(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)
Hoje é festa de Nossa Senhora
Aparecida, padroeira principal do Brasil.
Os senhores sabem que há, antes de
tudo, uma espécie de nexo de identidade entre Nossa Senhora de Aparecida e
Nossa Senhora da Conceição que se venera no Oratório, porque Nossa Senhora de
Aparecida é Nossa Senhora da Conceição Aparecida. É uma imagem de Nossa Senhora
da Conceição, que se chama Aparecida porque apareceu no Rio Paraíba, recolhida
por pescadores em dois lances de redes diferentes: primeiro a imagem de barro e
depois a cabeça, e então se chamou Aparecida, quer dizer, a imagem da Conceição
Aparecida no Rio Paraíba.
A imagem que nós temos no
Oratório é também da Imaculada Conceição e o Brasil é, propriamente, um feudo
de Nossa Senhora, enquanto Maria concebida sem pecado, quer dizer, enquanto
Imaculada Conceição, Aparecida no Rio Paraíba. O título de Nossa Senhora
Aparecida é uma espécie de segunda invocação, ou de segundo título, que se
insere sobre o tronco principal à maneira de um ramo no tronco principal. O
tronco principal é a Imaculada Conceição. A imagem que nós temos da Imaculada
no Oratório é uma imagem da Conceição.
O fato de esta imagem ter
aparecido no século XVIII, quando o Brasil ainda era Colônia, tem um
significado muito grande para nós: durante séculos, desde o início da Igreja
até o pontificado de Pio IX, foi discutido entre os teólogos se se poderia
afirmar, como dogma de fé, que Nossa Senhora fora concebida sem pecado
original.
Havia muitos teólogos que
achavam e sustentavam que isto se deduzia da Escritura e, sobretudo, se deduzia
da Tradição da Igreja. Havia, entretanto, teólogos que achavam o contrário, que
Nossa Senhora não fora isenta do pecado original, Ela tinha sido, portanto,
concebida no pecado original.
Na Igreja, os espíritos
mais mariais, os espíritos mais tocados pela devoção a Nossa Senhora, sempre
sustentaram que Ela não tinha sido concebida no pecado original. Ao longo dos
séculos foi se consolidando a corrente a favor da Imaculada Conceição — objeto
de muitas disputas internas na Igreja — a tal ponto que cento e cinqüenta ou
duzentos anos antes de Pio IX e da definição do dogma, já a questão estava tão
clareada, que todo o mundo que era de bom espírito sustentava a Imaculada
Conceição de Nossa Senhora. Enquanto todo o mundo que sustentava que Ela tinha
sido concebida no pecado original era gente, em geral, de mau espírito e que
não era santa.
Quer dizer, tinham se
diferenciado completamente os dois filões dentro da Igreja, e ser a favor da
Imaculada Conceição era como que ser ultramontano em nossos dias.
Ser favorável à Imaculada
Conceição era um sinal, um distintivo de ultramontanismo daquele tempo, e o
Brasil foi colocado sob o patrocínio desta devoção, então ultramontana,
exatamente a partir daquele tempo. Isto indica certa vocação ultramontana do
Brasil, que nós não podemos deixar de notar, e de notar com reconhecimento a
propósito desta festa.
A devoção a Nossa Senhora como escravo de amor e sua difusão no
Brasil. Vida de Frei Galvão
Uma coisa curiosa que eu
soube outro dia é que também no Brasil a devoção a Nossa Senhora a título de
escravo d’Ela, como ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort, entrou
aqui muito mais cedo do que supúnhamos.
Quando eu era pequeno,
nunca ouvi falar da escravidão a Nossa Senhora. Só ouvi falar desta escravidão
mais moço, e muito mais tarde quando comprei o Tratado da Verdadeira Devoção
de São Luís, em francês, vindo da França. Depois conheci algumas pessoas que
falavam da escravidão a Nossa Senhora porque tinham lido o Tratado, em
francês. Eu tive, assim, uma impressão vaga, difusa, de que no Brasil nunca
ninguém tinha conhecido a verdadeira devoção a Nossa Senhora e que Ela não
tinha tido no Brasil escravos antes do Grupo, ou pelo menos, antes da
penetração do livro de São Luís Grignion de Montfort no Brasil, que foi um
tanto anterior ao Grupo.
