terça-feira, 11 de outubro de 2016

NOSSA SENHORA APARECIDA



(COMENTÁRIOS DE DR. PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA SOBRE A SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA)


Hoje é festa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira principal do Brasil.
Os senhores sabem que há, antes de tudo, uma espécie de nexo de identidade entre Nossa Senhora de Aparecida e Nossa Senhora da Conceição que se venera no Oratório, porque Nossa Senhora de Aparecida é Nossa Senhora da Conceição Aparecida. É uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, que se chama Aparecida porque apareceu no Rio Paraíba, recolhida por pescadores em dois lances de redes diferentes: primeiro a imagem de barro e depois a cabeça, e então se chamou Aparecida, quer dizer, a imagem da Conceição Aparecida no Rio Paraíba.
A imagem que nós temos no Oratório é também da Imaculada Conceição e o Brasil é, propriamente, um feudo de Nossa Senhora, enquanto Maria concebida sem pecado, quer dizer, enquanto Imaculada Conceição, Aparecida no Rio Paraíba. O título de Nossa Senhora Aparecida é uma espécie de segunda invocação, ou de segundo título, que se insere sobre o tronco principal à maneira de um ramo no tronco principal. O tronco principal é a Imaculada Conceição. A imagem que nós temos da Imaculada no Oratório é uma imagem da Conceição.
O fato de esta imagem ter aparecido no século XVIII, quando o Brasil ainda era Colônia, tem um significado muito grande para nós: durante séculos, desde o início da Igreja até o pontificado de Pio IX, foi discutido entre os teólogos se se poderia afirmar, como dogma de fé, que Nossa Senhora fora concebida sem pecado original.
Havia muitos teólogos que achavam e sustentavam que isto se deduzia da Escritura e, sobretudo, se deduzia da Tradição da Igreja. Havia, entretanto, teólogos que achavam o contrário, que Nossa Senhora não fora isenta do pecado original, Ela tinha sido, portanto, concebida no pecado original.
Na Igreja, os espíritos mais mariais, os espíritos mais tocados pela devoção a Nossa Senhora, sempre sustentaram que Ela não tinha sido concebida no pecado original. Ao longo dos séculos foi se consolidando a corrente a favor da Imaculada Conceição — objeto de muitas disputas internas na Igreja — a tal ponto que cento e cinqüenta ou duzentos anos antes de Pio IX e da definição do dogma, já a questão estava tão clareada, que todo o mundo que era de bom espírito sustentava a Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Enquanto todo o mundo que sustentava que Ela tinha sido concebida no pecado original era gente, em geral, de mau espírito e que não era santa.
Quer dizer, tinham se diferenciado completamente os dois filões dentro da Igreja, e ser a favor da Imaculada Conceição era como que ser ultramontano  em nossos dias.
Ser favorável à Imaculada Conceição era um sinal, um distintivo de ultramontanismo daquele tempo, e o Brasil foi colocado sob o patrocínio desta devoção, então ultramontana, exatamente a partir daquele tempo. Isto indica certa vocação ultramontana do Brasil, que nós não podemos deixar de notar, e de notar com reconhecimento a propósito desta festa. 

A devoção a Nossa Senhora como escravo de amor e sua difusão no Brasil. Vida de Frei Galvão

