- Cumprido é o tempo
de minha vida e chegada a hora em que hei de morrer.
Assim, com muita
naturalidade, sem dar nenhum sinal de pena por ter que renunciar a sua glória e
seu poder, o santo rei informa da sua morte que se aproxima. Manifesta-se
inteiramente conformado com a vontade de Deus.
O médico de São
Fernando era um judeu convertido, Judá Bem Joseph, e logo que acorreu ao
chamado urgente para assistir ao enfermo, informou a todos que nada mais
poderia fazer. Quando o Infante Dom Alfonso, filho mais velho do rei, perguntou
ao médico o que achava do estado de seu pai, o judeu simplesmente baixou a
cabeça, indicando que ele tinha razão e que a morte estava bem próxima.
São Fernando
preocupado com sua alma, pediu logo que lhe trouxessem o Viático. Enquanto os
clérigos preparavam a comitiva que ia lhe trazer o Rei dos reis, o santo rei,
humilde e contritamente, se preparava para os solenes instantes finais de sua
vida. Pediu que lhe vestissem sua mais vistosa roupa de festas, um brial branco
e dourado. Em homenagem à realeza de Cristo mandou tirar de seu quarto tudo que
lembrasse a humana majestade: não queria ver mais sua coroa, seu cetro e outros
objetos que lembrassem-lhe o poder material a fim de que nenhum pensamento lhe
afastasse do reino eterno.
Perante o seu leito
armaram um formoso altar ornamentado com damasco de cor púrpura e finíssimas
alfaias brancas de linho. Foi colocado ao centro do mesmo um belíssimo
crucifixo para lhe lembrar a Paixão do Senhor, ladeado por seis candelabros de
prata maciça e lindos círios acesos. Um após outro foram chegando os filhos e
os irmãos do rei. Ali estavam também sua esposa, a rainha D. Joana, e todos os
ricos-homens e nobres da corte. São Fernando mantinha os olhos fechados e
permanecia completamente absorto em suas orações. No silêncio do quarto só se ouviam a
respiração ofegante do doente, os soluços mal contidos e o crepitar das chamas
dos círios.
Um rei
confessa humildemente seus pecados
Repentinamente,
ouviu-se o tinir de uma sineta de prata se aproximando. Neste momento o rei
abriu os olhos e olhou em direção da porta por onde ia entrar o Viático. Por
ela entraram em cortejo os clérigos, frades e cavaleiros, conduzindo círios
acesos, dando ao ambiente um ar de celestial bênção divina. Logo atrás vinha um
frade portando um cálice de ouro contendo o Santíssimo Sacramento. Ao
contemplá-Lo à pequena distância de seu leito o rei sentiu-se tomado de uma
santa alegria e uma poderosa energia do amor divino encheu sua alma de novo
ânimo. Isto foi o bastante para lhe dar forças para se erguer do leito e prostrar-se
de joelhos no chão de mármore, declarando-se réu pecador perante Deus e
entregando sua realeza humana à divina ali presente.
Junto ao altar estava
o arcebispo Dom Remondo, já pronto com os ornamentos pontificais e aguardando
para iniciar a cerimônia. Porém antes de tudo o rei falou:
- Dai-me primeiro a
Santa Cruz para que ante ela me arrependa completamente de meus pecados.
Puseram a Cruz em suas mãos, e ele,
fixando nela os seus olhos começou a chorar com amargas lágrimas, dizendo:
- “Vês-me aqui Senhor, Jesus Cristo,
em Tua presença como réu muito mau, pois bem sei e conheço os muitos pecados
com que te ofendi. Mas por maiores que sejam eu confio em vossa misericórdia
que pelos méritos de vossa Santa Paixão e morte preciosíssima me hás de os
perdoar. Lembra-te Senhor de tantas afrontas e tormentos que por mim passaste,
pelas quais tendes o nome de Salvador, livra a este teu servo de seus pecados,
que de tuas penas foram causa”.
