Quase ao findar
o ano de 1983, Dr. Plínio Corrêa de Oliveira publicou na "Folha de São
Paulo" um artigo intitulado "Quatro
Dedos Sujos e Feios", onde analisava a forma
misteriosa como ele via a esquerda se transformar na violência urbana que
crescia assustadoramente. Passados 40 anos, vê-se hoje como aquelas previsões
se cumprem, como se diz, "ao pé da letra". Após lê-lo, convém
analisar como anda hoje a violência urbana no Brasil, especialmente a partir da
posse do novo governo de esquerda.
Quatro
Dedos Sujos e Feios
Plínio Corrêa de
Oliveira
A perplexidade se dá bem com macias cadeiras de couro, nas quais o homem sente
afundar-se gostosamente. É que há certa analogia entre estar atolado em
questões perplexitantes, e em poltronas de molas macias. O homem perplexo,
afundado em couros, fica atolado tanto de corpo como de alma, o que confere à
situação dele essa unidade que nossa natureza pede insistentemente, a todo
propósito.
É verdade que tal unidade não vai aí sem alguma contradição. As perplexidades
constituem para a mente um atoleiro penoso. Um purgatório. Por vezes quase um
inferno. Pelo contrário, os couros e as molas proporcionam ao corpo cansado um
atoleiro delicioso, reparador. Mas essa contradição não fere a unidade. E
diminui o tormento do homem, em vez de o acrescer.
Para prová-lo ao leitor, bastaria a este
imaginar quão pior seria a situação de um homem perplexo, sentado num duro
banco de madeira...
Ocorreu-me isto tudo ao recordar que, numa
noite destas, chegado ao termo o jantar, resolvi refletir sobre a situação
nacional, atoleiro no sentido mais preciso e sinistro do termo. E para isto me
afundei instintivamente em uma profunda e macia poltrona de couro. Comecei
então a pensar...
A ronda macabra dos vários problemas pátrios,
ideológicos, sociais e econômicos, começou a dançar em meu espírito. A fim de
ver claro, eu procurava deter a feia ciranda, de modo a analisar, uma por uma,
as várias questões que a formavam. Mas estas pareciam fugir a toda avaliação
exata, executando cada qual, diante de meus olhos por fim fatigados, um
movimento convulsivo à maneira do "delirium tremens". Pertinaz, eu
insistia. Mas elas, não menos pertinazes do que eu, aumentavam seu tremor, e de
repente retomavam em galope sua ciranda.
Febre? Pesadelo? O certo é que me senti
subitamente em presença de um personagem muito real, de carne e osso...
E eu, que tinha intenção de comunicar aos
leitores o resultado de minhas lucubrações, fiquei reduzido a contar-lhes o que
este personagem me disse.
O tal homem a-temporal me tratava de você, com
uma certa superioridade que tinha seu tantinho de irônico e de condescendente.
E, pondo em riste o indicador curto e pouco limpo da mão direita, como para me anunciar
uma primeira lição, sentenciou: "Saiba que eu, o comunismo, fracassei
neste sossegado Brasil. O PC é aqui um anão que dá vergonha. Por isso, evito de
o apresentar sozinho em público. O sindicalismo não me adiantou de nada. Possuo
muitos de seus chefes, mas escorre-me das mãos o domínio sobre suas bases
bonacheironas ("pacifistas", diria você). Entrei pelas Cúrias, pelas
casas paroquiais, seminários e conventos. Que belas conquistas eu fiz. Mas
ainda aí prosperei nas cúpulas, porém a maior parte da miuçalha carola me vai
escapando. Noto, Plinio, sua cara alegre ante minha envergonhada confidência.
Você me reputa derrotado. Bobão! Mostrar-lhe-ei que tenho outros modos de
progredir.
— Você duvida? — Sim, eu duvidava.
Então ele levantou teatralmente, ao lado do
dedo indicador, o dedo médio, um pouco mais longo e não menos rejeitável. E
entrou a dar sua segunda lição.