Lendo outro dia a vida de
Frei Galvão, franciscano morto em odor de santidade — vida, aliás, muito
bonita, muito cheia de pormenores interessantes, etc. — e fundador do Convento
da Luz onde está sepultado, dei com a fotocópia de um ato em que ele se
constituía escravo de Nossa Senhora, em que trechos inteiros desse ato eram
tirados do Tratado da Verdadeira
Devoção.
Vê-se que ele adaptou um
tanto a consagração de São Luís Grignion, mas no essencial é inteiramente
aquilo. E há partes enormes, há palavras tiradas de São Luís Grignion de
Montfort. É uma consagração muito longa, talvez mais longa que a de São Luís
Maria Grignion de Montfort, e que enche na caligrafia muito miúda d’Ele, creio
que os dois lados de uma página de papel amarelada, que está exposta, aliás, no
museu de Arte Sacra, contíguo ao atual Convento da Luz.
Portanto, tive a alegria
de saber que Nossa Senhora teve escravos muito anteriormente a nós e que, neste
país onde a propensão sobrenatural para a devoção a Nossa Senhora é uma das
bênçãos que existem, talvez tenha tido, desde o início, escravos seus vivendo
aqui, e preparando o dia em que o Brasil inteiro seria uma grande nação escrava
de sua Rainha, Nossa Senhora.
Diferença entre o dogma da Imaculada Conceição e a virgindade de
Nossa Senhora antes, durante e depois do parto
Estas considerações feitas
de passagem a respeito da festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, nos
levam, entretanto, a aprofundar um pouco mais o dogma da Imaculada Conceição,
uma vez que amanhã se comemora uma das festas da Imaculada Conceição.
Não sei se todos os
senhores têm bem a idéia atualmente do que é a Imaculada Conceição. O público
confunde a Imaculada Conceição com outro predicado nobilíssimo de Nossa
Senhora, mas que é distinto deste. O público confunde a Imaculada Conceição com
a virgindade de Nossa Senhora antes, durante e depois do parto. São coisas
diferentes: é dogma de Fé que Nossa Senhora foi virgem antes, durante e depois
do parto. A Imaculada Conceição é uma coisa diversa, como veremos.
Tendo Adão e Eva pecado, e
sendo eles, na presença de Deus, os pais do gênero humano, contendo, portanto,
todo o gênero humano em si, como por exemplo a semente contém a árvore,
aconteceu que os efeitos do pecado recaíram sobre sua descendência, e os
castigos que Adão e Eva sofreram, pesaram sobre todos os descendentes que
tiveram depois do pecado.
É mais ou menos como,
quando o pai ou a mãe contraem uma doença muito ruim e o filho herda a doença.
Ele pode não ter culpa que tenha [devido] aos pais esta doença, mas o filho
acaba nascendo com esta doença. Assim, nós nascemos com os efeitos do pecado
original.
Os efeitos do pecado
original no homem são tremendos. Todo prosaísmo que existe na natureza humana,
tudo aquilo que no homem causa repugnância, causa asco, por exemplo, é efeito
do pecado original. Nós não sabemos como funcionava o organismo antes do pecado
original, mas é positivo que nada do que se dava no organismo humano antes do
pecado original era nojento como as coisas depois do pecado original.
Os santos acentuam muitas
vezes a miséria da condição do homem depois do pecado, como sendo um corpo, ou
como tendo um corpo, que de si, continuamente, produz imundícies. Isto é bem
verdade, e é uma das notas mais humilhantes da condição humana. Tudo quanto sai
do homem é desagradável, nós reputamos sujeira, desde o pranto até o suor,
etc., porque tudo isto vem carregado do prosaísmo deste corpo que tem a nódoa
do pecado original.
O homem se tornou sujeito
à doença depois do pecado original; ele se tornou sujeito à morte depois do
pecado original; sujeito à dor depois do pecado original; sujeito ao erro
depois do pecado original. O homem não errava antes do pecado original, não
havia nele, antes do pecado original, esta oposição entre a sensibilidade de um
lado e a inteligência e a vontade do outro.
De maneira que tantas
vezes desejamos algo que nossa inteligência mostra que é reprovável, que nossa
vontade não deseja, de onde então a necessidade de um combate para recusarmos à
nossa sensibilidade aquilo que a nossa inteligência mostra que é ruim e de que
nossa vontade deve afastar-se.
