A
priori
todo e qualquer poder de regência provém de Deus, sendo Ele o Regedor único e
universal de todos os seres. Inclusive a regência dos povos através da
política. No entanto, a regência divina não é imperativa e absoluta, para ser
perfeita ela pede a colaboração e participação dos regidos. Quando esta
co-participação da regência (ou co-regência) existe apenas entre os homens, ela
adquire algo de legitimidade, de caráter meramente humano, mas não é perfeita.
Não há perfeição sem Deus.
Os povos antigos, que se regiam segundo suas
tradições e escolhiam seus chefes entre os patriarcas, quando se afastavam de
Deus, logo, logo, perdiam (se mantinham, era por acaso) alguma legitimidade
baseada nessa co-regência, pois regiam apenas para si ou para alguns que os
rodeavam, desprezando as aspirações de seus regidos. Entre os povos da antiga
Mesopotâmia, região em que se desenvolveu a primeira civilização da terra,
sempre foi assim. Aqueles aos quais hoje se dá o título de reis (embora
chamados como “principais”, ou seja, meros patriarcas tribais, chefes de clãs,
eram reis no sentido de regência aqui abordado) regiam seus povos com mãos de
ferro, impondo sua vontade sobre os demais e nunca aceitando a
co-regência. Logo vieram os Assírios e
outros povos que lhes sucederam, todos com o mesmo método de regência. Ao longo
dos anos prevalecia, pois, aquela sentença do livro dos Provérbios: “Sob o
governo dos justos está alegre o povo; quando os ímpios tomam o governo, o povo
geme” (Prov 29, 2).
Mas, a partir de certa época começou a se
constituir o que denominamos de “Impérios”, quase todos formados pela força das
armas. Os povos dominados constituíam
vastidões imensas, indo da Ásia à Europa, perpassando pela África, como foram
os impérios dos Assírios, dos Medas, o Egípcio, o Grego, o Romano, etc. Em geral, como os
egípcios, os reis (ou chefes de tais impérios) provinham de “casas” familiares
e patriarcais da sede do império. Os faraós, por exemplo, que dominaram apenas
o Egito, eram descendentes de clãs locais e a ascensão ao trono, ou era imposta
pela descendência, ou por algum golpe da família opositora. Todos podem ter uma
legitimidade discutível, pois a aceitação popular era imposta pela força ou
pelo medo. E se, de início, tinham aceitação pacífica da população, ao passar dos
anos iam aos poucos regendo somente para si e seu grupo, tornando-se, portanto,
inautêntica a sua regência.
Algumas cidades gregas fizeram tentativas de
regências co-participativas, com as chamadas repúblicas ou “democracias”
gregas. Mas não passaram de algumas cidades e, mesmo assim, de pouca duração. O
único império antigo que tentou estabelecer, no início e por pouco tempo, uma
regência política mais participativa da população foi o romano. Antes de se constituírem
como um império, era apenas um povo que se auto-regia e escolhia (aparentemente)
seus dirigentes. O método de escolha era diferente dos outros povos. Nesse
tempo a sociedade romana era dividida em duas classes: a dos patrícios e a dos
plebeus. Os patrícios eram os chefes das clãs, os patriarcas das famílias
antigas que se uniram para formar o povo. Resolveram constituir a si mesmos, os
patrícios, o poder de reger de uma forma coletiva e criaram o Senado. Competia
a este legislar. Era uma tentativa de criar uma democracia nos moldes antigos,
talvez baseada em alguma experiência grega. Quanto aos demais (especialmente os
servos ou escravos), não tinham direito a nenhuma participação da regência, nem
sequer de escolha dos dirigentes, por voto ou aclamação.
Originalmente, pois, o senado romano era uma
reunião de chefes de famílias, ou os “patres familiarum”, de onde surgiu o
termo “patrício”. Foi também criada a figura do “cônsul”, nomeado pelos
senadores para mandato de apenas um ano, que detinha autoridade meramente
executiva. Mas, os cônsules não tinham plenos poderes, o termo “cônsul”
significava “sentar-se com”, quer dizer, a regência era dual. Em tempos de
crise o senado nomeava um “ditador” com poderes especiais, mas este também
apenas fazia executar as leis. Lembremos que os antigos “reis” legislavam a seu
talante (vejam o exemplo de Talião), o que não ocorria na Roma antiga, pois
quem elaborava as leis era o senado.