Uma coisa curiosa que eu soube outro dia é que também no Brasil a devoção a Nossa Senhora a título de escravo d’Ela, como ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort, entrou aqui muito mais cedo do que supúnhamos.
Quando eu era pequeno, nunca ouvi falar da escravidão a Nossa Senhora. Só ouvi falar desta escravidão mais moço, e muito mais tarde quando comprei o Tratado da Verdadeira Devoção de São Luís, em francês, vindo da França. Depois conheci algumas pessoas que falavam da escravidão a Nossa Senhora porque tinham lido o Tratado, em francês. Eu tive, assim, uma impressão vaga, difusa, de que no Brasil nunca ninguém tinha conhecido a verdadeira devoção a Nossa Senhora e que Ela não tinha tido no Brasil escravos antes do Grupo, ou pelo menos, antes da penetração do livro de São Luís Grignion de Montfort no Brasil, que foi um tanto anterior ao Grupo.
Lendo outro dia a vida de Frei Galvão, franciscano morto em odor de santidade — vida, aliás, muito bonita, muito cheia de pormenores interessantes, etc. — e fundador do Convento da Luz onde está sepultado, dei com a fotocópia de um ato em que ele se constituía escravo de Nossa Senhora, em que trechos inteiros desse ato eram tirados do Tratado da Verdadeira Devoção.
Vê-se que ele adaptou um tanto a consagração de São Luís Grignion, mas no essencial é inteiramente aquilo. E há partes enormes, há palavras tiradas de São Luís Grignion de Montfort. É uma consagração muito longa, talvez mais longa que a de São Luís Maria Grignion de Montfort, e que enche na caligrafia muito miúda d’Ele, creio que os dois lados de uma página de papel amarelada, que está exposta, aliás, no museu de Arte Sacra, contíguo ao atual Convento da Luz.
Portanto, tive a alegria de saber que Nossa Senhora teve escravos muito anteriormente a nós e que, neste país onde a propensão sobrenatural para a devoção a Nossa Senhora é uma das bênçãos que existem, talvez tenha tido, desde o início, escravos seus vivendo aqui, e preparando o dia em que o Brasil inteiro seria uma grande nação escrava de sua Rainha, Nossa Senhora. 


Diferença entre o dogma da Imaculada Conceição e a virgindade de Nossa Senhora antes, durante e depois do parto

Estas considerações feitas de passagem a respeito da festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, nos levam, entretanto, a aprofundar um pouco mais o dogma da Imaculada Conceição, uma vez que amanhã se comemora uma das festas da Imaculada Conceição.
Não sei se todos os senhores têm bem a idéia atualmente do que é a Imaculada Conceição. O público confunde a Imaculada Conceição com outro predicado nobilíssimo de Nossa Senhora, mas que é distinto deste. O público confunde a Imaculada Conceição com a virgindade de Nossa Senhora antes, durante e depois do parto. São coisas diferentes: é dogma de Fé que Nossa Senhora foi virgem antes, durante e depois do parto. A Imaculada Conceição é uma coisa diversa, como veremos.
Tendo Adão e Eva pecado, e sendo eles, na presença de Deus, os pais do gênero humano, contendo, portanto, todo o gênero humano em si, como por exemplo a semente contém a árvore, aconteceu que os efeitos do pecado recaíram sobre sua descendência, e os castigos que Adão e Eva sofreram, pesaram sobre todos os descendentes que tiveram depois do pecado.
É mais ou menos como, quando o pai ou a mãe contraem uma doença muito ruim e o filho herda a doença. Ele pode não ter culpa que tenha [devido] aos pais esta doença, mas o filho acaba nascendo com esta doença. Assim, nós nascemos com os efeitos do pecado original.
Os efeitos do pecado original no homem são tremendos. Todo prosaísmo que existe na natureza humana, tudo aquilo que no homem causa repugnância, causa asco, por exemplo, é efeito do pecado original. Nós não sabemos como funcionava o organismo antes do pecado original, mas é positivo que nada do que se dava no organismo humano antes do pecado original era nojento como as coisas depois do pecado original.
Os santos acentuam muitas vezes a miséria da condição do homem depois do pecado, como sendo um corpo, ou como tendo um corpo, que de si, continuamente, produz imundícies. Isto é bem verdade, e é uma das notas mais humilhantes da condição humana. Tudo quanto sai do homem é desagradável, nós reputamos sujeira, desde o pranto até o suor, etc., porque tudo isto vem carregado do prosaísmo deste corpo que tem a nódoa do pecado original.
O homem se tornou sujeito à doença depois do pecado original; ele se tornou sujeito à morte depois do pecado original; sujeito à dor depois do pecado original; sujeito ao erro depois do pecado original. O homem não errava antes do pecado original, não havia nele, antes do pecado original, esta oposição entre a sensibilidade de um lado e a inteligência e a vontade do outro.
De maneira que tantas vezes desejamos algo que nossa inteligência mostra que é reprovável, que nossa vontade não deseja, de onde então a necessidade de um combate para recusarmos à nossa sensibilidade aquilo que a nossa inteligência mostra que é ruim e de que nossa vontade deve afastar-se.
Nada disto existia no homem, que era uma criatura absolutamente superior de cuja perfeição nós não temos a menor idéia. Se um homem concebido antes do pecado chorasse, mesmo o seu pranto seria um pranto perfumado e bonito e nunca uma das imundícies da terra. Do seu corpo nada de sujo exalaria; todas as mil misérias que nos afligem, o homem não teria antes do pecado original.
Então, por detrás do pecado original e de Nossa Senhora se punha o seguinte problema — que tem um valor não tanto teológico, quanto psicológico — Nossa Senhora, Ela, como era? Nossa Senhora, por exemplo, estava sujeita ao resfriado? Nossa Senhora assoava o nariz? O produto da secreção d’Ela seria repugnante como o nosso? Ela teria as mil mazelas físicas?
Podemos imaginar Nossa Senhora — não havia dentistas naquele tempo — indo a um dentista, se os houvesse? Nós podemos imaginar Nossa Senhora chegando a um médico — naquele tempo eram pouco mais do que curandeiros, mas já então, se julgavam muito seguros de sua arte — porque tinha, por exemplo, um cálculo nos rins? É inimaginável.
Se nós imaginássemos Nossa Senhora assim, ou nossa idéia de Nossa Senhora diminuía, ou a nossa rejeição em relação a estas misérias do homem diminuiria, e nós sentiríamos menos que isto é efeito do pecado original, e seríamos menos alheios a isto.
Não sei se os senhores compreendem psicologicamente o que é que vai por detrás disto. São dois feitios de espírito.
Eu não quero dizer que todo mundo que foi contra a Imaculada Conceição tinha este mau espírito, mas eu quero dizer que todo mundo que tinha este mau espírito era propenso a ser contrário à Imaculada Conceição, que é uma coisa distinta. Os senhores compreendem aí o problema psicológico que se põe.
Então os senhores compreendem que espécie de família de almas é que combateu tenazmente a Imaculada Conceição até o fim, e os senhores compreendem, então, algo do sentido revolucionário e contra-revolucionário desta luta em seus aspectos [ ininteligível ] este é o comentário vivo do que é este lado do dogma da Imaculada Conceição.
Não sei se consegui ser claro a este respeito ou não?

