Pouco depois de se dar princípio à Cidade de
São Salvador, ou Bahia de todos os Santos, foi isto pelos anos de 1560 sendo
Governador Mem de Sá, se erigiu uma Ermida no Sertão, ou alguma cousa distante
da nova povoação; aonde uns devotos, não sem destino do Céu (porque havia
escolhido aquele lugar para Palácio), colocaram as imagens de Jesus, Maria e
José. Imagens de vulto formadas de madeira, o menino, e São José com seus
bordões. Era esta Ermida feita de tábuas e o teto coberto de folhas de palma. O
sítio desmatá-lo-iam; mas afrouxando a devoção, tornou a crescer o mato; e
assim era muito infestada de animais ferozes e peçonhentos, com cobras jibóias
ou de veados muito grandes, jacarés e outros que saíam das lagoas que lhe
ficavam vizinhas. E, ou fosse que se acabasse de todo a devoção, ou que o temor
de cair dos dentes daquelas feras cruéis e medonhas, fez que se acabasse
totalmente o ir a venerar a Senhora à sua Ermida. E assim se perdeu a devoção;
e quando algumas pessoas (se iam lá) levavam armas de fogo para se evitar
qualquer perigo.
Pelos anos de 1567, sendo ainda Governador o
referido Mem de Sá, se diz por tradição comum, que fora um homem (ou Nossa
Senhora lhe inspirou que lá fosse). Ia este a cavalo para aquela parte e vendo
Ermida, ou casa de palha, perguntou a uns negros o que aquilo era, e eles lhe
responderam: era a casa de Nossa Senhora do Desterro; mas que se não podia lá
ir, porque era aquele sítio muito reparo o homem, no que os pretos referiram; e
assim se resolveu a entrar na Ermida e ir fazer oração à Senhora do Desterro.
Foi chegando, se apeou e entrou dentro a encomendar-se à Senhora.
Depois de fazer a sua oração, saiu para fora
e assentou-se à porta da Ermida, e ali encostado, dizem, que adormeceu.
Despertou logo todo sobressaltado; porque se viu cingido e cercado de uma
grande jibóia, ou securiubam (1) a qual já fazia diligência pelo tragar. Neste
tempo, e neste perigo, invocou em seu favor à Senhora do Desterro, e com ela
animado puxou de uma navalha, que também dispôs Deus que a levasse consigo; tal
golpe e com tal sucesso lhe deu pela garganta que a degolou e caiu morta aquela
fera e animal espantoso. Reconhecendo logo de onde lhe viera o socorro, entrou
dentro da Ermida a dar graças à Senhora, que o havia livrado da morte. E depois
saindo fora, carregou como pôde no cavalo aquele medonho animal, e com ele se
foi à praça da Cidade, apregoando a grande maravilha e o favor que a Senhora
lhe fizera. Tem aquele animal a pele tão dura, que dizem por encarecimento que
tem sete couros. E é esta tão dura que parece impenetrável, porque para o
abrirem não bastavam os machados. E aqui se viu o mais o portentoso do milagre,
que sendo aquela pele tão dura e tão impenetrável , a fez o favor de Maria
Santíssima tão e tão branda no pescoço que com uma navalhada pôde aquele homem
degolar aquela grande fera. Esfolaram-na e depois encheram a pele de algodão, e
com a navalhinha na boca a foram oferecer à Senhora do Desterro, em memória do
benefício que fizera em livrar da morte aquele seu devoto.
Com este grande milagre se ascendeu o povo em
fervorosa devoção para com a Senhora do Desterro, e tanto que o mesmo
Governador Mem de Sá pediu a todos os moradores que tinham pretos, aos que
tinham seis, que dessem três, e aos que tinham quatro, que dessem dois, e assim
aos mais, para irem roçar todo aquele mato, que estava em o circuito da Ermida
da Senhora. Limpa toda a terra até o sítio da casa da Senhora, trataram de lhe
edificar outra mais grande e capaz de pedra e cal, e alevantar casas junto a
ela. E o mesmo Governador mandou ali edificar uma casa nobre, ou palácio, para
sua vivenda. E depois se foram fazendo tantas casas, que a Cidade se estendeu
até aquele sítio. O mesmo Governador desejou logo, que naquele mesmo sítio se
edificasse um Convento para religiosas, que perpetuamente louvassem a Nosso
Senhor e a Nossa Senhora, e fez as diligências possíveis para que estes seus
desejos se efetuassem. E porque ele o não pôde conseguir em sua vida, o
recomendou à Câmara daquela Cidade. E tão certo estava de que a Senhora do
Desterro havia de ser servida naquele lugar por religiosas, que na sua morte
deixou ao Padre Reitor do Colégio da Companha (2) daquela Cidade mil cruzados
em depósito, para que assim que chegassem as religiosas a tomar posse daquela
casa lhes entregasse para a ceia daquele dia; como em efeito o executou, indo
logo entregá-los ás religiosas. E reparando elas na aceitação, o Padre Reitor
as certificou, de que aquele dinheiro era seu, e que se lhe havia deixado em
legado para quando elas chegassem.
Isto mesmo testemunha ainda hoje uma
companheira das Madres Fundadoras, que vive no Convento de Santa Clara da
Cidade de Évora (de onde saíram para fundar) neste presente ano de 1705, a qual
disse que estes mil cruzados depositaram logo as Madres Fundadoras, para se dar
com ele princípio a obra do seu Convento. O ano em que as Fundadoras saíram do
seu Convento de Évora, foi o de 1676 em oito de novembro. E tomaram posse do
Convento novo na Cidade da Bahia em nove de março de 1677. As Fundadoras eram a
Madre Soror Margarida da Coluna, que ia por Abadessa, a Madre Soror Luiza de
São José por Vigária, as outras duas eram a Madre Soror Maria de São Raimundo e
Soror Jerônima do Presépio. E teve muito de mistério, que todas quatro voltaram
a Portugal e foram para o seu Convento, aonde se restituíram todas em oito de
novembro de 1686. Gastando dez anos justos e completos nesta obra, que podíamos
dizer fora profetizada por aquele pio e devoto Governador Mem de Sá. Esta casa
da Senhora do Desterro é juntamente paróquia daquele distrito; se o era já
quando as religiosas tomaram posse não me constou; mas já o devia ser. A imagem
da Senhora é de talha estofada, e por ornato lhe põem um rico manto, e assim a
Senhora como São José; e o soberano menino se vem com varas de prata por
bordões, a sua estatura da Senhora são cinco palmos. Obrou sempre, e obra
muitos milagres. A sua festividade se faz sempre com grandeza em dia de Reis,
na qual se acaba o seu septenário.
NOTAS: 1) Tudo indica que o autor quer se
referir à cobra sucuri.
2) Refere-se à Companhia de Jesus.
(Transcrito do livro “Santuário Mariano e
História das Imagens Milagrosas de Nos-sa Senhora” – de Frei Agostinho de Santa
Maria – Em Lisboa – 1722- págs. 28/30).
(O trabalho de Frei Agostinho (“Santuário
Mariano...”) foi feito sob encomenda do Bispo, Dom Sebastião Monteiro da Vide,
que viu a necessidade de documentar todas as imagens milagrosas de Nossa
Senhora que haviam na Bahia).
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