Portanto, o poder regencial criado pelos patrícios, no senado e nas
figuras do “cônsul” e do “ditador”, era apenas a continuidade daquilo que eles
já exerciam em suas localidades sobre os plebeus e escravos. Quando Roma
tornou-se um grande império esta situação começou a ficar insustentável. Eles
tinham necessidade de um rei, de um senhor que regesse com plenos poderes (os
povos que dominavam não entenderiam o que seria uma regência co-participativa)
e com a imposição da força, embora o regime aristocrático e patriarcal do
senado se opusesse a isso.
Uma figura que se tornou popular e começou a
adquirir poder entre os romanos (especialmente entre a plebe), foi a do
general, do comandante do exército e vencedor de suas guerras. É que o povo
antigo prestava mais culto à regência oriunda da força, do império das armas,
do que a pacífica. Nessa primeira fase, César foi o general mais popular, sendo
nomeado cônsul pelo senado. Quando César expandiu o império ao máximo, por
volta de 50 a. C, um pouco mais ou menos, era aclamado pela população como rei,
mas foi assassinado pelos próprios senadores, seguindo daí uma guerra interna
que durou cerca de 15 anos. Depois desse
episódio, ficou comum que um chefe do exército romano, cheio de glória das
batalhas, por isso geralmente aclamado pela população, assumisse o poder e se
tornasse, não um rei, não um regedor legítimo, mas um ditador “ad perpetuam”, e em geral,
também, sanguinário e perseguidor. Surge, a partir daí, o termo “imperador” que
os historiadores modernos concedem aos tiranos que regiam Roma e seus domínios. Nesse sentido de legitimidade, pois, Roma
nunca teve rei autêntico. Da mesma forma, os imperadores nunca eram escolhidos
ou aclamados como tal pela população, mas impostos pela força das armas. Muitos
deles mataram o atual titular do cargo e o assumiram em seguida.
Falamos anteriormente em democracia, mas São
Tomás discorda que este regime, por si mesmo, seja o mais legítimo. A
legitimidade não envolve somente a escolha do governante, mas a quem confere
lhe conceder os poderes para reger. O regime do povo, onde o mesmo governa é
impossível. Nunca se deu e nunca se dará em povo algum. É certo que,
modernamente falando, a democracia é o regime em que o povo escolhe, por
eleição, seus governantes. Elege-os, escolhe-os, mas não tem poderes para
tirá-los do poder da mesma forma que o elegeu, através do voto[1]. Então este poder de
regência é incompleto, pois nomeia procuradores, mas não os destitui. Aliás,
quem concede ao povo o poder de escolher, de eleger seus governantes?: uma
assembléia de notáveis, uma elite, em geral chamada de “constituinte”. Então
esta assembléia de notáveis tem mais poder do que o próprio povo, pois é quem
lhe confere a prerrogativa de escolher os governantes. As leis também não são
elaboradas pelo povo, nem sequer votadas pelo mesmo, mas por aqueles a quem
confiaram o poder de fazê-lo. Assim, o povo pode escolher um governante, como,
aliás, o fez o povo hebreu ao aclamar Davi como rei, essa prerrogativa de
escolher é natural em todo povo; mas, nunca conseguirá reger-se a si mesmo, não
de uma forma plena, mas, talvez, de uma forma mínima através de suas
organizações sociais. A auto-regência é
um atributo próprio a cada indivíduo, e a exerce, aliás, em conjunto com seus
semelhantes ou superiores; no que diz respeito ao conjunto de indivíduos, à
sociedade humana, essa auto-regência só pode ser exercida pelo poder político
concedido a regentes nomeados. Não há
condição do povo exercê-la, por si mesmo, de uma forma direta.
Poderia ser questionada a legitimidade das
famosas “democracias” gregas, pois, em geral tais regimes (como se viu) davam
um pouco do poder de escolha aos regidos, mas não respeitavam em cada indivíduo
o direito de auto-reger-se, a ponto de permitirem a escravidão como coisa mais
natural do mundo. Além do mais, como se viu, a forma como os regentes eram
escolhidos (ou “eleitos”) carecia de autenticidade: houve épocas em que os mesmos
eram escolhidos por sorteio, em outras por uma votação feita somente pelos de
classe superior, pela nobreza.
A legitimidade do poder político de regência
é ligada, pois, a estas questões:
1.
