O primeiro é de
autoria de Alphonse Daudet. (século XIX), “A cabra de Monsieur Séguin”, um romancista francês que se
perverteu nos ambientes mundanos de seu tempo. Ao entrar em alguns dos salões
literários e mundanos, teve a companhia de uma das damas da imperatriz Eugenie
(uma nobre decadente que se casou com Napoleão III), através da qual contraiu
uma doença venérea extremamente grave e complicações pelo resto da vida,
fazendo-o andar de muletas. De modo geral seus textos são irreverentes e
anti-clericais, salvando-se o pequeno conto abaixo por dar um exemplo de como a
falsa liberdade torna-se um malefício e não um bem.
O segundo, “O Sonho
de Fulgêncio”, é de autoria de Amélia Rodrigues, uma escritora católica
baiana que viveu no final do século XIX até o início do século XX. Há uma
pequena semelhança nos contos, dando a impressão de que Amélia Rodrigues se
inspirou em Alphonse Daudet para criar o seu. Mas, a semelhante é realmente
muito pequena, pois a escritora católica mostra detalhes muito mais profundos a
respeito desta liberdade tão ansiosamente procurada pelo homem, mas de forma
geral mal praticada.
A cabra de Monsieur Séguin
Alphonse Daudet
Ao Sr. Pierre Gringoire, poeta lírico em Paris.
Meu amigo, tu serás sempre o mesmo! Oh, pobre Gregório!
Oferecem-te um lugar de cronista em um bom jornal de Paris, e tu
tens a petulância de recusar...
Mas, olha-te, infortunado rapaz! Olha a tua roupa esfarrapada, tua
face magra que apregoa a fome. Eis aí, portanto, aonde te conduziu a paixão das
belas rimas!
Enfim, não tens vergonha?!
Mas, a vergonha não lhe vem à face! Queres permanecer livre, viver
à tua maneira, até o fim...
Pois bem, a ti e a todos que pensam como tu, peço que escutem um
pouco a história da "Cabra do Sr. Séguin." Verás o que se ganha em
querer viver livre!
* * *
O
Sr. Séguin nunca tivera sorte com suas cabras; elas arrebentavam a corda,fugiam
para a montanha, e lá no alto, o lobo as comia. Nem os carinhos do dono, nem o
medo do lobo, nada as retinha. Eram, ao que parece, cabras independentes,
querendo a qualquer preço a amplidão e a liberdade. O estimável Sr. Séguin,
que nada compreendia do caráter dos seus
animais, estava consternado e dizia:
-
É o fim! As cabras se aborrecem em minha casa, não conservarei nenhuma delas...
Entretanto,
ele não se desencorajava, e, depois de perder seis cabras do mesmo modo,
comprou uma sétima. Somente, desta vez, teve o cuidado de a prender enquanto
muito nova, para que ela se habituasse melhor a permanecer em sua casa.
Ah! Gregório, como era bonita a cabrinha do
Sr. Séguin! Como era linda, com seus olhos doces, sua barbicha de sub-oficial,
seus cascos negros e luzentes, seus cornos zebrados e seus longos pelos brancos
que a cobriam como uma sobrepeliz, e, ademais, dócil, carinhosa, deixando-se
ordenhar sem se agitar, sem meter os pés no balde. Um amor de cabrinha...
O Sr. Séguin tinha atrás da casa
um curral cercado de plantas espinhentas. Foi lá que ele pôs a nova pensionista.
Ligou-a com uma canga de madeira ao mais belo sitio
do prado, tendo o cuidado de lhe deixar bastante corda. De vez em quando, ia
ver se ela se encontrava bem. A cabra se achava muito feliz e pastava a erva de
tão boa vontade que o Sr. Séguin estava encantado.
"Enfim", pensava o pobre homem, "eis aí uma cabra
que não se aborrecerá em minha casa!"
O Sr. Séguin se enganava... e a cabra se aborreceu.
Um dia, ela disse para si mesma, contemplando a montanha:
"Como deve ser bom estar lá em cima! Que prazer saltar entre
a vegetação, sem esta maldita corda que esfola o pescoço da gente! É bom para o
burro ou para o boi pastar num cercado!... As cabras necessitam de
largueza."
A partir desse momento, a erva do cercado lhe pareceu sem gosto.
