quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A MORTE DE UM REI CATÓLICO E SANTO

 



Falamos de São Fernando III, rei de Castela. Corria o ano de 1252, quase quatro anos tinham se passado desde a conquista de Sevilha e São Fernando ainda mantinha sua corte naquela cidade. No final do mês de maio o calor já prenunciava um verão rigoroso. Ao retornar de uma visita de rotina que sempre fazia, o rei tem uma súbita recaída de uma doença que já tivera tempos atrás. Levaram-no ao leito e assim que repousou um pouco e pôde falar, disse aos que estavam ao seu lado:

- Cumprido é o tempo de minha vida e chegada a hora em que hei de morrer.

Assim, com muita naturalidade, sem dar nenhum sinal de pena por ter que renunciar a sua glória e seu poder, o santo rei informa da sua morte que se aproxima. Manifesta-se inteiramente conformado com a vontade de Deus.

O médico de São Fernando era um judeu convertido, Judá Bem Joseph, e logo que acorreu ao chamado urgente para assistir ao enfermo, informou a todos que nada mais poderia fazer. Quando o Infante Dom Alfonso, filho mais velho do rei, perguntou ao médico o que achava do estado de seu pai, o judeu simplesmente baixou a cabeça, indicando que ele tinha razão e que a morte estava bem próxima.

São Fernando preocupado com sua alma, pediu logo que lhe trouxessem o Viático. Enquanto os clérigos preparavam a comitiva que ia lhe trazer o Rei dos reis, o santo rei, humilde e contritamente, se preparava para os solenes instantes finais de sua vida. Pediu que lhe vestissem sua mais vistosa roupa de festas, um brial branco e dourado. Em homenagem à realeza de Cristo mandou tirar de seu quarto tudo que lembrasse a humana majestade: não queria ver mais sua coroa, seu cetro e outros objetos que lembrassem-lhe o poder material a fim de que nenhum pensamento lhe afastasse do reino eterno.

Perante o seu leito armaram um formoso altar ornamentado com damasco de cor púrpura e finíssimas alfaias brancas de linho. Foi colocado ao centro do mesmo um belíssimo crucifixo para lhe lembrar a Paixão do Senhor, ladeado por seis candelabros de prata maciça e lindos círios acesos. Um após outro foram chegando os filhos e os irmãos do rei. Ali estavam também sua esposa, a rainha D. Joana, e todos os ricos-homens e nobres da corte. São Fernando mantinha os olhos fechados e permanecia completamente absorto em suas orações.  No silêncio do quarto só se ouviam a respiração ofegante do doente, os soluços mal contidos e o crepitar das chamas dos círios.

 

Um rei confessa humildemente seus pecados

Repentinamente, ouviu-se o tinir de uma sineta de prata se aproximando. Neste momento o rei abriu os olhos e olhou em direção da porta por onde ia entrar o Viático. Por ela entraram em cortejo os clérigos, frades e cavaleiros, conduzindo círios acesos, dando ao ambiente um ar de celestial bênção divina. Logo atrás vinha um frade portando um cálice de ouro contendo o Santíssimo Sacramento. Ao contemplá-Lo à pequena distância de seu leito o rei sentiu-se tomado de uma santa alegria e uma poderosa energia do amor divino encheu sua alma de novo ânimo. Isto foi o bastante para lhe dar forças para se erguer do leito e prostrar-se de joelhos no chão de mármore, declarando-se réu pecador perante Deus e entregando sua realeza humana à divina ali presente.

Junto ao altar estava o arcebispo Dom Remondo, já pronto com os ornamentos pontificais e aguardando para iniciar a cerimônia. Porém antes de tudo o rei falou:

- Dai-me primeiro a Santa Cruz para que ante ela me arrependa completamente de meus pecados.  

            Puseram a Cruz em suas mãos, e ele, fixando nela os seus olhos começou a chorar com amargas lágrimas, dizendo:

            - “Vês-me aqui Senhor, Jesus Cristo, em Tua presença como réu muito mau, pois bem sei e conheço os muitos pecados com que te ofendi. Mas por maiores que sejam eu confio em vossa misericórdia que pelos méritos de vossa Santa Paixão e morte preciosíssima me hás de os perdoar. Lembra-te Senhor de tantas afrontas e tormentos que por mim passaste, pelas quais tendes o nome de Salvador, livra a este teu servo de seus pecados, que de tuas penas foram causa”.