A nobreza real aqui dá-se às mãos
com a santidade, e a virtude que mais brilha não é do poder majestático mas da
humildade. O rei pára um pouco sua oração com a voz embargada pelo sentimento
de contrição. Um instante depois, continua:
- “Muito me pesa Senhor da morte que
com meus pecados te dei, e porque a tua Santa Igreja me os perdoe eu os quero
confessar, porque os maus exemplos que eu dei a estes meus vassalos que aqui
estão sejam apagados com saberem que muito os aborreço e muito quisera nunca os
haver praticado...”
E humildemente, contritamente, com
arrependimento sincero, foi manifestando em voz alta aquilo que ele supunha
terem sido os pecados de sua vida, desde os que praticara na meninice até as
últimas faltas do fim da vida. Cobria-se de vergonha a nobre face, mesmo
considerando-se que suas faltas eram tão somente algumas falhas inevitáveis que
sua consciência acusava como pecados, parecendo-lhe grandes culpas a ponto de
lhe doer o íntimo de sua alma, julgando que tinha de passar por aquela
vergonhosa declaração pública para obter o perdão e satisfazer a justiça
divina. Um dos aspectos mais admirativos da bondade é este sentimento de
arrependimento e que todo santo possui até este ponto máximo, mesmo que
houvesse cometido os pecados mais abomináveis este sentimento o faria
arrepender-se, humilhar-se e obter o perdão divino.
Em seguida o santo
moribundo fez uma espécie de Ato de Contrição:
- “Bem merecida é
toda esta confusão em minha alma por causa de meus pecados, e Tu, Senhor, a
quiseste passar fazendo-os teus, e estando na presença de Deus Pai como se
estivesse vestido deles e da grande vergonha que tiveste viestes a suar
sangue... E logo fostes atraiçoado por
um dos teus, vestido por um saião e amarrado por grossas cordas... E tu o
sofreste para que eu ficasse livre! E levaram-te, Senhor, para ser julgado por Anás,
Caifás e Pilatos, e tu permanecestes em pé ante eles como se fosse um
réu... E eu, que tantos males fiz, tenho
julgado Castela e Leão! E isto foram as
tuas afrontas, e deram-te punhadas, cuspiram-te o rosto, para que eu, homem
pecador, fosse por todos honrado... E
dominaram-te os homens de Pilatos e deram-te açoites muito terríveis; e
enquanto tu o sofrias, eu estava em regalos!... E puseram-te uma coroa de
espinhos na cabeça, o cetro, e a púrpura vil, e sendo tu assim zombado eu tenho
sido por todos obedecido! E condenaram-te, meu Senhor, a morrer na Cruz por
causa de minha vileza, e levaste o madeiro pelas costas até o Calvário e nele
te deixaste cravar e quiseste morrer para que eu fosse contigo ao Paraíso”.
Ao dizer estas
últimas palavras novo pranto afogou a voz do rei, e aquela altiva cabeça,
sempre erguida nas memoráveis batalhas, caiu rendida sobre o peito, vencida
pelo amor e pela dor, deixando resvalar em sua face grossas lágrimas. Batendo
com o punho fechado fortemente no peito, terminou sua confissão:
- “Já que com a vossa
morte me ganhaste, eu peço, Senhor, por intermédio da vossa Santa Igreja, e a
vós, meu Padre Arcebispo, que queirais os meus pecados perdoar”.
Em seguida o
arcebispo ergue pausada e solenemente a mão, e fazendo um Sinal da Cruz bem
grande lhe dirige a absolvição dos pecados; pergunta-lhe se crê em Deus Uno e
Trino, ao que o rei responde:
- “Creio n’Aquele que
é Deus verdadeiro e eterno, e aquele que é nos revelou a Sua glória o creio
pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo. E creio que o Filho se fez homem
nas entranhas da gloriosa Santa Maria Virgem, e creio e aprovo todas as coisas
que crê e ensina a nossa Santa Madre Igreja”.
Quando o arcebispo
tomou a Sagrada Hóstia e a elevou ao alto com as mãos, São Fernando levantou a
cabeça e fixou-a com uma indescritível expressão de fé e amor a adorá-la.
Recebeu o Sagrado Corpo de Cristo e ficou absorto em seus pensamentos, fazendo
ações de graças e de adoração numa união real e verdadeira com o Seu Rei
eterno.