Sobreveio-lhe o tédio. Emagreceu e seu leite diminuiu. Dava dó vê-la arrastar a
corda o dia inteiro, a cabeça voltada para o lado da montanha, com a boca
aberta, fazendo "méééé"... tristemente.
O Sr. Séguin notou logo que a cabra tinha qualquer coisa, mas não
sabia o que era... Uma manhã, quando acabava de a ordenhar, a cabra voltou-se e
lhe disse no seu patoá:
- Escute, Senhor Séguin, eu enlanguesço em sua casa, deixe-me ir à
montanha.
- Ah! Meu Deus! Ela também! - gritou o sr. Séguin estupefato, e
com o susto deixou tombar o balde; depois, sentando-se se na relva ao lado
de sua cabra disse com muita ternura:
-
Como, Branquinha, queres deixar-me!
-
Sim, Senhor Séguin.
-
É pasto que te falta aqui?
-
Oh, não, Senhor Séguin...
-
Talvez estejas amarrada a distância curta demais. Queres que te alongue a
corda?
-
Não vale a pena, Sr. Séguin.
-
Então, que é que te falta? Que queres?
-
Quero ir para a montanha, Sr. Séguin...
-
Mas, pobrezinha, tu não sabes que há o lobo na montanha... Que farás quando ele
vier?
-
Dar-lhe-ei chifradas, Sr. Séguin...
-
O lobo pouco se importa com teus chifres. Ele comeu cabritas muito mais
chifrudas do que tu... Sabes da pobre e velha Renaude, que estava aqui o ano
passado, uma senhora cabra forte e malvada como um bode? Ela lutou com o lobo a
noite inteira... depois, pela manhã, o lobo a comeu!
-
Ai dela! Pobre Renaude! -- disse a cabrinha horrorizada, mas voltando a seu
desejo, continuou:
-
Isso não importa, Senhor Séguin, deixe-me ir à montanha!
-
Divina Providência! - disse o Sr. Séguin - que acontece às minhas cabras? Outra mais que o lobo vai comer... Pois bem,
não! Não deixarei que isso aconteça! Eu te salvarei, a teu pesar! E porque
receio que rompas a corda, vou fechar-te no estábulo, e ali ficarás por um
tempo. Isso é para teu bem...
Em
seguida, o Sr. Séguin levou a cabra para um estábulo, cuja porta fechou com
duas voltas de chave. Infelizmente, esquecera-se da janela, e, mal virou as
costas, a pequena roeu a corda e se foi...
Estás
contente Gregório? Ris? Sei que estás contra a atitude do Sr. Séguin e que és
do partido das cabras sedentas de liberdade! Continuemos nossa história, e
vejamos se rirás por muito tempo.
Quando
a cabra branca chegou à montanha, foi um encantamento geral!
Jamais
os velhos pinheiros tinham visto nada assim tão lindo. Receberam-na como a uma
pequena rainha. Os castanheiros se curvavam até o chão para acariciá-la com a
ponta de seus ramos. As florzinhas da montanha se abriam à sua passagem e a
cheiravam quanto podiam. Enfim, a montanha inteira fez-lhe festa.
Imagina,
Gregório, como nossa cabra era feliz! Nada de corda, nada de canga... nada que
a impedisse de pular, de pastar à sua maneira... E quanta erva havia! Até lhe
ultrapassava os chifres, meu caro! E que erva! Saborosa, fina, recortada, feita
de mil plantas... Era muito diferente do capim do cercado. E as flores, oh!
Grandes campânulas azuis, digitalis de púrpura, com longos cálices, toda uma
floresta de flores selvagens, transbordando sucos capitosos!...
A
cabra branca, meio farta, espojava-se lá dentro com as pernas para o ar e
rolava ao longo das encostas, de cambalhota com as folhas caídas e as
castanhas...
Em
seguida, saltava repentinamente e endireitava-se sobre as patas. Upa! Ei-la que
partia, cabeça para a frente, através de cerrados e capoeiras, ora sobre um
pico, ora no fundo de uma ravina, no alto, embaixo, por toda a parte...
Dir-se-ia haver dez cabras do Sr. Séguin
na montanha.
É
que a Branquinha não tinha medo de nada.