            A nobreza real aqui dá-se às mãos com a santidade, e a virtude que mais brilha não é do poder majestático mas da humildade. O rei pára um pouco sua oração com a voz embargada pelo sentimento de contrição. Um instante depois, continua:

            - “Muito me pesa Senhor da morte que com meus pecados te dei, e porque a tua Santa Igreja me os perdoe eu os quero confessar, porque os maus exemplos que eu dei a estes meus vassalos que aqui estão sejam apagados com saberem que muito os aborreço e muito quisera nunca os haver praticado...”

E humildemente, contritamente, com arrependimento sincero, foi manifestando em voz alta aquilo que ele supunha terem sido os pecados de sua vida, desde os que praticara na meninice até as últimas faltas do fim da vida. Cobria-se de vergonha a nobre face, mesmo considerando-se que suas faltas eram tão somente algumas falhas inevitáveis que sua consciência acusava como pecados, parecendo-lhe grandes culpas a ponto de lhe doer o íntimo de sua alma, julgando que tinha de passar por aquela vergonhosa declaração pública para obter o perdão e satisfazer a justiça divina. Um dos aspectos mais admirativos da bondade é este sentimento de arrependimento e que todo santo possui até este ponto máximo, mesmo que houvesse cometido os pecados mais abomináveis este sentimento o faria arrepender-se, humilhar-se e obter o perdão divino.

Em seguida o santo moribundo fez uma espécie de Ato de Contrição:

- “Bem merecida é toda esta confusão em minha alma por causa de meus pecados, e Tu, Senhor, a quiseste passar fazendo-os teus, e estando na presença de Deus Pai como se estivesse vestido deles e da grande vergonha que tiveste viestes a suar sangue...  E logo fostes atraiçoado por um dos teus, vestido por um saião e amarrado por grossas cordas... E tu o sofreste para que eu ficasse livre! E levaram-te, Senhor, para ser julgado por Anás, Caifás e Pilatos, e tu permanecestes em pé ante eles como se fosse um réu...  E eu, que tantos males fiz, tenho julgado Castela e Leão!  E isto foram as tuas afrontas, e deram-te punhadas, cuspiram-te o rosto, para que eu, homem pecador, fosse por todos honrado...  E dominaram-te os homens de Pilatos e deram-te açoites muito terríveis; e enquanto tu o sofrias, eu estava em regalos!... E puseram-te uma coroa de espinhos na cabeça, o cetro, e a púrpura vil, e sendo tu assim zombado eu tenho sido por todos obedecido! E condenaram-te, meu Senhor, a morrer na Cruz por causa de minha vileza, e levaste o madeiro pelas costas até o Calvário e nele te deixaste cravar e quiseste morrer para que eu fosse contigo ao Paraíso”.

Ao dizer estas últimas palavras novo pranto afogou a voz do rei, e aquela altiva cabeça, sempre erguida nas memoráveis batalhas, caiu rendida sobre o peito, vencida pelo amor e pela dor, deixando resvalar em sua face grossas lágrimas. Batendo com o punho fechado fortemente no peito, terminou sua confissão:

- “Já que com a vossa morte me ganhaste, eu peço, Senhor, por intermédio da vossa Santa Igreja, e a vós, meu Padre Arcebispo, que queirais os meus pecados perdoar”.

Em seguida o arcebispo ergue pausada e solenemente a mão, e fazendo um Sinal da Cruz bem grande lhe dirige a absolvição dos pecados; pergunta-lhe se crê em Deus Uno e Trino, ao que o rei responde:

- “Creio n’Aquele que é Deus verdadeiro e eterno, e aquele que é nos revelou a Sua glória o creio pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo. E creio que o Filho se fez homem nas entranhas da gloriosa Santa Maria Virgem, e creio e aprovo todas as coisas que crê e ensina a nossa Santa Madre Igreja”.

Quando o arcebispo tomou a Sagrada Hóstia e a elevou ao alto com as mãos, São Fernando levantou a cabeça e fixou-a com uma indescritível expressão de fé e amor a adorá-la. Recebeu o Sagrado Corpo de Cristo e ficou absorto em seus pensamentos, fazendo ações de graças e de adoração numa união real e verdadeira com o Seu Rei eterno.

