terça-feira, 19 de janeiro de 2021

MORTE DE UM NOBRE CRUZADO



Guilherme Marechal foi um nobre inglês que participou das Cruzada e se fez Cavaleiro da Ordem dos Templários no século XIII. William Marshal, seu nome verdadeiro, foi o primeiro conde de Pembroke, nascido em 1146 (1145, segundo outros) e falecido no dia 14 de maio de 1219, portanto, oito séculos atrás. Assim como El Cid na Península Ibérica foi considerado o modelo do cavaleiro medieval, Guilherme Marechal foi tido como “maior cavaleiro de seu tempo”. Como era costume aos cavaleiros cristãos o serviço, serviu a quatro reis: Henrique II, Ricardo Coração de Leão, João (o famoso “João Sem Terra”) e Henrique III.

Na Idade Média surgiu o título de marechal dado a um alto oficial militar responsável pela logística dos exércitos em guerra, cargo inferior ao de Condestável. No entanto, o personagem em questão trazia em seu nome já esta denominação (William Marshal), que em português se traduz hoje por marechal, tudo indicando que foi pioneiro na ostentação do cargo e que deu origem ao título.

Encontramos numa obra biográfica do historiador medievalista Georges Duby um relato do que os cronistas deixaram sobre a morte de tão nobre e católico cavaleiro.

Possuía mais de 70 anos, em 1217, e ainda era visto em campo de batalha, exibindo vigor e coragem. Era comum que cavaleiros cristãos, nascidos e criados sob rigorosas disciplinas das ordens de cavalarias ostentassem tal vigor até à idade senil. Alexandre Herculano conta o caso de um de tais cavaleiros em seu livro “A Morte do Lidador”: o cavaleiro cristão Gonçalo Mendes da Maia, o qual, em 1170, aos 95 anos de idade, resolveu comandar uma última batalha contra os mouros, morrendo em combate mas provocando a fuga do inimigo. O cavaleiro que comandou as defesas de Malta, em 1565, Jean Parisot de La Vallete, estava aos 70 anos de idade, mas demonstrou grande vigor e combatividade. No entanto, na Festa da Candelária, 2 de fevereiro de 1219, Guilherme Marechal “desabou de repente”. De início, nada revelou de suas dores e passou algum tempo sofrendo, sabendo que seu fim aproximava-se. Quando não aguentou mais, chamou os médicos, os quais lhe disseram que tinha poucos dias de vida. A partir daí começou a se preparar para a morte. Sua primeira decisão foi mandar reunir todos seus homens para comunicar a proximidade de seu fim. “Precisa desse séquito numeroso para o grande espetáculo que vai começar, o da morte principesca”, disse Georges Duby. Pede para o levarem até sua casa, onde poderia ter morte mais digna, ao lado da esposa, filhos e seus criados.

“Desde que chegam, sua primeira preocupação é libertar-se do fardo que tanto lhe pesa. Pois o homem que se aproxima da morte deve desfazer-se pouco a pouco de tudo, começando por abandonar as honrarias do mundo. Primeiro ato, primeira cerimônia de renúncia. Ostentoso, como serão também os atos seguintes, pois naquele tempo todas as belas mortes são verdadeiras festas – elas exibem-se como num teatro, perante grande número de espectadores, de ouvintes atentos a cada atitude, a cada palavra, atentos a que o agonizante manifeste seu valor, a que fale e aja segundo a sua posição, a que legue um verdadeiro exemplo de virtude aos que lhe vão sobreviver”, comenta o historiador. Em seguida completa: “...aproveitemos que a grandeza alcançada pelo Marechal o mostre a nossos olhos, brilhando com luz excepcional, e acompanhemos a cada passo, a cada pormenor, o ritual da morte à maneira antiga, que não era uma partida furtiva, esquiva, porém numa chegada lenta, regrada, governada – um prelúdio, passagem solene de uma condição para outra, superior, mudança de estado tão pública quanto as bodas, tão majestosa quanto a entrada dos reis em suas leais cidades.  A morte quer perdemos, e que talvez nos faça falta”.[1]

Após decidir sobre o os bens a legar para seus familiares e fieis soldados, tem que deixar herdeiros também de seus cargos. Para tanto, manda chamar à sua casa o representante do rei e o legado papal. Vinham junto alguns barões e outros nobres para assistir o ato do moribundo. Verdadeira multidão se aglomerou em sua residência, tanto que não houve espaço para todos. Alguns tiveram que se hospedar num mosteiro próximo.

Ainda exercia o cargo de tutor do herdeiro do trono, o pequeno Henrique, começando por este suas despedidas: Pede desculpas por não poder guardá-lo ou protege-lo por mais tempo, passando a desenvolver um discurso moral ao filho do rei como se o mesmo fosse seu próprio filho. Admoesta a criança a viver no respeito à moral e renuncia ao cargo que detivera sem nomear ou recomendar um sucessor, assunto que pede ainda mais um pouco de tempo para pensar.

Não havia documento testamentário: bastava a palavra do declarante. Quando, depois, um notário fosse escrever os documentos legatários bastava que ouvisse aquelas testemunhas ali presentes para registrar os fatos. Nada era posto em dúvida, todos respeitavam as decisões do moribundo. Inclusive os cargos públicos, ali também renunciados em favor de terceiros, presentes ou não naquele momento.

 Agora, cuidemos da alma

 Julgando haver se desfeito de todos os apegos, bens e cargos deste mundo, o cavaleiro cristão pensa agora em sua própria alma. “Já estou liberto. Mas convém que eu prossiga e cuida de minha alma, já que meu corpo está em perigo de morte, e que, diante de vós, terminei de libertar de todas as coisas da terra para só meditar, agora, nas do Céu”, disse ele. Segundo a mentalidade medieval a morte é o passo mais importante da vida, ocasião em que a pessoa tem que subir ao Céu sem nada que o prenda neste mundo. É como se fosse um segundo nascimento, mais importante até do que o primeiro.

