São
João Crisóstomo ficou conhecido como o "maior pregador da Igreja
primitiva"
(século IV e início do século seguinte) , cognominado de “Boca de Ouro” por causa de
sua grande eloquência. Ficou mais famoso por causa de suas homilias. Entre elas
estão 57 sobre o Gênesis, 59 sobre os Salmos, 90 sobre o Evangelho de Mateus, 88 sobre o Evangelho de João e 55 sobre
os Atos dos Apóstolos. A “Legenda Dourada”
contém este magnífico texto em que São João Crisóstomo comenta sobre quem foi o
“Apóstolo das Gentes”
“Crisóstomo em seu livro “Elogio de
Paulo” fez múltiplos comentários favoráveis ao glorioso apóstolo:
“Não se enganou quem chamou a alma de
Paulo de magnífico campo de virtudes e de paraíso espiritual. Onde encontrar
uma língua digna de louvá-lo, a ele cuja alma possui, sozinha, todos os bens
que se podem encontrar em todos os homens e que reúne não apenas todas as
virtudes humanas, mas, o que é melhor ainda, também as virtudes angelicais?
Tarefa difícil, que não nos deve interromper. O maior elogio que se pode fazer
a alguém é reconhecer que falar de suas virtudes e de sua grandeza supera
nossas possibilidades. É glorioso para nós sermos vencidos nisso. Podemos,
portanto, começar esse elogio dizendo que ele possuiu todas as qualidades.
Elogia-se a Abel por um sacrifício que
ofereceu a Deus, mas se observarmos todas as oferendas feitas por Paulo vê-se
que ele o superou da mesma forma que o Céu em relação à Terra, pois todo dia
ele fazia um sacrifício, o da mortificação do coração e o da mortificação do
corpo. Não eram nem ovelhas nem bois que ele ofertava, era ele próprio que se
imolava duplamente. Não satisfeito, ele queria oferecer o universo, a terra, o
mar, os gregos, os bárbaros, todas as regiões iluminadas pelo sol que ele percorreu
com a rapidez do voo para encontrar homens, ou melhor dizendo, demônios, que
elevou á dignidade de anjos. Onde encontrar uma hóstia comparável à que Paulo
imolou com o gládio do Espírito Santo e que ofertou num altar situado acima do
Céu? Abel pereceu sob os golpes de um irmão, Paulo foi morto por aqueles a quem
ele desejava arrancar de incontáveis males. Querem saber quantas mortes ele
sofreu? Tantas quantos os dias que viveu.
Noé salvou-se na arca com os filhos,
Paulo para salvar a todos de um dilúvio muito mais terrível construiu uma arca
não com peças de madeira, mas com suas epístolas, que livraram o mundo do
perigo. Essa arca não navega sobre ondas que chegam à costa, ela vai por todo o
mundo. Suas tábuas não untadas de pez nem de betume, mas impregnadas do
Espírito Santo. Ao escrevê-las, ele fez dos insensatos e seres irracionais,
imitadores dos anjos. Sua arca supera aquela que recebeu e soltou o corvo, que
abrigou o lobo sem fazer ele perde sua ferocidade, pois a de Paulo transforma
os abutres e gaviões em pombas, introduzindo mansidão em espíritos ferozes.
Admira-se Abraão, que por ordem de Deus
abandonou sua pátria e seus parentes, mas não se pode igualá-lo a Paulo, que
não deixou apenas seu país e seus parentes, como o próprio mundo e mesmo o Céu
e até o Céu dos Céus. Ele desprezou tudo para servir a Cristo, reservando para
si apenas uma coisa, a caridade de Cristo. Como ele mesmo disse: “Nem as coisas
presentes, nem as vindouras, nem tudo o que há de mais elevado ou mais
profundo, nada e ninguém jamais me poderá separar do amor a Deus que é fundado
em Jesus Cristo Nosso Senhor” [1]
Abraão expõe-se ao perigo para livrar os filhos de seu irmão dos inimigos,
Paulo enfrentou inúmeros perigos para arrancar o universo do poder dos demônios
e garantir aos outros plena segurança por meio da morte que sofria todos os
dias. Abraão quis imolar seu filho, Paulo imolou a si mesmo milhares de vezes.