Após ministrar os sacramentos ao rei, a devota procissão sai de seu aposento rezando as orações de costume. Olhando-a afastar-se, o rei pede então que tirem a túnica que haviam lhe vestido, permanecendo bom tempo imóvel, com a cabeça encostada aos travesseiros, em profunda meditação. Chorava baixo a rainha à sua cabeceira e os filhos que lhe rodeavam o leito esperavam o momento da última bênção.

 

São Fernando despede-se dos seus

Após alguns instantes, São Fernando levanta os olhos para os filhos e passa a chamar o mais velho, o Infante Dom Alfonso:

- Filho Alfonso, aproxima-te.

Pôs-se o Infante de joelhos ao lado de seu pai a espera de sua bênção. São Fernando levanta então a mão direita e, um tanto rápido porque sentia perder as forças, o abençoou. Pegou a mão direita do filho e a colocou entre as suas, dizendo:

- “Filho, vede como se acaba a minha vida e a fim só de dar minha alma Àquele que a criou a redimiu. Amanhã sereis rei de todos estes reinos de Castela e de Leão. Teme, ama, obedece e serve a Deus, e juntando com Ele a tua vontade e obras tu terás um bom fim. Não deixes de fazer o bem enquanto puderes, cá na terra é as boas obras que salvam a alma, e tudo o mais seja para ti apenas ilusão. Mantém os povos com justiça e veja que muito te peço seguir até o fim de tua vida a obra de escrever aos outros reis como o havemos começado. Olha para teus irmãos e se propõe a os proteger, e assim estejas com eles de tal forma que não lhes cause pesar haverem nascidos depois. Tem a rainha como se fosse tua mãe, fazendo-lhe toda honra, como se convém a uma rainha.  Outrossim, vos recomendo ao meu irmão, também chamado Alfonso, e a todos os outros meus irmãos e irmãs. Honra a todos os grandes cavaleiros e ricos-homens de teus reinos, fazendo-lhes sempre muita bondade e mercês, guardando bem os seus domínios, seus direitos e suas liberdades, tanto a eles quanto a seus povos”.

São Fernando começou a sentir as forças diminuírem, por isso fez uma pausa para tomar alento, e olhando novamente com fixidez para os olhos do filho concluiu sua bênção com grande gravidade:

- “Se tudo isto que vos recomendo, e rogo, e mando, compreenderes e o fazeis assim, tereis a minha bênção: e se não, a minha maldição”.

- Amém – Respondeu Dom Alfonso com a voz embargada, sentindo calafrio por causa da importância de tais palavras.

Todos os filhos que estavam ali presentes foram se aproximando, um a um, do leito do rei e recebendo suas bênçãos. Ao chegar a vez do filho Dom Manuel, rapaz de uns dezoito anos, acompanhou-o seu aio, Dom Pedro López de Ayala, o qual disse a São Fernando enquanto o infante se punha de joelhos:

- Senhor, em atenção a algo que lhe servi, por mercê vos peço que não deixes sem herança este vosso filho.

São Fernando estava muito esgotado e desfalecendo. Mas mesmo assim, encontrou forças para controlar as emoções e dirigir palavras confortadoras para o filho. Levantou a mão e a pousou sobre a fronte do mesmo, dizendo:

- “Filho, vós sois o último filho que eu tive da rainha D. Beatriz, que foi muito santa e muito boa mulher, e sei que vos amava muito. Outrossim, não tenho dela herança nenhuma que vos possa dar...  mas vos dou a minha espada Lobera, que é coisa de grandíssima virtude e com a qual me fez Deus muito bem”.

Desejou ficar só, mas ao ver que todos tencionavam sair chamou mais uma vez seu herdeiro do trono, Dom Alfonso, que tanto havia amado e honrado e a quem tanto confiava:

- “Filho, ficas rico da terra e de muitos bons vassalos, mais do que seja rei na cristandade; proponha-te em fazer o bem e ser bom, que bem entendes a razão; tornas-te senhor de toda a terra que vai desde esta parte marítima que os mouros antigamente haviam ganho de Dom Rodrigo de Espanha; fica toda esta terra em teu poder: uma parte conquistada, outra tributada; no estado em que eu as te deixo as sabereis manter, se fores tão bom rei quanto eu; e se ganhares para ti mais, serás melhor que eu; e se pelo contrário as perde, não serás tão bom quanto eu”.

