(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)
(Na gravura, os Mistérios Gloriosos do Rosário)
"Tenho esta ficha “Intimidade de duas mães”,
extraída da Légende Dorée, de Jacques de Voragine:
“Uma viúva tinha um filho único a quem
queria muito. Sabendo que ele havia sido feito prisioneiro pelos inimigos,
acorrentado e posto na prisão, ela ficou profundamente triste e, dirigindo-se a
Nossa Senhora, por quem tinha devoção especial, pediu-lhe com insistência
liberdade para seu filho.
“Passou-se um tempo e ela não viu o fruto de
suas preces. Dirigiu-se, então, a uma imagem de Maria, na igreja. Ali ela disse:
´Santa Virgem, eu Vos supliquei a liberdade de meu filho e Vós não quisestes
vir em socorro dessa mãe infeliz. Implorei vossa proteção para meu filho e me
recusastes. Assim como meu filho foi levado, levarei o vosso e o guardarei como
refém.
“Dizendo isso, aproximou-se, tomou a imagem
do Menino do colo da Virgem, levou-a para casa, envolveu-a em linho sem mancha
e, colocando-a num cofre, fechou-a à chave, contente por ter um tão bom refém
como garantia da volta de seu filho.
“Na noite seguinte, Nossa Senhora apareceu ao
rapaz, abriu-lhe a porta da prisão e lhe disse: - Dize à tua mãe, meu rapaz,
que ela entregue meu filho, agora que eu entreguei o d’Ela.
“O rapaz foi encontrar-se com sua mãe, e
relatou-lhe a miraculosa libertação. A mãe, radiante de alegria, apressou-se a
entregar o Menino Jesus a Nossa Senhora. – Eu Vos agradeço, Celestial Senhora,
por me restituirdes o filho; em troca, restituo o vosso”.
Alguém poderá perguntar se o fato
é verídico. Eu diria que é abaixar o nível fazer essa pergunta. Porque não
importa que o fato seja verídico, o importante é que ele seja possível. O
importante é saber se, de acordo com o que a doutrina católica nos ensina sobre
Nossa Senhora e sobre as relações especiais de uma mãe com seu filho aqui na
Terra, esse fato poder-se-ia ter passado. Isso nos fala a respeito de Nossa
Senhora. Ensina-nos, então, a verdadeira impostação de nossa alma perante Ela.
Trata-se de um caso que ensina uma
extraordinária confiança em Nossa Senhora, uma extraordinária liberdade de ação
em relação a Ela. Vamos dizer assim: se o fato foi verdadeiro, a gente pode
dizer que Nossa Senhora quis retardar a libertação do rapaz para provocar a mãe
a tomar essa santa liberdade em relação a Ela. E desta maneira mostrar como
quer ser tratada por nós.
É preciso distinguir aqui o caso originário
do que poderia ser a caricatura d’Ele. Essa mãe, segundo o caso, não tomou o
Menino Jesus como represália. Não foi uma vingança. Seria uma blasfêmia, caso
ela tivesse dito: “Já que meu filho está sofrendo, eu vou fazer sofrer o seu!”
Isso seria uma vingança, seria uma blasfêmia. Mas ela o tomou propriamente como
refém.
O que era um refém na Idade Média? Era uma
pessoa que era dada como garantia de alguma coisa. Por exemplo, havia um
tratado entre dois reis. O rei vencido dava o seu filho como refém, como
garantia do cumprimento das cláusulas do tratado. Quando o tratado fosse
cumprido, o filho do rei era solto. Se o tratado não fosse cumprido, o filho do
rei podia passar – conforme as cláusulas – duras penas, eventualmente a pena de
morte. Mas enquanto o tratado não era violado, o refém – por exemplo, no caso
de dois reis – ficava na Corte do rei vencedor; ele fazia parte do cerimonial,
tomava parte nos banquetes, nas cerimônias de protocolo entre os outros príncipes
da Casa Real; ele viajava, era objeto de homenagens nas cidades onde passava,
adquiria bens, às vezes até se casava. De maneira que o refém não era um
prisioneiro no sentido moderno da palavra, mas era o indivíduo que representa
apenas uma garantia, que não era tratado como inimigo, mas apenas como um homem
que estava garantindo algo, e, portanto, como um hóspede de eleição, como um
hóspede distinto.
Então, foi o que ela fez com o Menino Jesus.
Ela tirou a imagem do Menino Jesus que estava no colo da imagem de Nossa
Senhora, e envolveu-a num pano muito limpo. E trancou no cofre, que é o lugar
onde se guardam as coisas preciosas. Ela teria agido, talvez, de modo ainda
mais poético se a tivesse guardado no meio de flores. Mas, prisão por prisão,
refém era no cofre. Nossa Senhora sorriu diante dessa candura. Nossa Senhora
viu que essa mulher confiava na misericórdia d'Ela enormemente, a ponto de
compreender que se tomasse a imagem do Menino Jesus com essa liberdade.
Então, coroou o fato por um ato de uma
liberalidade, um ato de doçura, de uma suavidade extraordinária. Ela se
aproximou da prisão, libertou o rapaz e mandou esse recado: “Vá dizer à sua mãe
que libertei o filho dela. Agora, ela liberte o Meu Filho”. Quer dizer,
colocando-se risonhamente, amavelmente, de igual para igual, numa atitude de
afabilidade que nos indica a incomensurável bondade de Nossa Senhora.