Ela
franqueava de um salto grandes torrentes que lhe atiravam à passagem poeira
úmida de espuma. Então, toda gotejante, ia estender-se nalguma rocha plana e se
fazia secar ao sol... Uma vez, avançando à beira de um planalto, com uma flor
de citisa entre os dentes, vislumbrou lá embaixo, bem lá embaixo, na planície,
a casa do Sr. Séguin com o cercado atrás... Isso a fez rir até as lágrimas...
Como
é pequeno! - disse ela - como pude permanecer lá dentro?
Pobrezinha!
Ao ver-se empoleirada tão alto, acreditava-se pelo menos tão grande quanto o
mundo.
Em
resumo, foi uma linda jornada para a cabra do Sr. Séguin. Pelo meio do dia,
correndo à direita e à esquerda, ela caiu no meio de um bando de gamos que
despedaçavam, para comer, uma vinha selvagem. Nossa pequena corredora, de roupa
branca, causou sensação.
De
repente o vento esfriou. A montanha se tornou violeta; era a noite que vinha
chegando...
-
Já?! - disse a cabrinha e se deteve muito espantada.
Embaixo,
os campos estavam inundados de bruma. O cercado do Sr. Séguin desaparecia na
penumbra e da casinhola não se via senão o teto com um pouco de fumaça. Ela
ouviu as campainhas de um rebanho que se recolhia e sentiu a alma muito
triste... Um corujão que voltava ao ninho a assustou com as asas, ao passar.
Ela
estremeceu... depois foi um brado na montanha:
Auuuu!
Auuuu!
Ela
pensou no lobo! O dia inteiro a louca não tinha pensado nisso... No mesmo
instante, uma trompa soou bem longe, no vale. Era o bom Sr. Séguin que tentava
um último esforço.
-
Auuu! Auuu! Auuu!... Fazia o lobo.
-
Volta! Volta!... - gritava a trompa.
Branquinha
teve vontade de voltar, mas lembrando-se da canga, da corda, da cerca do
curral, pensou que já agora não mais se podia voltar àquela vida, e que era
melhor ficar.
A
trompa não soou mais... A cabra ouviu atrás de si um rumor de folhas. Voltou-se
e viu na sombra duas orelhas curtas, muito direitas, com dois olhos que
reluziam em meio às trevas... Era o lobo!
Enorme,
imóvel, sentado sobre as patas traseiras, estava ali, olhando para a cabrinha
branca e saboreando-a por antecipação. Como sabia que a comeria, o lobo não se
apressava... passado alguns instantes ele se pôs a rir maldosamente.
-
Ah, ah, ah, ah! A cabrinha do Sr. Séguin! - e passou a grossa língua vermelha sobre
as beiçolas carnudas.
Branquinha
sentiu-se perdida... Por instantes, lembrando-se da história da velha Renaude
que se tinha batido a noite toda para ser devorada pela manhã, disse para si
mesma que talvez fosse melhor deixar-se comer imediatamente. Depois, tendo mudado
de idéia, caiu em guarda, a cabeça baixa e o chifre para a frente, como corajosa
cabra do Sr. Séguin que era... Não que tivesse esperança de matar o lobo - as
cabras não matam o lobo - mas unicamente para ver se poderia resistir tanto tempo
quanto a Renaude...
Então
o monstro avançou e os pequenos chifres começaram a dança.
Ah,
a valente cabrinha lutava com todas as forças! Mais de dez vezes (eu não minto,
Gregório) ela forçou o lobo a recuar para retomar alento. Durante essas tréguas
de um minuto, a gulosa colhia, às pressas, um brotinho da erva querida, depois
retornava ao combate, com a boca cheia... Isso durou toda a noite. De quando em
quando a cabra do Sr. Séguin olhava as estrelas dançarem no céu claro e dizia
consigo mesma:
-
Oh, tomara que eu resista até a madrugada...
Uma
após outra, as estrelas se extinguiram. Branquinha redobrou as chifradas, o
lobo as dentadas... Um pálido clarão apareceu no horizonte... O canto enrouquecido
do galo subiu de uma fazenda.
-
Enfim! - disse o pobre animal, que não esperava senão pelo dia para morrer; e
ela estendeu-se por terra em sua bela pelagem branca, toda malhada de sangue...
Aí,
o lobo se atirou sobre a cabrinha e a devorou.
Adeus,
Gregório!