Após ministrar os
sacramentos ao rei, a devota procissão sai de seu aposento rezando as orações
de costume. Olhando-a afastar-se, o rei pede então que tirem a túnica que
haviam lhe vestido, permanecendo bom tempo imóvel, com a cabeça encostada aos
travesseiros, em profunda meditação. Chorava baixo a rainha à sua cabeceira e
os filhos que lhe rodeavam o leito esperavam o momento da última bênção.
São
Fernando despede-se dos seus
Após alguns
instantes, São Fernando levanta os olhos para os filhos e passa a chamar o mais
velho, o Infante Dom Alfonso:
- Filho Alfonso,
aproxima-te.
Pôs-se o Infante de
joelhos ao lado de seu pai a espera de sua bênção. São Fernando levanta então a
mão direita e, um tanto rápido porque sentia perder as forças, o abençoou.
Pegou a mão direita do filho e a colocou entre as suas, dizendo:
- “Filho, vede como
se acaba a minha vida e a fim só de dar minha alma Àquele que a criou a
redimiu. Amanhã sereis rei de todos estes reinos de Castela e de Leão. Teme,
ama, obedece e serve a Deus, e juntando com Ele a tua vontade e obras tu terás
um bom fim. Não deixes de fazer o bem enquanto puderes, cá na terra é as boas
obras que salvam a alma, e tudo o mais seja para ti apenas ilusão. Mantém os
povos com justiça e veja que muito te peço seguir até o fim de tua vida a obra
de escrever aos outros reis como o havemos começado. Olha para teus irmãos e se
propõe a os proteger, e assim estejas com eles de tal forma que não lhes cause
pesar haverem nascidos depois. Tem a rainha como se fosse tua mãe, fazendo-lhe toda
honra, como se convém a uma rainha.
Outrossim, vos recomendo ao meu irmão, também chamado Alfonso, e a todos
os outros meus irmãos e irmãs. Honra a todos os grandes cavaleiros e
ricos-homens de teus reinos, fazendo-lhes sempre muita bondade e mercês,
guardando bem os seus domínios, seus direitos e suas liberdades, tanto a eles
quanto a seus povos”.
São Fernando começou
a sentir as forças diminuírem, por isso fez uma pausa para tomar alento, e
olhando novamente com fixidez para os olhos do filho concluiu sua bênção com
grande gravidade:
- “Se tudo isto que
vos recomendo, e rogo, e mando, compreenderes e o fazeis assim, tereis a minha
bênção: e se não, a minha maldição”.
- Amém – Respondeu
Dom Alfonso com a voz embargada, sentindo calafrio por causa da importância de
tais palavras.
Todos os filhos que
estavam ali presentes foram se aproximando, um a um, do leito do rei e
recebendo suas bênçãos. Ao chegar a vez do filho Dom Manuel, rapaz de uns
dezoito anos, acompanhou-o seu aio, Dom Pedro López de Ayala, o qual disse a São
Fernando enquanto o infante se punha de joelhos:
- Senhor, em atenção
a algo que lhe servi, por mercê vos peço que não deixes sem herança este vosso
filho.
São Fernando estava
muito esgotado e desfalecendo. Mas mesmo assim, encontrou forças para controlar
as emoções e dirigir palavras confortadoras para o filho. Levantou a mão e a
pousou sobre a fronte do mesmo, dizendo:
- “Filho, vós sois o
último filho que eu tive da rainha D. Beatriz, que foi muito santa e muito boa
mulher, e sei que vos amava muito. Outrossim, não tenho dela herança nenhuma
que vos possa dar... mas vos dou a minha
espada Lobera, que é coisa de grandíssima virtude e com a qual me fez Deus
muito bem”.
Desejou ficar só, mas
ao ver que todos tencionavam sair chamou mais uma vez seu herdeiro do trono,
Dom Alfonso, que tanto havia amado e honrado e a quem tanto confiava:
- “Filho, ficas rico
da terra e de muitos bons vassalos, mais do que seja rei na cristandade;
proponha-te em fazer o bem e ser bom, que bem entendes a razão; tornas-te
senhor de toda a terra que vai desde esta parte marítima que os mouros
antigamente haviam ganho de Dom Rodrigo de Espanha; fica toda esta terra em teu
poder: uma parte conquistada, outra tributada; no estado em que eu as te deixo
as sabereis manter, se fores tão bom rei quanto eu; e se ganhares para ti mais,
serás melhor que eu; e se pelo contrário as perde, não serás tão bom quanto eu”.