Há quem admire a paciência de Isaac, que
deixou taparem o poço cavado com suas próprias mãos, mas não eram poços que
Paulo deixava cobrir de pedras, e sim seu próprio corpo, além de procurar levar
ao Céu aqueles que o esmagavam. E quanto mais essa fonte
era tapada, mais alto jorrava, mais transbordava, dando origem a vários
rios.
A Escritura fala com
admiração da longanimidade e da paciência de Jacó, no entanto existe uma alma com
têmpera de diamante que imite a paciência de Paulo? Não foi por sete anos, mas
pela vida inteira que ele se escravizou pela esposa de Cristo.
Não foi apenas o calor do dia ou o frio das noites que enfrentou, foram mil
provas, ora sendo fustigado a varadas, ora esmagado e triturado sob uma chuva
de pedras, e sempre se levantando para arrancar as ovelhas da goela do diabo.
José é ilustre por sua
pureza, mas temo cair no ridículo se quiser louvar Paulo
neste assunto, pois ele crucificava-se a si mesmo, considerava a beleza do corpo
humano e de todas as coisas como fumaça e cinza, reagia a elas como um morto
fica ao lado de outro morto,
indiferente.
Todos os homens ficam
espantados com a conduta de Jó, que era, de fato, um
atleta admirável, mas Paulo não travou combates de alguns meses, sua agonia
durou anos. Se não precisou raspar suas chagas com cacos de cerâmica,
saiu fulgurante da goela do leão, e depois de inúmeros combates e provações
tinha o brilho da pedra mais bem polida. Não
foi apenas de três ou quatro amigos, mas de todos os infiéis, de seus irmãos
mesmos, que teve de suportar os opróbrios, sendo difamado e amaldiçoado por
todos. No entanto, exercia largamente a hospitalidade, era
cheio de solicitude para com os pobres, interessava-se pelos doentes e pelas
almas sofredoras. A casa de Jó estava
aberta a todos os que chegavam, a alma de Paulo a todo mundo. Jó
possuía imensos rebanhos de bois e ovelhas, era liberal para com os indigentes,
enquanto Paulo não tinha nada além do seu corpo e entregava-o
em favor dos pobres. Como ele disse: “Estas mãos
proveram as minhas necessidades e as daqueles que estavam comigo” [2]
Comido pelos vermes, Jó
sofria dores atrozes, mas contem os golpes levados por Paulo,
calculem a que angústias reduziram-no a fome, os grilhões e
os perigos que enfrentou tanto por parte de familiares quanto de estranhos, numa palavra,
do universo inteiro. Considerem a solicitude que tinha para todas as Igrejas e que
o devorava, o fogo que nele ardia quando sabia de algum escândalo, e
compreenderão que sua alma era mais dura do que pedra, mais
forte do que o ferro e o diamante. O que Jó sofreu em seus membros, Paulo
sofreu em sua alma. Os pecados cometidos pelos outros causavam-lhe
tristezas mais vivas do que todas as dores, por isso
de seus olhos escorriam, dia e noite, fontes de lágrimas.
Sentia com isso dores mais fortes que as de uma parturiente, por isso dizia:
“Meus filhinhos, sofro por vocês como se os tivesse
parido”[3]
Moisés, para salvação
dos judeus, ofereceu ser suprimido do livro da vida, morrer com os outros, mas
Paulo pelos outros. Ele não queria morrer
com os que deviam morrer, e sim obter a salvação deles para a glória eterna…
Moisés resistiu ao Faraó, Paulo lutou todos os
dias contra o diabo. Um combatia por uma nação, o outro pelo universo, não com
o suor de sua fronte, mas com seu sangue.