"Começarei por um sofisma. Farei o que
você não imagina: a apologia do crime. Sim, direi por mil lábios, através de
mil penas, milhões de vídeos e de microfones, que a onda de criminalidade, a
qual tanto assusta os repugnantes burgueses, raramente nasce da maldade dos
homens. Nas tribos indígenas, os crimes são mais raros do que entre os
civilizados. O que quer dizer que o crime nasce entre nós das convulsões
sociais originadas da fome. Elimine-se a fome, desaparece o crime. Como, aliás,
também a prostituição.
"Quem você chama de criminoso é uma
vítima. Sabe quem é o criminoso verdadeiro? É o proprietário. Sobretudo o
grande proprietário. Principalmente este é que rouba o pobre.
"Enquanto um ladrão de penitenciária rouba
um homem, o proprietário rouba um povo inteiro. Seu crime social é de uma
maldade sem nome!"
O delírio leva a muita coisa. Pensei em
expulsar o jactancioso idiota. Mas o comodismo me manteve atolado em minha
poltrona. Furibundo e inerte, deixei-o continuar.
Ele levantou o dedo anular, feio irmão dos dois
que já estavam erguidos. E prosseguiu.
"Há mais uma "seu" Plinio. À
vista de tudo quanto eu disse, um
governo consciente de suas obrigações tem por dever desmantelar a repressão e
deixar avançar a criminalidade. Pois esta não é senão a revolução social em marcha. Todo
assassino, todo ladrão, todo estuprador não é senão um arauto do furor popular.
E por isto farei constar ao mundo inteiro que a explosão criminal no Brasil
está sendo caluniada por reacionários ignóbeis. A criminalidade é a expressão
deste furor justamente vindicativo das massas, que os sindicatos e a esquerda
católica não souberam galvanizar."
Suspendendo o minguinho, miniatura fiel dos
três dedos já em riste, meu homem riu. "Farei entrar armas no Brasil. Quando os burgueses
apavorados estiverem bem persuadidos de que não há saída para mais nada,
suscitarei dentre os que você chama "criminosos", um ou alguns
líderes, que saberei camuflar de carismáticos. E farei algum bispo anunciar
que, para evitar mal maior, é preciso que os burgueses se resignem a tratar com
aqueles que têm um grau de banditismo menor.
"Vejo a sua careta. Você está achando a
burguesia preparada para cometer mais esse erro. Tem razão. Assim se constituirá um governo à Kerensky, bem de esquerda.
O dia seguinte será do Lênin que eu escolher."
Levantei-me para agarrar o homem. Quando fiquei
de pé, acabei automaticamente de acordar. Ou cessou a febre...
Escrevi logo quanto "vira" e
"ouvira", pois só até poucos minutos depois da febre ou do sono, tais
impressões se podem conservar com alguma vitalidade.
Leitor, desejo que elas não lhe dêem febre. Se
é que, antes de terminar a leitura, elas não lhe darão sono.
Este não será, em todo caso, um tranqüilo sono
de primavera. Mas estará em consonância com essa metereologia caótica dos dias
aguados e feios com que vai começando novembro.
P.S. — A Polícia paulista parece hoje em
reviravolta. Que diria a isto o hominho dos quatro dedos sujos? Em São Paulo, e
pelo Brasil afora, que rumo tomará o buscapé da subversão? Parar, não parará...
("Folha de S. Paulo", 16 de novembro de 1983)
Observação:
não teria sentido qualquer ligação entre o personagem do Dr. Plínio, o
"homenzinho de quatro dedos sujos e feios", e o presidente Lula, o
qual, apesar de também possuir quatro dedos numa mão (por sinal, o
"minguinho" é o único que falta nele, mas é um dos citados no
artigo), na época do presente artigo nem sequer cogitava de se candidatar a
presidente, embora seu partido já começasse a disputar cargos importantes como
a prefeitura de São Paulo.
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