A
história que ouviste não é um conto de minha invenção. Se algum dia vieres à
Provença, nossos caseiros te falarão freqüentemente da "chèvre du monsieur Séguin,
que se battégue tout la nouit avec le loup, e piei, pour la matine, le loup la
mangé” -- A cabra do Sr. Séguin, que se bateu toda a noite com o lobo,
e depois, pela manhã, o lobo a devorou.
Ouviste,
Gregrório?
Le
loup la mangé -- O lobo a devorou!
O
sonho de Fulgêncio - Amélia Rodrigues
Aquele tresloucado Fulgêncio tinha fugido da
casa de seu senhor.
E, todavia, o seu senhor era bom; tão bom que
não se podia absolutamente imaginar outro ideal de senhor. Criara o servo em
seus braços, desde pequenino; tratara-o nas moléstias; dera-lhe a alegria da
infância, prados em que corresse, afetos que o confortassem; ensinara-lhe
muitas coisas úteis, letras e artes; mostrara-lhe as fontes puras da felicidade
perfeita...
Mas, apenas o servo ficou rapaz, leu ou
disse-lhe alguém que a servidão era uma coisa triste e feia e cruel, mesmo
naquelas condições honrosíssimas; sopraram-lhe aos ouvidos a palavra
“liberdade”, e essa palavra agitou-lhe os nervos, num deslumbramento contínuo.
- Foge!... quebra as cadeias! Governa-te a ti
mesmo, infeliz! Não curves a cabeça a poder algum! És dono de teu ser, de teus
sentidos, de tua vontade. Oh, que bela conquista, a independência!
Assim lhe cantara dentro do cérebro a voz da
mocidade, o sangue quente dos desejos sôfregos e, fora, a voz tentadora de
outros libertos.
Contudo, uma réstia de luz teimava em atravessar-lhe a mente O seu olhar
inquieto espraiava-se longe, examinando o mundo.
- Ser livre!... fazer o que quiser, sem dar
contas a ninguém!... Sim, deve ser essa a felicidade completa. Posso fugir,
posso; mas... onde irei que deixe de ser servo?
Em toda parte há tiranos...
- Entrarás pelas brenhas... beberás a chama
do sol e os aromas da natureza virgem, grandiosa, embriagante. A natureza é tua
mãe, portanto deve ser a tua única senhora. No seio dela serás rei, forte como
os leões, alcandorado como as águias, dormindo embora ao relento, mas
respirando a plenos haustos a ventania dos píncaros ou a brisa meiga dos
vales...
E o servo sonhou, noites e noites mal
dormidas, com o espectro do sol da Liberdade, um espectro em forma de mulher a
sorrir, com veste de íris e largas asas de borboleta espalmadas no horizonte
sem fim... e de seus lábios espiralou um hino, um grito, apóstrofe:
- Oh Liberdade! És minha deusa, eu te adoro!
A face amorável do senhor tornou-se-lhe
odiosa; a casa parecia-lhe estreita, mesquinha, deprimente, sem futuro, sem
atrativos; a comida já não tinha sabor: os companheiros de lavoura davam-lhe
tédio, com os seus ares de calcetas[1] imundos e simplórios...
Fugiu. Internou-se nos matagais. Comeu frutos
áureos e doces, pendurados em ramos de esmeralda. Bebeu água cristalina em rios
mansos, à sombra de cipoais em flor; embriagou-se com o sono de bromélias
ardentes ou com o cheiro capitoso das palmeiras novas; ouviu trinados de aves,
fragor de trovões, estrondo de torrentes a cair espumando prata...
E julgou-se feliz, e cantou, com voz de estentor[2] que atroava em penedias e
vales, o hino que o seduzira:
- Oh Liberdade! És minha deusa, única! Eu te
adoro!...
Passaram os tempos – tudo passa!... - e mudou-se o cenário. Já não eram tapetes de
relva, eram seixos agudos que os seus pés encontravam. Fez-se noite no céu;
fez-se noite nos campos. Rugiam-lhe em torno panteras e tigres, de olhar
vermelho e dentes a ranger...
Alapardava-se em furnas lóbregas[3] para dormir, se dormia.
Tinha fome e sede, e já não achava nem frutos, nem água fresca rolando em
pérolas na concha azul da rocha ao seu alcance...
Deu, depois, em brejos negros, em charnecas
áridas. Mordiam-no insetos, serpentes se lhe enrolavam no corpo, asquerosas,
geladas, cortantes... A roupa lhe caíra em pedaços...