Joao Batista no meio do
deserto alimentou-se de gafanhotos
e mel silvestre, Paulo no meio do turbilhão do mundo não tinha sequer
gafanhotos e mel. Contentava-se com
comidas ainda mais simples, pois seu alimento era o fogo da pregação. Se um deu
mostra de grande coragem diante de Herodes, o outro não enfrentou
um, dois ou três tiranos, mas inúmeros, tão poderosos e ainda mais
cruéis.
Resta comparar Paulo com
os anjos, e também nisso seu papel não foi menos magnifico,
pois teve como única preocupação obedecer a Deus. Quando Davi
exclamava, admirado: “Bendigam ao Senhor, vocês que são seus anjos, que são
poderosos para obedecer sua voz e as
suas ordens”, o que o profeta mais admirava nos anjos?
Ele mesmo responde: “Meu Deus, você faz seus anjos
leves como o vento e ministros ativos como chamas ardentes”. [4] Mas,
podemos encontrar essas
qualidades em Paulo. Como
a chama e o vento, ele percorreu toda
a terra e purificou-a, mesmo sem ainda então participar da
beatitude celeste, e este é um prodígio admirável, ter
feito tanto enquanto ainda estava revestido de sua carne mortal.
Quanta condenação
merecemos por não termos imitado a menor de todas as qualidades reunidas em um
só homem! Nem sua natureza nem sua alma são
diferentes da nossa, nem o mundo em que viveu, situado na mesma terra e nas
mesmas regiões, criado sob as mesmas leis e os mesmos usos,
mas superou todos os homens de seu tempo e dos tempos futuros. Acho admirável não apenas sua enorme devoção e o fato de não
sentir as dores que por virtude suportava, mas tê-las aceito sem esperar
nenhuma recompensa. O atrativo de uma
retribuição não nos incita a entrar no combate que ele aceitava mansamente, sem
necessidade de nenhum prêmio para animar sua coragem e seu amor, pois a cada
dia ele tinha mais força, mostrava um ardor sempre novo no meio dos
perigos.
Ameaçado de morte,
convidava todos a compartilharem a alegria de que era tomado:
“Rejubilem-se e congratulem-me”[5]
Corria mais ao encontro das afrontas e injúrias que a pregação lhe atraía do
que nós procuramos reconhecimento e honras, desejava a morte muito mais do que
amamos a vida, queria muito mais a pobreza do que ambicionamos as riquezas,
procurava muito mais o trabalho que o descanso, os costumes austeros que os
prazeres, rezava por seus inimigos com muito mais zelo do que estes
o maldiziam.
A única coisa diante da
qual recuava com horror era uma ofensa a Deus, pois o que mais
desejava era agradar a Ele. Nenhum dos bens presentes, nenhum dos bens futuros,
nada lhe parecia desejável. Nem me falem de
recompensas e povos, exércitos, dinheiro,
províncias, poder, tudo isso a seus olhos não passava de teias de
aranha, mas considerem o que nos é prometido no Céu e
verão todo seu ardente amor por Cristo. A dignidade dos Anjos e dos Arcanjos,
todo o esplendor celeste, nada eram para ele comparados com o maior bem de
todos, desfrutar do amor de Cristo. Com
esse amor ele se tornava o mais feliz de todos os seres. Sem ele não teria
querido habitar no meio dos Tronos e das Dominações,
mas ver-se condenado às maiores penas, sem
ele não teria sentido obter as maiores e sublimes honrarias. Ser privado desse
amor era para ele o único tormento, o único
inferno, a única pena, o infinito e intolerável suplício.
Mas, possuir o amor de Cristo era para ele a vida, o mundo, o reino, as coisas
presentes e futuras, o máximo de todos os bens.
Ele desprezava coisas
que nos assustam como desprezamos a erva ressecada. Tiranos
e povos furiosos não lhe pareciam mais que mosquitos, a morte, os sofrimentos e
todos os suplícios possíveis pareciam-lhe simples brinquedos de
criança, sobretudo se tivesse de suportá-los por amor a Cristo,
quando então os abraçava com alegria e ornava-se com seus grilhões
como se estivesse coroado com diadema. A prisão era para ele o próprio Céu.
