A
Encíclica "Mystici Corporis Christi",
que encheu de tal contentamento os que ansiávamos por um esclarecimento que
pusesse termo a múltiplos e perigosos erros que circulavam sobre este assunto,
não pode deixar de ser largamente comentada pelo “Legionário” . E, assim, é a
ela que quero consagrar as colunas do artigo de fundo deste dia.
* *
*
O
primeiro comentário sobre a Encíclica consiste em que, sobre ela, não se pode
ficar somente
Precisamente
por isto, nota-se que o Vaticano teve especial cuidado em evitar pretextos para
que, em matéria de tanta monta, entrasse a "cooperação" de terceiros,
desfigurando ao sabor de suas preferências o texto pontifício. Este cuidado
transparece sobretudo através de dois indícios: a tradução diretamente feita
pelo próprio Vaticano, não só para o português como também para outros idiomas
provavelmente, e a cuidadosa divisão do texto em partes, títulos e subtítulos
de forma a evitar, sob pretexto de maior clareza, interpolações de terceiros.
De ordinário, a Santa Sé só toma estas precauções com documentos de grande
valor, em que não quer de modo algum deixar aberto o menor e mais longínquo
pretexto para deformações.
Ora,
se a Santa Sé teve receio de que a imperícia ou a paixão desfigurassem o
próprio texto pontifício, é legítimo que também nós nos acautelemos contra
comentários capazes de deformar o pensamento do Soberano Pontífice. E, para
isto, nada melhor do que fazer-se o estudo de qualquer comentário, tendo sempre
o texto do Papa na mão, e diante dos olhos. Nesta Encíclica, mais do que em
qualquer outra talvez, os comentários são feitos não para dispensar do estudo
do texto, como sobretudo para incitar a que se vá à própria fonte, que é a
palavra do Vigário de Cristo.
* *
* .
Não
se julgue que essa recomendação deve ficar na ordem das coisas vagas e
remotamente convenientes. É no próprio texto do Pontífice que ela se funda.
O
ambiente contemporâneo é cheio de contradições e entrechoques doutrinários
violentos: "enquanto por um lado perdura o falso racionalismo, que tem por
absurdo tudo o que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele
outro erro parecido, o naturalismo vulgar, que não vê nem quer reconhecer na
Igreja de Cristo senão uma sociedade puramente Jurídica; por outro lado grassa
por aí um falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo
remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador".
Em
outros termos, nota-se no ambiente hodierno uma série de erros opostos, e em
matéria religiosa se dá um fenômeno análogo ao que se observa na política. Com
efeito, quer do campo democrático quer do totalitário, se elevam vozes a
reivindicar o apoio católico. Analisemos as doutrinas que chegam a nós,
confusas e ardentes, através dos clamores da luta: veremos imediatamente que há
erros graves em ambos os campos, e que a luta entre eles é uma luta de erros e
não de verdade contra o erro. Por isto mesmo, pode-se perguntar onde está o mal
menor, se de um lado, se de outro. O “Legionário” de há muito se manifestou
contra o lado das chamadas "direitas", nas quais vê o mal maior. Mas
não há como indagar onde está o bem, que não se encontra íntegro em nenhum dos
campos.
Na
esfera política, o resultado foi claro. Poucos foram infelizmente os católicos
que souberam ver na disciplina ardente e incondicional à infalível autoridade
da Igreja, a verdadeira tábua de salvação. Uns procuraram a fórmula salvadora
no nazismo. Outros no comunismo. Outros na forma nazificante, ou nas
bolchevisantes. Poucos foram os que se lembraram de que "bonum ex íntegra causa; malum ex quocumque
defectu". Se havia mal nos dois lados, ficássemos só com a Igreja,
"íntegra causa" por excelência.
E
daí uma tremenda confusão. Uns, por amor à autoridade, chegaram ao totalitarismo.
Outros, por amor à liberdade, chegaram até à demagogia. A grande tragédia da
luta entre nazismo e comunismo, entre fascismo e democracia, não foi tanto o
extravio completo dos que já eram maus, mas a ruína, a confusão, a dilaceração
interna entre os que eram bons.