Logo depois foram
saindo todos para deixar o rei sozinho. Saiu a rainha apoiada por suas damas;
saíram os infantes, seus filhos, seus irmãos, os ricos-homens, todos passando
ante o moribundo e beijando por despedida a fria mão estendida e trêmula. São
Fernando apenas os observava compassivamente lançando um olhar de despedida,
sem mais nada dizer porque o cansaço e a estrema fraqueza não lhe permitiam
mais esforços.
Quando seu Mordomo,
Dom Rodrigo González Girón, passou perante o rei, ainda se atreveu a perguntar:
- Como quereis,
senhor, que façamos a estátua de vosso sepulcro?
E o rei deu-lhe esta
resposta sincera e desdenhosa para as humanas vaidades:
- A minha vida sem
repreensão nem culpa, à maneira do que me foi possível, e as minhas obras sejam
meu sepulcro e estátua.
Ficaram dentro da
câmara real apenas os clérigos e os frades, únicas companhias que o rei
desejava em sua hora suprema. Ao seu lado, em cima de uma mesinha,
encontrava-se a imagem da Virgem das Batalhas ajudando-o a obter vitória nesta
batalha final. De súbito fixou São Fernando os olhos no alto, transfigurando
seu rosto numa felicidade inefável, de tal forma que lhe tirou o sentido do
sofrimento de sua agonia. Assim permaneceu algum tempo, e já o tinham como
morto, quando tornando a si sorriu muito alegre e lhes disse:
- Chegada é a hora...
dai-me a lamparina.
E voltando a levantar
os olhos, como a falar com Deus prosseguiu:
- “Senhor, deste-me
reino que não tinha e honra e poder mais que eu merecia. Deste-me vida, esta
não durável quanto foi tua vontade. Senhor, graças te dou, e rendo-te e
entrego-te o reino que me deste com aquele aprovisionamento que eu pude fazer,
e ofereço-te a minha alma”.
Olhando em volta para
os religiosos, disse:
- “Eu sinto muito por
alguma falta que tenha cometido, sabendo-as vós de alguma que ma perdoeis”.
Todos responderam,
chorando:
- Rogamos a Deus que
vos perdoe, que de nós estais perdoado.
Tomou então a candeia
com ambas as mãos e ainda encontrou forças para alçá-la ao alto enquanto dizia:
- “Senhor, nu saí do
ventre de minha mãe, que era a terra, e despido me ofereço a ela, e, Senhor,
recebe a minha alma na companhia de teus servos”.
Logo começou o
estertor da agonia, o suor impregnando os cabelos e caindo na lívida fronte,
rolando em grossas gotas até molhar as almofadas. Com as vozes embargadas pelo
pranto os religiosos entoaram em coro a Ladainha de Todos os Santos. Estava chegando
o fim, fixou novamente São Fernando os olhos naquele ponto onde para ele se
abria o céu. E ainda falou a todos:
- Cantai o Te Deum!
Sua voz saiu com
transportes de júbilos, indicando que em seu êxtase via coisas maravilhosas.
Que via ele? Os anjos, os santos? Sua Mãe Santíssima, a Santa Maria das
Batalhas? Ou o Rei Eterno, Jesus Cristo com a Santíssima Trindade? Pausadamente, São Fernando foi fechando os
olhos, guardando para sempre neles aquela visão que antecedera sua entrada no
céu. A rosada face tornou-se alva, como se fosse de um finíssimo marfim, os
lábios ficaram entreabertos, num gesto misto de supremo anelo e fruição
inefável... o santo rei, Fernando de Castela, entrava na última e mais nobre de
todas as conquistas, o Reino dos Céus. “Te Dominum fitemur”, seguiam cantando
os que faziam o coro junto seu corpo já inerte.
Sua festa é celebrada no dia de seu falecimento, ocorrido a 30 de maio de 1252.
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