de costume. Mas, os cavaleiros templários
davam muita importância ao propósitos feitos na sua Ordem; por isso, os
Templários tinham preferência nos preparativos, embora fosse imprescindível o
ritual católico e as cerimônias e unção dos enfermos na hora determinada. Realçando
tal preferência, assim se referiu o historiador Georges Duby:
“Durante a peregrinação que o fez passar
vários meses na Terra Santa, em 1185, Guilherme Marechal pôde ver em ação, no
auge de seu poder, esses monges guerreiros. Observou-os, expondo o corpo ao
perigo na luta pelo Cristo, enquanto permaneciam estritamente submissos à
disciplina monástica, que lhes impunha obediência sem hesitação ou murmúrio,
nada terem de próprio, não tocarem nas mulheres, renunciarem à jactância, ao
jogo, a tudo o que é ornamento inútil. Admirou-os como alguém que conhecia o
ofício: combatentes, alegres, mais capazes do que ninguém. Julgou que na pessoa
deles se conjugam os méritos das duas categorias dominantes da sociedade
humana, a ordem dos religiosos e a dos
cavaleiros, e que por isso tais homens se postavam, com toda a evidência, na
vanguarda dos que hão de ter o Paraíso. Decidiu, portanto, ainda na Terra
Santa, fazer parte de sua companhia.”
Completa o historiador que todo cavaleiro
deixava para completar sua entrega total á Ordem no momento mais crucial de sua
vida, que é a morte. E era por tais motivos que os Templários tinham
precedência em todos os preparativos ali sendo feitos.
Inicialmente, o mestre que presidia a
cerimônia iniciou um ritual chamado de “passagem”, passagem da cavalaria
simples, a terrestre, para uma “nova cavalaria”, a celeste: “...como dizia São
Bernardo, à cavalaria renovada, a desses “homens novos” que decidiram tornar-se
mais perfeitos”. Para inicio de tal cerimônia vão buscar em seu guarda-roupa o
manto branco com a cruz vermelha. Havia sido costurado para aquela ocasião.
Mas, falta algo ainda a se despedir deste
mundo. Alguns de seus bens de uso particular, como suas belas e suntuosas
roupas. Alguns clérigos sugeriram que doasse para seus cabidos ou conventos,
que seriam vendidos e aplicados os recursos nas igrejas. A certo ponto,
Guilherme Marechal se irrita com os interesses nestas coisas e diz: a um de
seus homens “Por esta fé que deveis a Deus e a mim, mando que façais em meu
nome a divisão de todas as roupas. E, se não houver o bastante para todos,
mandai comprar em Londres o que estiver faltando. Que nenhum dos meus tenha por
que se queixar de mim”.
A 14 de maio de 1219, após uma crise que prenunciava o desfecho da morte iminente, acorrem de imediato o abade de Nutley com seus cônegos, além do outro abade de Reading também acompanhado, trazendo este último, da parte do legado, a absolvição pontifícia com valor de indulgência plenária. Dede o começo de sua doença que confessava-se uma vez por semana; supunha-se, portanto, que estava com a alma preparada para o desenlace final e comparecer na presença de Deus. O historiador não fala, mas é evidente que recebeu a unção dos enfermos, talvez mais de uma vez. Os presentes o viram inclinar-se, persignar-se, adorar a Cruz colocada à sua frente e, finalmente, entregar sua alma a Deus. Morreu um justo.
[1] Os
dados foram extraídos da obra “Guilherme Marechal” – Ou o Melhor Cavaleiro do
Mundo – Georges Duby – Edições Graal Ltda, págs. 9/10 e seguintes)
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