Nada disto existia no
homem, que era uma criatura absolutamente superior de cuja perfeição nós não
temos a menor idéia. Se um homem concebido antes do pecado chorasse, mesmo o
seu pranto seria um pranto perfumado e bonito e nunca uma das imundícies da
terra. Do seu corpo nada de sujo exalaria; todas as mil misérias que nos
afligem, o homem não teria antes do pecado original.
Então, por detrás do
pecado original e de Nossa Senhora se punha o seguinte problema — que tem um
valor não tanto teológico, quanto psicológico — Nossa Senhora, Ela, como era?
Nossa Senhora, por exemplo, estava sujeita ao resfriado? Nossa Senhora assoava
o nariz? O produto da secreção d’Ela seria repugnante como o nosso? Ela teria
as mil mazelas físicas?
Podemos imaginar Nossa
Senhora — não havia dentistas naquele tempo — indo a um dentista, se os
houvesse? Nós podemos imaginar Nossa Senhora chegando a um médico — naquele
tempo eram pouco mais do que curandeiros, mas já então, se julgavam muito
seguros de sua arte — porque tinha, por exemplo, um cálculo nos rins? É
inimaginável.
Se nós imaginássemos Nossa
Senhora assim, ou nossa idéia de Nossa Senhora diminuía, ou a nossa rejeição em
relação a estas misérias do homem diminuiria, e nós sentiríamos menos que isto
é efeito do pecado original, e seríamos menos alheios a isto.
Não sei se os senhores
compreendem psicologicamente o que é que vai por detrás disto. São dois feitios
de espírito.
Eu não quero dizer que
todo mundo que foi contra a Imaculada Conceição tinha este mau espírito, mas eu
quero dizer que todo mundo que tinha este mau espírito era propenso a ser
contrário à Imaculada Conceição, que é uma coisa distinta. Os senhores
compreendem aí o problema psicológico que se põe.
Então os senhores
compreendem que espécie de família de almas é que combateu tenazmente a
Imaculada Conceição até o fim, e os senhores compreendem, então, algo do
sentido revolucionário e contra-revolucionário desta luta em seus aspectos [
ininteligível ] este é o comentário vivo do que é este lado do dogma da
Imaculada Conceição.
Não sei se consegui ser
claro a este respeito ou não?
Nossa Senhora não envelhecia, mas ia tomando com o tempo uma
maturidade cheia de esplendor. Ao chegar o momento de sua morte, esta foi
apenas uma "dormição"
Nossa Senhora era
imaculada. O corpo humano tinha certo desenvolvimento, por onde ele ia tomando
cada vez mais uma certa maturidade que era uma maturidade cheia de esplendor.
Nossa Senhora velou externamente, aos olhos dos homens, o fato de Ela ser isenta
do pecado original, de maneira que certas manifestações do pecado original,
como o envelhecer, Ela teve, mas teve não por causa de sua natureza. E, assim
mesmo, teve de um modo esplêndido.
Não podemos imaginar Nossa
Senhora enrugada, Nossa Senhora usando óculos, — aliás, não havia óculos no
tempo de Nossa Senhora —, Nossa Senhora perdendo os dentes, não podemos
imaginar nada disto, é uma velhice como que aparente, e uma maturidade cheia de
nobreza, uma coisa da qual nós não conseguimos ter uma idéia.
Quando se tratou da
ocasião d’Ela morrer, d’Ela ser levada aos céus, a linguagem teológica muito
sutil e delicada, não fala da morte de Nossa Senhora, mas fala da dormitio
de Nossa Senhora — em português diz-se dormição, que vem da palavra dormir —, e
que só se aplica para a morte de Nossa Senhora. Quer dizer, uma morte tão leve
— se é que se pode dizer assim —, tão tênue — se se pudesse dizer -, uma
verdadeira morte, mas, se se pudesse dizer, Ela ficou tão viva na morte que se
falou da dormição de Nossa Senhora.
Ela teve o que chamamos de
dormição: Dormitio Beata Maria Virginis. Até havia, antigamente, um
sistema muito bonito de mostrar a dormição de Nossa Senhora, — para dar a idéia
do efêmero desta morte, — sempre junto à Assunção. No mesmo altar, embaixo, uma
concha com cristal, representando uma imagem de Nossa Senhora toda vestida,
sobre [cochins] etc., deitada em atitude de prece e logo em cima Ela subindo
aos Céus, ou não separar a morte da idéia da Assunção.
("Conferência", 12 de outubro de 1970)
Nenhum comentário:
Postar um comentário