Também
no campo teológico, o Santo Padre Pio XII nos mostra dois excessos contrários a
se entredegladiarem. Vem agora a descrição da confusão, feita pela própria pena
do Pontífice: "não só autores separados da verdadeira Igreja espalham
graves erros nesta matéria do Corpo Místico de Cristo, mas também entre os
fiéis vão serpejando opiniões ou inexatas ou de todo falsas, que podem desviar
os espíritos da reta senda da verdade". O perigo é grave. Com efeito, que
de mais catastrófico do que o afastamento dos espíritos "da reta senda da
verdade?" Se a Fé é o fundamento de todas as virtudes, o que mais triste
do que o afastamento das sendas da Fé? O alcance desta afirmação pontifícia só
poderá ser devidamente medido à luz da própria doutrina do Corpo Místico. Diz o
Pontífice que "como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que
receberam o lavacro da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separam
voluntariamente do organismo do Corpo (Místico de Cristo), ou não foram dele cortados
pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas". Afastar-se da
senda da verdade, ou da Fé, é, pois, "não viver neste corpo único, nem do
seu único Espírito divino". Os erros sobre o Corpo Místico acabam, pois,
produzindo este resultado paradoxal: afastam, fazem sair do Corpo Místico os
que erram. Que de pior?
Infelizmente,
o perigo não fica aí. Muitos espíritos, justamente temerosos de se deixarem
envolver por esta confusão, não compreendem entretanto que na Revelação tudo é
perfeito e admirável, e passam de um explicável temor à vista da confusão, para
uma atitude de desconfiança em relação à doutrina a respeito da qual a confusão
se estabeleceu. Não que sejam cegos à beleza desta doutrina. Mas - é o mesmo
Pontífice que fala - "consideram esta
sublime doutrina como perigosa, e fogem dela como do pomo do Paraíso, belo mas
proibido". E com isto gravemente se prejudica a piedade dos fiéis,
impedida de se nutrir com o substancialíssimo alimento espiritual contido na
doutrina de São Paulo sobre o Corpo Místico de Cristo. O Pontífice protesta
contra este infundado temor da própria doutrina do Corpo Místico, como se
intrinsecamente considerada, e em si mesma, tivesse erro ou encerrasse perigo,
e devesse portanto ser relegada a um prudente esquecimento: "Não; os
mistérios revelados por Deus não podem ser prejudiciais ao homem, nem devem
permanecer infrutíferos, como tesouro enterrado no campo; senão que nos foram
dados por Deus, para proveito espiritual dos que piamente os contemplam".
* *
*
Constitui
para nós um grave dever cooperar em toda a linha para que a confusão cesse
neste terreno. Sejamos prosélitos ardentes da doutrina do Corpo Místico de
Cristo. E, sobretudo, insistamos por que todos os estudos feitos nesta matéria
tenham por base e constante ponto de referência a admirável Encíclica "Mystici Corporis Christi". Com
isto, cessará qualquer dificuldade, e brilhará serena, para a edificação geral,
a genuína doutrina da Igreja.
Da
Igreja! Como não compreender, admirar e amar ainda mais a Santa Igreja
Católica, depois da luminosa e claríssima doutrina ensinada pelo Santo Padre
Pio XII sobre o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a própria
Igreja Católica!
A
Igreja Católica é o maior tesouro que Nosso Senhor deu aos homens. É ela o escrínio
em que se encerram todos os outros tesouros que Cristo nos deu. Não sei de
coisa mais urgente, mais atual, mais premente, do que inculcar nos fiéis uma
ardente devoção à Santa Igreja.
E,
para isto, um estudo exato, dócil, metódico, da Encíclica sobre o Corpo Místico
de Cristo pode concorrer admiravelmente. Aliás, para só falar dos documentos
recentes, temos ainda outro ato do Magistério Eclesiástico, muito importante, a
considerar a respeito da Santa Igreja: é a Pastoral de Saudação do Exmo. Revmo.
Sr. Dom Jaime de Barros Câmara, em que o ilustre Prelado doutrina acerca das
notas distintivas da verdadeira Igreja, pondo ao alcance de todos, de modo
atraente, claro, metódico, soberanamente útil, uma exata apreciação das
características que tornam clara a divindade da Igreja Católica.
Com
base nestes dois documentos, pode-se fazer uma verdadeira campanha de
incremento de entusiasmo e ardor para a Igreja de Cristo, por toda a vastidão
do território nacional.
(Plínio Corrêa de Oliveira - "Legionário",
N.º 585, 24 de outubro de 1943)
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