No entanto, o lembram de que precisa também determinar sobre os preparativos de seu féretro. Sendo assim, determina que alguém vá num depósito seu e de lá traga dois lençóis de seda, e diz: “Parecem desbotados? Quero-os abertos. Senhores, olhai bem. Tenho estes panos já faz trinta anos; quando voltei do Ultramar trouxe-os comigo, para o uso que agora terão. Haveis de cobrir com eles meu corpo, quando eu for enterrado.”. Ao ser indagado por um filho onde seria sua sepultura, respondeu: “Bom filho, quando eu estava no Ultramar dei meu corpo ao Templo para nele repousar após minha morte.  Vós me cobrireis com os lençóis quando eu morrer. Com eles cobrireis o esquife. E, se fizer mau tempo, comprai um tecido cinzento, bom e grosso, qualquer tecido, colocai-o por cima para que a seda não se estrague, e depois que os irmãos templários me enterrarem deixai-a a eles, para que façam dela o que melhor lhes parecer”.

A partir deste momento se inicia os preparativos, com carpimentos e vigílias tão comuns em tais ocasiões.

Os preparativos religiosos para sua morte começam também a ser feitos como de costume. Mas, os cavaleiros templários davam muita importância ao propósitos feitos na sua Ordem; por isso, os Templários tinham preferência nos preparativos, embora fosse imprescindível o ritual católico e as cerimônias e unção dos enfermos na hora determinada. Realçando tal preferência, assim se referiu o historiador Georges Duby:

“Durante a peregrinação que o fez passar vários meses na Terra Santa, em 1185, Guilherme Marechal pôde ver em ação, no auge de seu poder, esses monges guerreiros. Observou-os, expondo o corpo ao perigo na luta pelo Cristo, enquanto permaneciam estritamente submissos à disciplina monástica, que lhes impunha obediência sem hesitação ou murmúrio, nada terem de próprio, não tocarem nas mulheres, renunciarem à jactância, ao jogo, a tudo o que é ornamento inútil. Admirou-os como alguém que conhecia o ofício: combatentes, alegres, mais capazes do que ninguém. Julgou que na pessoa deles se conjugam os méritos das duas categorias dominantes da sociedade humana, a ordem dos religiosos  e a dos cavaleiros, e que por isso tais homens se postavam, com toda a evidência, na vanguarda dos que hão de ter o Paraíso. Decidiu, portanto, ainda na Terra Santa, fazer parte de sua companhia.”

Completa o historiador que todo cavaleiro deixava para completar sua entrega total á Ordem no momento mais crucial de sua vida, que é a morte. E era por tais motivos que os Templários tinham precedência em todos os preparativos ali sendo feitos.

Inicialmente, o mestre que presidia a cerimônia iniciou um ritual chamado de “passagem”, passagem da cavalaria simples, a terrestre, para uma “nova cavalaria”, a celeste: “...como dizia São Bernardo, à cavalaria renovada, a desses “homens novos” que decidiram tornar-se mais perfeitos”. Para inicio de tal cerimônia vão buscar em seu guarda-roupa o manto branco com a cruz vermelha. Havia sido costurado para aquela ocasião.

Mas, falta algo ainda a se despedir deste mundo. Alguns de seus bens de uso particular, como suas belas e suntuosas roupas. Alguns clérigos sugeriram que doasse para seus cabidos ou conventos, que seriam vendidos e aplicados os recursos nas igrejas. A certo ponto, Guilherme Marechal se irrita com os interesses nestas coisas e diz: a um de seus homens “Por esta fé que deveis a Deus e a mim, mando que façais em meu nome a divisão de todas as roupas. E, se não houver o bastante para todos, mandai comprar em Londres o que estiver faltando. Que nenhum dos meus tenha por que se queixar de mim”.

 Momentos finais

       Numa das tentativas de fazê-lo alimentar-se, estenderam uma toalha cheia de alimentos. Quando a mesma foi posta, chamou um dos seus homens e perguntou: “Enxergarás o mesmo que eu? – Senhor, não sei o que estás vendo. – Pois juro que vejo dois homens brancos: um à minha direita, outro à esquerda; jamais vi homens tão belos”. Como o outro dizia não está vendo nada, concluir o conde: “Abençoado seja Deus Nosso Senhor, que até hoje me conferiu tantas graças”. Não foi confirmado se tais homens que ele viu eram anjos ou santos que lhe haviam aparecido. Não o disse.

A 14 de maio de 1219, após uma crise que prenunciava o desfecho da morte iminente, acorrem de imediato o abade de Nutley com seus cônegos, além do outro abade de Reading também acompanhado, trazendo este último, da parte do legado,  a absolvição pontifícia com valor de indulgência plenária. Dede o começo de sua doença que confessava-se uma vez por semana; supunha-se, portanto, que estava com a alma preparada para o desenlace final e comparecer na presença de Deus. O historiador não fala, mas é evidente que recebeu a unção dos enfermos, talvez mais de uma vez. Os presentes o viram inclinar-se, persignar-se, adorar a Cruz colocada à sua frente e, finalmente, entregar sua alma a Deus. Morreu um justo.


[1] Os dados foram extraídos da obra “Guilherme Marechal” – Ou o Melhor Cavaleiro do Mundo – Georges Duby – Edições Graal Ltda, págs. 9/10 e seguintes)


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