E vinha-lhe à memória um retalho de versos
lidos outrora, o diálogo entre o Lavrador e o Peregrino, do grande poeta luso[4] que, com outros, lhe
ensinara o amor à Liberdade:
O Lavrador
Ó
Senhor tão moço, d’olhos cor d’esperança,
Ides de
caminho para algum lugar?
O Peregrino
Vou dar
volta ao mundo...
O Lavrador
Sem
arnês ou lança?
Ó
Senhor tão novo, d’olhos cor d’esperança
Penas e
misérias é que ireis achar!
Quais seriam esse arnês e essa lança tão
preciosas ao combate da vida? A fé talvez?... Mas a fé, sobretudo a fé cristã,
já não fizera branca-rota? Assim lh’o tinham afirmado os companheiros de
prazer. Mesmo aquele poeta...
Não! ... a fé traz consigo a lei; a lei é uma
cadeia: não pode ser elemento da felicidade. Para ser feliz... basta ser
livre!...
E
suspirou, repetindo:
- Liberdade, és minha deusa única. Eu te adoro!
Caiu um dia, enfim, exausto, quase morto, no
fundo de paulento barranco. Lá ficou só, muito tempo. Seus amigos, os pássaros,
voavam longe; suas namoradas, as flores, perfumavam outros viandantes. A fome
era atroz, o frio era intenso... Sentia-se velho, alquebrado, incapaz de um
esforço. O desespero retorcia-lhe os membros; clarões de raiva impotente lhe
passavam nos olhos.
E gemia:
-Oh! Natureza! Não és tu minha mãe? Não foi
de ti que nasci? Por que me matas? Qual foi meu crime? Amar a liberdade?... Mas
a liberdade não é direito do homem? Teu maior e mais belo direito? Eu quis
viver com teus filhos todos, Natureza! Os filhos que ficam no teu ninho,
apegados contigo! E morro sem que tu me consoles. Mas a vida não é um dom teu,
um dom que eu devia, até o fim, aproveitar para o gozo, como os meus irmãos
animais?
E rugia, mordendo a lama, sentindo nos
membros trôpegos o contato dos vermes.
- Meus irmãos todos são felizes em ti, mãe
Natureza, quando o homem não os faz sofrer. Estes vermes que comem vasa...
estes lagartos cinzentos que moram nos troncos podres... Por que razão só o
homem, teu filho mais nobre, mais rico e perfeito, só o homem te encontra dura,
cruel, indiferente aos gritos de fome... ou de gula?... Por que razão?
Veio-lhe um calapso[5], um momento de trégua na
sua agitação. Fez-se-lhe algo de bonança no cérebro; pensou mais calmo e
recordou:
- Eu era servo. Sou servo ainda. Não há fugir
à lei que me prende. Todavia, lá em casa, era servo-filho. Aqui... sou
servo-escravo. Escravo estrangeiro... miserável... esmagado. Lá... não me faltava nada. Tinha tudo, tudo o
que podia ter com justiça e legítimo prazer. Desejei mais do que isso. A visão
da Liberdade estonteou-me. Oh, sim!...
ser livre!... Mas... livre como? Eis preso de novo, e sempre pior. Livre para
que, afinal de contas, se lá meu senhor me amava e aqui não tem quem me ame; se
lá eu tinha alimentos e aqui morro ao desamparo; se lá eu sorria inocente, aqui
choro de remorsos, sem ter quem me enxugue as lágrimas... Li outrora, no
Evangelho de Cristo, a página do Filho Pródigo. É justamente o meu caso. Ele
voltou à casa paterna. Voltarei também?... Por que não?... Meu Senhor é tão
bom! Farei um esforço para sair desta lama. Sim, bastará um esforço...
E, animado, puxou os pés que estavam presos
ao barro pegajoso. Sorriu. A recordação da casa onde vivera a infância
perpassou-lhe no pensamento, em traços fortes e consoladores.
Viu-a, toda branca, lá longe, - qual em
contos de fada, a luzinha d’oiro no cimo da montanha, dizendo ao perdido nas
trevas que em seu seio havia um abrigo. Como se lembrava!... Aqui era o pátio
vasto... os jardins cheios de angélicas; ali o milharal espigando... os
parreirais pesados de uvas... e pertinho, o lar, a chama alegre da lenha seca,
o cheiro da sopa quente após a labuta diária...