O povo pode escolher o governante, nomeia-o,
aclama-o, mas não lhe confere os poderes próprios ao cargo, como o de legislar
ou de aplicar as leis: isso cabe a uma “carta magna” elaborada por uma elite de
notáveis; em geral estas cartas constituintes não são feitas conforme os
anseios populares, mas sempre fruto de conciliábulos e acordo entre os grupos
políticos.
2.
O poder de reger só poderá ser tirado por uma
comissão de notáveis que tenha recebido tal prerrogativa (no mundo moderno,
pelos deputados eleitos pelo povo); quase nunca se ouviu dizer que povo algum
tenha destituído seus governantes, pelo menos de uma forma ordeira – as
chamadas revoluções populares que acabam por tirar alguém do poder são todas
manipuladas por grupos sociais, famílias ou partidos, e nunca por participação
espontânea de todo o povo.
3.
A regência plena e perfeita terá que provir de
Deus, pois somente Ele confere a todos os homens poderes de reger que promova a
verdadeira paz social. E Ele o faz submetendo os regentes a que aceitem a
co-regência de seus regidos e do próprio Deus.
4.
Como Ser Supremo da Criação, Legislador e
Regedor de todo o Universo, somente Deus pode conceder também o poder de
legislar, julgar e conceder o poder de regência a anjos e homens (como ocorre,
por exemplo, pelo poder natural de regência dado a um pai). É claro que uma
assembléia de notáveis eleitos pelo povo pode ter atribuições próprias de
legislar, assim como pode ser criada uma instituição própria a aplicar as leis
– julgar (como o faz a magistratura). Mas, não foi o povo que lhes concedeu o
poder de legislar e julgar, pois tais atributos são co-naturais na pessoa
humana e estão implícitos em toda a sociedade, isto é, os costumes e as normas
de vida são conformes as leis divinas e, por isso, influenciam os legisladores.
O Mesmo se diga dos juízes ao aplicarem as leis..
COMO ESTA LEGITIMIDADE É ABORDADA PELOS
LEGISLADORES ATUAIS
Após a Revolução Francesa (1789) os conceitos
de legitimidade política ficaram atrelados aos de democracia, pois tal regime
passou a ser apresentado como o mais legítimo pelo fato de facultar ao povo a
escolha dos governantes. No entanto, há de se considerar que a legitimidade não
envolve apenas a escolha dos regentes políticos, ela é mais abrangente.
Escolhido um governante hoje fica-se na impressão que isso basta para que o
mesmo faça o que bem lhe entenda sem que alguém possa lhe tirar do cargo. E se
houver necessidade disso o povo não é chamado às urnas. Geralmente, como no
caso do Brasil, quem tira o governante são os parlamentares e não o povo.
Em alguns países com sistemas
parlamentaristas há o costume de que, caso o governo não esteja atuando
corretamente, o mesmo convoque novas eleições para assim lhe garantir a
continuidade no cargo ou destituição. Teríamos aí uma situação em que o povo
poderia decidir a saída de um governante do poder. Mas, isso só ocorre se o
próprio governo convoca as tais eleições. Em alguns casos, por questão de
cultura e educação, alguns políticos renunciam e dão chance a que se faça nova
escolha. Não fica muito claro que foi o povo que decidiu as novas eleições, mas
sempre os políticos. Trata-se, mesmo assim, de uma regência popular indireta,
e, portanto, não completamente autêntica e legítima.
Pior está ocorrendo no Brasil de hoje. Uma
decisão recente do STF considerou aptos para decidir se um grupo que governa
continua ou não no cargo uma elite menos representativa ainda, por ser menos
numerosa, ao decretar que compete ao Senado e não à Câmara de Deputados tal
decisão. Desconsideraram o povo, a maioria, e a Câmara, a maioria de seus
representantes, para entregar tal poder a uma elite menos numerosa de notáveis,
muito mais manobráveis aos anseios de quem governa.
Não se
respeitou o princípio que se diz ser a base da democracia moderna, que é
o de respeito à maioria.
[1]
Poder-se-ia argumentar que o governante, hoje, pode ser destituído por aqueles
que o povo deu procuração para representá-lo, exercendo indiretamente tal
mandato de destituir. Mas, por que para eleger é de uma forma direta e para
destituir é assim por meio de procuradores?
Nenhum comentário:
Postar um comentário