Nossa Senhora não envelhecia, mas ia tomando com o tempo uma maturidade cheia de esplendor. Ao chegar o momento de sua morte, esta foi apenas uma "dormição"

Nossa Senhora era imaculada. O corpo humano tinha certo desenvolvimento, por onde ele ia tomando cada vez mais uma certa maturidade que era uma maturidade cheia de esplendor. Nossa Senhora velou externamente, aos olhos dos homens, o fato de Ela ser isenta do pecado original, de maneira que certas manifestações do pecado original, como o envelhecer, Ela teve, mas teve não por causa de sua natureza. E, assim mesmo, teve de um modo esplêndido.
Não podemos imaginar Nossa Senhora enrugada, Nossa Senhora usando óculos, — aliás, não havia óculos no tempo de Nossa Senhora —, Nossa Senhora perdendo os dentes, não podemos imaginar nada disto, é uma velhice como que aparente, e uma maturidade cheia de nobreza, uma coisa da qual nós não conseguimos ter uma idéia.
Quando se tratou da ocasião d’Ela morrer, d’Ela ser levada aos céus, a linguagem teológica muito sutil e delicada, não fala da morte de Nossa Senhora, mas fala da dormitio de Nossa Senhora — em português diz-se dormição, que vem da palavra dormir —, e que só se aplica para a morte de Nossa Senhora. Quer dizer, uma morte tão leve — se é que se pode dizer assim —, tão tênue — se se pudesse dizer -, uma verdadeira morte, mas, se se pudesse dizer, Ela ficou tão viva na morte que se falou da dormição de Nossa Senhora.
Ela teve o que chamamos de dormição: Dormitio Beata Maria Virginis. Até havia, antigamente, um sistema muito bonito de mostrar a dormição de Nossa Senhora, — para dar a idéia do efêmero desta morte, — sempre junto à Assunção. No mesmo altar, embaixo, uma concha com cristal, representando uma imagem de Nossa Senhora toda vestida, sobre [cochins] etc., deitada em atitude de prece e logo em cima Ela subindo aos Céus, ou não separar a morte da idéia da Assunção.



("Conferência", 12 de outubro de 1970)



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