Logo depois foram saindo todos para deixar o rei sozinho. Saiu a rainha apoiada por suas damas; saíram os infantes, seus filhos, seus irmãos, os ricos-homens, todos passando ante o moribundo e beijando por despedida a fria mão estendida e trêmula. São Fernando apenas os observava compassivamente lançando um olhar de despedida, sem mais nada dizer porque o cansaço e a estrema fraqueza não lhe permitiam mais esforços.

Quando seu Mordomo, Dom Rodrigo González Girón, passou perante o rei, ainda se atreveu a perguntar:

- Como quereis, senhor, que façamos a estátua de vosso sepulcro?

E o rei deu-lhe esta resposta sincera e desdenhosa para as humanas vaidades:

- A minha vida sem repreensão nem culpa, à maneira do que me foi possível, e as minhas obras sejam meu sepulcro e estátua.

Ficaram dentro da câmara real apenas os clérigos e os frades, únicas companhias que o rei desejava em sua hora suprema. Ao seu lado, em cima de uma mesinha, encontrava-se a imagem da Virgem das Batalhas ajudando-o a obter vitória nesta batalha final. De súbito fixou São Fernando os olhos no alto, transfigurando seu rosto numa felicidade inefável, de tal forma que lhe tirou o sentido do sofrimento de sua agonia. Assim permaneceu algum tempo, e já o tinham como morto, quando tornando a si sorriu muito alegre e lhes disse:

- Chegada é a hora... dai-me a lamparina.

E voltando a levantar os olhos, como a falar com Deus prosseguiu:

- “Senhor, deste-me reino que não tinha e honra e poder mais que eu merecia. Deste-me vida, esta não durável quanto foi tua vontade. Senhor, graças te dou, e rendo-te e entrego-te o reino que me deste com aquele aprovisionamento que eu pude fazer, e ofereço-te a minha alma”.

Olhando em volta para os religiosos, disse:

- “Eu sinto muito por alguma falta que tenha cometido, sabendo-as vós de alguma que ma perdoeis”.

Todos responderam, chorando:

- Rogamos a Deus que vos perdoe, que de nós estais perdoado.

Tomou então a candeia com ambas as mãos e ainda encontrou forças para alçá-la ao alto enquanto dizia:

- “Senhor, nu saí do ventre de minha mãe, que era a terra, e despido me ofereço a ela, e, Senhor, recebe a minha alma na companhia de teus servos”.

Logo começou o estertor da agonia, o suor impregnando os cabelos e caindo na lívida fronte, rolando em grossas gotas até molhar as almofadas. Com as vozes embargadas pelo pranto os religiosos entoaram em coro a Ladainha de Todos os Santos. Estava chegando o fim, fixou novamente São Fernando os olhos naquele ponto onde para ele se abria o céu.  E ainda falou a todos:

- Cantai o Te Deum!

Sua voz saiu com transportes de júbilos, indicando que em seu êxtase via coisas maravilhosas. Que via ele? Os anjos, os santos? Sua Mãe Santíssima, a Santa Maria das Batalhas? Ou o Rei Eterno, Jesus Cristo com a Santíssima Trindade?  Pausadamente, São Fernando foi fechando os olhos, guardando para sempre neles aquela visão que antecedera sua entrada no céu. A rosada face tornou-se alva, como se fosse de um finíssimo marfim, os lábios ficaram entreabertos, num gesto misto de supremo anelo e fruição inefável... o santo rei, Fernando de Castela, entrava na última e mais nobre de todas as conquistas, o Reino dos Céus. “Te Dominum fitemur”, seguiam cantando os que faziam o coro junto seu corpo já inerte. 

Sua festa é celebrada no dia de seu falecimento, ocorrido a 30 de maio de 1252.

 (Relato extraído do livro “Nuestra Señora en el Arzon”, de C. Fernandez de Castro, A. C. J., publicada em 1948 pela Editora Escelicer, S.L., de Cádiz, Espanha)


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