Eu volto a dizer: não me interessa
saber se o caso é verídico. O que importa é saber que, segundo a doutrina
católica, ele podia ter-se dado. E, diz Santo Tomás de Aquino, aquilo que tanto
pode dar-se quanto não se dar, de vez em quando pode acontecer. Como é um caso
singular, eu não posso dizer que tanto se pode dar quanto não dar. Não é um
caso que fica cinqüenta a cinqüenta. É um caso raro. Mas os casos raros por
vezes sucedem. O que quer dizer que nós devemos também agir, com Nossa Senhora,
dessa maneira: com muita liberdade, com muito respeito, com muito desembaraço,
confiando na misericórdia d’Ela.
Eu já contei mais de uma vez este fato que,
entretanto, vem a propósito. Santa Teresa de Jesus, fazendo uma viagem, passou
sobre uma pinguela, que é uma ponte feita por uma só árvore e que se lança, em
geral, sobre o abismo. Portanto, perigoso, porque a forma da árvore é
arredondada, cilíndrica. É preciso saber atravessar bem. E quando ela passava
pela pinguela – esse fato é histórico, se narra nas suas biografias – ela
derrapou e foi caindo para o abismo. Quando ela ia caindo, Nosso Senhor
apareceu-lhe e sustentou-a. Ela então perguntou: “Meu Senhor, por que
consentistes que eu escorregasse?” Quer dizer, que eu tomasse esse susto? Os
senhores estão vendo a liberdade! Nosso Senhor deu a resposta: “Assim eu trato
meus amigos”. Ela respondeu: “Por isso tendes tão poucos!”
Ela está disposta a receber tudo de Nosso
Senhor. E morreu dardejada por um dardo de amor a Deus, algum tempo depois de
ter o coração transverberado por um serafim. Ela morreu, portanto, de algum
modo vítima de amor, mas, por assim dizer, gracejando com Deus, dizendo para
Deus coisas amáveis. O que mostra bem qual é o ambiente espiritual próprio da
Igreja Católica. Ao mesmo tempo sublime, sacral, impregnado das mais elevadas
cogitações, ensinando-nos que entre Deus e nós há uma distância infinita; que
entre Nossa Senhora e nós há uma distância incomensurável, mas depois
mostrando-nos aquilo que seria a verdade oposta – não contraditória –, que vem
em outro sentido. Quer dizer, esse Deus tão grande, essa Rainha
incomensuravelmente superior, que condescende em ter esse contato conosco, esse
convívio conosco etc.
Por aí se vê como essa historieta medieval
procura apresentar, à maneira de uma parábola, um fato que nos dá um profundo
ensinamento a respeito de Deus, de Nossa Senhora e do ambiente espiritual da
Igreja Católica. Sente-se aí o equilíbrio da Igreja Católica e pode-se perceber
a diferença de clima entre a Igreja Católica e as outras religiões. É só passar
em frente a uma igreja protestante. Não precisa entrar. Eu todos os dias passo
em frente a uma igreja protestante, perto de um convento de freiras
concepcionistas. Gélida, fria! A gente tem certeza que se entrar lá é uma
carranca, é uma má catadura, é uma coisa incrível!
Os ofícios e a liturgia da igreja cismática
são muito bonitos, mas sempre com um fundo de melancolia grossa, pesada, uma
tristeza, uma sensação de exílio, uma coisa insuportável. Na Igreja Católica,
pelo contrário, nota-se uma elevação muito maior do que a carranca protestante
– um sorriso; uma elevação maior do que na igreja cismática – um sorriso que na
própria igreja cismática não se encontra. Preste-se atenção nas imagens das
igrejas cismáticas. As que eu tenho visto, não sorriem. Nossa Senhora está
sempre com um ar triste, pegando um Menino triste também, uma tristeza um pouco
fatalista, que está dentro da índole da religião cismática. Com a Nossa Senhora
da Igreja Católica dá-se o oposto. Por exemplo, a Imagem Peregrina de Nossa
Senhora de Fátima, com suas mil fisionomias, todas elas comportando, de vez em
quando, certo sorriso, significando a passagem da afabilidade, da gentileza, da
bondade, que completa o espírito católico.
Isso se nota também na época que teve em mais
alto grau o espírito católico, que foi a Idade Média. Época que construiu
catedrais imponentíssimas, a época por excelência do protocolo, da solenidade,
da dignidade. Entretanto, ela nos apresenta Nossa Senhora tão risonha, tão
afável, e tantos fatos indicando esse comércio gentil, amável, de Deus com os
homens, que constituem o complemento. Assim como na catedral medieval havia a
pedra austera e o vitral, que era uma jóia, assim também havia a serenidade dos
princípios, a serenidade da doutrina, e a bondade de Deus, de Nossa Senhora
iluminando a alma dos fiéis. São os contrastes harmônicos de que se faz toda a
perfeição".
(Plínio Corrêa de Oliveira – Conferência a seus
discípulos, em 09 de julho de 1973)
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