Plinio Corrêa de Oliveira
No dia 28 passado, tivemos a festa de Santo Agostinho e não pudemos fazer um comentário de um trecho famoso de sua autobiografia. Aliás, recomendo muito este livro, as “Confissões” de Santo Agostinho, desde que a pessoa saiba lê-lo. Porque ele tem algumas digressões filosóficas que não estão ao alcance de qualquer leitor, mas a parte propriamente biográfica, que já de si é magnífica, é acessível e é estupenda!
Nas
“Confissões” há um trecho especialmente magnífico: é chamado o “Êxtase de Óstia” ou o “Colóquio de Óstia”. Hoje em dia se diria o “diálogo de Óstia”.
O
episódio é o seguinte: a mãe de Santo Agostinho, Santa Mônica (331–387), passou
uns trinta anos ou mais chorando a pedir a Deus a conversão de seu filho.
Parecia que quanto mais ela rezava, esta conversão se tornava mais longínqua.
Até que, de desatino em desatino, Santo Agostinho acabou por comer as bolotas
dos porcos e começou um processo de conversão que fez dele o grande Doutor da
Igreja.
Santo
Agostinho, já convertido, e Santa Mônica resolveram voltar para a África do
Norte, naquele tempo inteiramente romana, e mais especificamente para a cidade
de Cartago, de onde eram naturais, para ali residirem. E assim percorreram uma
certa parte da Itália para tomar um navio em Óstia, que é um porto pequeno
perto de Roma, mas que tinha naquele tempo uma certa importância. De lá iam
seguir para a África.
Encontravam-se
então numa hospedaria de Óstia, encostados junto a uma janela e começaram a
conversar a respeito de Deus e das coisas do Céu, quando os dois juntos tiveram
um êxtase.
Santo
Agostinho relata este colóquio extraordinário e é um dos trechos mais famosos
das “Confissões”. Poucos dias depois Santa Mônica morria, ainda estando na
cidade de Óstia. Sua missão na terra estava cumprida e Nosso Senhor a chamou ao
Céu para gozar do prêmio que merecia.
Então,
o último lance de sua vida foi exatamente a alegria de ter na terra com o filho
este colóquio, que era um prenúncio, um antegozo da visão beatífica. Tenho a
impressão que qualquer um de nós que passasse por Óstia, gostaria de ver se
ainda existe essa hospedagem.
Resolvi
ler aqui a narração desse colóquio, porque é um página célebre e abre os nossos
horizontes para os grandes portentos na perspectiva da hagiografia e da
doutrina católica. O trecho é extraído diretamente das “Confissões”:
“Próximo
já do dia em que ela ia sair desta vida - dia que Vós conhecíeis e nós
ignorávamos...”
Estas
interpelações diretas de Santo Agostinho a Deus são magníficas. Os senhores
deveriam ler os “Solilóquios” de Santo Agostinho, que há em nossa biblioteca e
que são qualquer coisa de absolutamente estupendo.
“...sucedeu,
segundo creio, por disposição de Vossos secretos desígnios, que nos
encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o
jardim da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde, apartados
da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as forças para
nos embarcarmos.
“Falávamos a sós, muito docemente, esquecendo
o passado e dilatando-nos para o futuro. Na presença da Verdade, que sois Vós,
alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos, que 'nunca os olhos viram,
nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou'.”
Vejam
que beleza: dois santos conversando sobre qual seria a vida eterna dos santos,
e a alegria de Santa Mônica em sentir aquele filho perdido que agora estava
incendiado de desejos de contemplar o Céu. É uma verdadeira maravilha!
“Sim,
os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da nossa
fonte, a fonte da Vida, que está em Vós, para que aspergidos segundo a nossa
capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num assunto tão transcendente.”
Faço
notar aos senhores a maravilha da expressão “os lábios do coração”... quer
dizer, aquilo por onde o coração bebe, por onde o coração sorve, estavam
abertos para receber de Deus aquilo que nesta vida terrena se pode receber a
respeito das alegrias do Céu.
“Encaminhamos
a conversa até a conclusão de que as delícias dos sentidos do corpo, por
maiores que sejam e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que as
cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem mesmo que
delas se faça menção. Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade,
divagamos gradualmente por todas as coisas corporais até ao próprio céu, donde
o sol, a lua e as estrelas iluminam a terra.”
É
uma verdadeira procura do absoluto. Eles começaram a considerar: primeiro as
coisas da terra, que lisonjeiam os sentidos, porque estavam no Império Romano
decadente, em que havia fortunas fabulosas e pessoas que tinham luxo para
deleitar os sentidos de que os srs. não têm idéia. Então, o primeiro confronto
é da felicidade celeste para a felicidade dos homens, que no tempo do Império,
eram tidos como felizes. Resposta: isto não é nada. Então, começam a perguntar:
como é então? E começam a percorrer os céus, a imaginar com os dados do céu
material e visível, como seria o paraíso celeste material, mas invisível, e
como seria a glória da visão beatífica que neste paraíso se goza. É este o
esquema da conversa deles. Então continua:
“Subíamos
ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando as Vossas obras.
Chegamos às nossas almas e passamos por elas para atingir essa região de
inesgotável abundância, onde apascentais eternamente Israel com o pastio da
verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por Quem tudo foi criado, tudo o que
existiu e o que há de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois
existe como sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela 'ter sido', nem
'haver de ser', pois simplesmente ‘é’, por ser eterna.”
Ou
seja, depois de ter considerado todas as coisas materiais, começaram então a
considerar a alma como elemento para se ter algo da idéia da beleza, da
perfeição de Deus. E depois de considerar a alma, chegaram à conclusão de que
no ápice de tudo isto figurava a Sabedoria Eterna e Incriada. Essa Sabedoria
que é eterna, que não tem passado, nem presente e nem futuro. Foi nessa
consideração sapiencial, suprema, que os espíritos deles se detiveram.