Suspirou. Olhou em torno e sentiu
repugnância. Desprendeu as mãos do paul, fraco, trêmulo, receoso, mas com
brilhos de esperança no olhar. Queria subir a montanha, entrar novamente
naquela mansão de paz e conforto.
Em seguida olhou para si mesmo e... teve
horror.
- Estou nu – murmurou – tenho a pele coberta
de escaras, chagas ainda... crostas de barro... Sinto que as pernas se me
vergam. É tarde!... É tarde... não posso...
Agachou-se no chão, desesperado.
- Ele me expulsará, por indigno. Afastará de
mim o seu rosto!... Não vou. Morrerei aqui. Pelo menos, tudo isto é meu.
Pedras, lodo, bichos nojentos, tudo é meu. Acostumei-me ao cheiro bruto destas
coisas corruptas... cheiro que outros chamam fétido e eu chamo perfume. E nisso
gozo ainda minha liberdade. Sou livre, chamo-lhes como me apraz!
Pendeu a fronte, fechou as pálpebras... e
apesar disso via ao longe, via sempre a luzinha da casa senhorial, tão meiga,
tão suave, em cima da montanha...
- Ali está o perdão, o amor, a paz... bem o
sei; não posso calar, no meu íntimo, a voz que m’o diz. Meu senhor é bom...
infinitamente bom... Que importa? Se a liberdade é a guerra, quero a guerra,
porque adoro a Liberdade!
Engalfinhou as mãos na borda de um calhau
limoso e escorregou de novo no tremedal. Sentia vertigens mórbidas... sabia que
estava louco, absolutamente louco, mas deixou-se descer...
E desceu... e a luzinha continuava a brilhar,
muito quieta, pondo um fio de ouro na escuridão ambiente, fio que vinha tocar
quase a cabeça de Fulgêncio.
Ele percebeu, e chorou.
- Meu Senhor!... Oh, meu Senhor!... tu me
chamas?... Por que te fugi?!... Onde estás?!... Anda... vem cá... ah, não!...
não venhas!... Fica em tuas alturas... Apaga essa luz... Tira-a de cima de
mim!... Não quero vê-la... não quero!...
É a razão, é a fé!... Mas aqui estou cativo em redes fatais... Agora essa luz!
E a luzinha apagou-se... e Fulgêncio
afundou-se ainda mais no barranco negro...
Extinguiu-se-lhe a consciência, a idéia da
vida moral. Engoliu vasa, e achou-a gostosa. Sentiu sanguessugas no peito e
acho delícia em suas mordeduras. E foi descendo... até que a vasa o sepultou
para sempre...
Fulgêncio,
o servo, é a alma pecadora – a alma do século de hoje.
Feita para Deus, ela foge de Deus, atraída
pela voz de sereia da falsa liberdade.
Foge de Deus para gozar à larga, e afunda-se
nos pântanos mais asquerosos; torna-se vil, e nem percebe a própria degradação,
ou percebe-a fracamente.
Coitadinha!
A luz da graça lhe aparece enfim, no cimo da
montanha da fé. É a única estrela na sua noite pesada de treva e de abandono.
Ela a vê, suavíssima; compreende-a, deseja ir até onde está a mansão salvadora,
mas o vício, o mau hábito da rebeldia a tem cativa, a ela que sonhara ser
livre, inteiramente livre!
Precisamente. Será sempre escrava, e da pior
das escravidões.
Ah! Se ela voltasse ao lar donde fugira, ao
coração de seu Senhor e de seu Pai, que feliz seria de novo!...
Almas que refulgistes ao sair do batismo
cristão e por desgraça agora estais caídas nos charcos do mal, coragem! Quebrai
os laços, desprendei-vos da lama, e subi, montanha acima, até os braços do
vosso Criador. Ele vos espera e há de receber-vos em festa e coroar-vos de
rosas imortais.
Homens do século de hoje, Fulgêncios
sequiosos de gozo e de independência, não esqueçais que a verdadeira liberdade
é a dos filhos de Deus. Procurai o reino de Deus, se quereis ser livres e
atingir o vosso alto destino.
(Transcrito de “Do Meu Archivo –
Contos e Phantasias” – Livraria Editora N. S. Auxiliadora – Salvador(BA), 1929
– págs. 208/216)
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