“Enquanto
assim falávamos, anelantes pela Sabedoria...”
Quer
dizer, visando conhecer a Deus enquanto Sabedoria, enquanto fim e explicação de
todas as coisas. Os senhores vêem como isto é diferente de uma meditação
“heresia branca”.
“...atingimo-la
momentaneamente num vislumbre completo do nosso coração.”
É
o êxtase. Enquanto conversavam a respeito dessas coisas, conduzidos pela graça
de Deus, em certo momento a Sabedoria se revelou a eles, e tiveram um fenômeno
místico por onde viram Deus.
Os
senhores vêem que é algo muito natural: são dois santos que tem uma conversa
que é uma oração; esta vai subindo de voo, de ponto em ponto, e quando chega ao
seu ápice, então lhes aparece Deus Nosso Senhor, mas aparece de maneira a
fazê-los conhecer enquanto Sabedoria Eterna. E tudo isto com tanta
simplicidade, numa janela de uma
hospedaria de Óstia...
“Suspiramos
e deixamos lá agarradas as primícias de nosso espírito.”
Quer
dizer, o que havia de melhor neles ficou na visão, não voltou para a terra.
“...Voltamos
ao vão ruído dos nossos lábios, onde a palavra começa e acaba. Como poderá
esta, meu Deus, comparar-se ao Vosso Verbo, que subsiste por si mesmo, nunca
envelhecendo e tudo renovando?”
Aqui
está uma insinuação de que Deus lhes disse uma palavra. Naturalmente é o Verbo.
E que isto que foi dito por Deus sobre Sua própria Sabedoria, foi qualquer
coisa tal que o que continuassem a conversar seria um balbucio. A visão cessou
e as palavras deles eram umas coisas vazias à vista do que Deus havia revelado
de Si mesmo.
“Dizíamos
pois: suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs
imaginações da terra, da água, do ar e do céu...”
É
a doutrina dos quatro elementos.
“Suponhamos
que ela guarde silêncio consigo mesma, que passa para além de si, nem sequer
pensando em si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações
imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede
passageiramente.
“Imaginemos
que nessa mesma alma existe o silêncio completo, porque se ainda pode ouvir,
todos os seres lhe dizem: ‘Não nos fizemos a nós mesmos, fez-nos O que
permanece eternamente’. Se ditas estas palavras os seres emudecerem, porque já
escutaram quem os fez, suponhamos então que Ele sozinho fala, não por essas criaturas,
mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra, não pronunciada por uma
língua corpórea, nem por voz de Anjo, nem pelo estrondo do trovão, nem por
metáforas enigmáticas, mas já por Ele mesmo.
“Suponhamos
que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o intermédio delas, assim
como nós acabávamos de experimentar, atingindo num vôo de pensamento, a Eterna
Sabedoria que permanece imutável sobre todos os seres”.
Quer
dizer, ele imagina uma alma que não cogita de nada mais criado, que consegue abstrair
de tudo e que de repente ouve uma palavra de Deus que diz alguma coisa a
respeito de Si próprio.
“Se
esta contemplação continuasse e se todas as outras visões de ordem muito
diferente cessassem, se unicamente esta arrebatasse a alma e a absorvesse, de
modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo - a visão
beatifica - pelo qual suspiramos, não seria isto a realização do “entra no gozo
do teu Senhor”? E quando sucederá isto? Será quando todos ressuscitarmos? Mas
então não seremos todos transformados?”
Ele
afirma então que se uma alma pudesse ficar eternamente apenas naquele
vislumbre, já teria um prazer paradisíaco inefável, extraordinário.
“Ainda
que isto, dizíamos, não pelo mesmo modo e por estas palavras, contudo, bem
sabeis, Senhor, quanto o mundo e os seus prazeres nos pareciam vis, naquele dia
quando assim conversávamos. Minha mãe acrescentou ainda: ‘Meu filho, quanto a
mim, já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui,
nem porque ainda cá esteja, esvanecidas já as esperanças deste mundo. Por um só
motivo desejava prolongar um pouco a minha vida: para ver-te cristão e
católico, antes de eu morrer. Deus concedeu-me esta graça superabundantemente,
pois vejo que já desprezas a felicidade terrena para servirdes ao Senhor. Que
faço, eu, pois, aqui?’”
Dias
depois ela morreu.
Santa
Mônica, nesta visão, teve o prenúncio de sua própria morte, compreendeu que não
tinha nada mais para fazer. Agora os senhores considerem a diferença de uma
grande santa com uma mãe piegas. Esta última diria: “Agora que meu filho está
convertido, começou para mim a vida! Eu vou ouvir os sermões dele, vou ver suas
obras, vou viver com ele uma vida gostosinha na casa episcopal, admirando a
virtude e o talento daquele que eu gerei para a vida natural e que eu
arranquei, pelas minhas orações, à morte eterna, para dar um grande santo.
Agora é que está bom...”
Santa
Mônica não queria ver seu filho para nada disso. Ela o queria para Deus. Quando
sentiu que Santo Agostinho estava nas mãos de Deus, não quis perder tempo vendo-o servir a Deus. Alguns dias
depois ela expirou.
É
uma grande santa e seu último grande lance da vida narrado por um grande santo.
Aí
vemos um pouco o que é a vida de um santo, quando não é descrita por um
“heresia branca”. Os senhores vêem quantas coisas há de comum com essa narração
– e das quais já tinha me esquecido inteiramente – com as conferências sobre a
“Procura do Absoluto” e temas conexos que temos feito aqui ultimamente.
(Conferência
“Santo do Dia”, 31 de agosto de 1965)
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