Recebia chicotadas e ferimentos vendo nas dores um prêmio não
inferior ao recebido por um atleta vencedor. Chamava as dores de “graça”, pois o que
em nós causa tristeza nele proporcionava uma
grande satisfação. O que o entristecia continuamente eram os peados, daí ter dito:
“Quem erra sem que eu me aflija?”[6]
Alguém pode dizer que às
vezes o sofrimento produz certo prazer,
como no caso de pais cujo filho morreu e que encontram algum
consolo ao dar livre curso às lágrimas, que
diminuem a dor. De fato, Paulo sentia alívio em chorar noite e dia, porque
jamais alguém deplorou seus próprios males tão vivamente
quanto ele deplorava os males alheios. Do mesmo modo, era tão
grande sua aflição ao ver os outros se perderem por causa de pecados que pedia
para perder sua própria glória celeste em
troca da salvação deles. A que se poderia compará-lo? Ao ferro? Ao
diamante? De que era composta sua alma? De diamante ou de ouro? Ela era mais
firme do que o mais duro diamante, mais preciosa do que o ouro
e as pedras de maior valor. A que poderíamos
comparar essa alma? A nada, a menos que ao ouro fosse dada a força do diamante
ou ao diamante o brilho do ouro. Mas,
por que compará-lo ao ouro ou ao diamante? Ponham o mundo inteiro na balança e
verão que a alma de Paulo pesará mais. O mundo e tudo o
que há nele não valem Paulo. Mas se o mundo não o vale, o que valerá? Talvez
o Céu. Mas o próprio Céu não é nada comparado a Paulo, porque se ele preferiu o
amor a Deus ao Céu e a tudo o que este contém, seria
possível o Senhor, cuja bondade supera a de Paulo tanto quanto a
própria bondade supera a malicia, não o preferir a todos os Céus?
Deus, sim, nos ama muito mais do que nós o amamos, e seu amor sobrepuja o nosso
mais do que se pode exprimir.
Deus o transportou para
o Paraíso, até o terceiro Céu, o que era merecido, pois Paulo
andou pela terra como se tivesse conversando com os anjos, pois embora preso a
um corpo mortal imitava a pureza dos anjos; embora sujeito a mil necessidades e
a mil fraquezas, esforçou-se por não se mostrar inferior
às potências celestes. Como se tivesse asas,
ele percorreu toda a terra colocando-se acima dos trabalhos e dos perigos, como
se já tivesse entrado no Céu e habitasse no meio das
potências incorpóreas, agia como se não tivesse corpo e desprezava as coisas da
Terra.
Os povos foram confiados
aos cuidados dos anjos, mas nenhum deles zelou pelo que estava sob sua guarda
como Paulo fez com toda a Terra. Da mesma forma que um
pai aflito é muito indulgente om um filho transtornado, quanto mais este é
violento nos seus impulsos, mais fica comovido com o estado dele e mais lágrimas derrama, assim como Paulo
respondia com piedade àqueles que o maltratavam. Assim fez com aqueles que o
haviam açoitado cinco vezes, sedentos de seu sangue, chorando, lamentando e
orando por eles: “Irmãos,
sinto no meu coração um grande desejo de que Israel seja salvo e peço isso a Deus
com minhas preces”. [7] Vendo
que eles não davam atenção às suas palavras, era tomado por uma grande dor. Como
o ferro colocado no fogo também se torna fogo, Paulo inflamado pelo fogo da
caridade tornou-se todo caridade. Como se fosse o pai
universal de todos, ele superou todos os pais nos cuidados carnais e
espirituais. Como se tivesse sozinho gerado o mundo inteiro,
desejava apresentar cada um dos homens a Deus, tendo pressa de introduzir todos
eles no reino de Deus, entregando-se de corpo e alma pelos que
amava. Esse homem do povo, artesão que preparava peles,
progrediu tanto em virtudes que apenas em trinta
anos submeteu ao jugo da verdade romanos e persas, partos e medas, indianos e
citas, etíopes, sármatas e sarracenos,
enfim, todas as raças humanas, como o fogo que jogado na palha e no feno
consome todas as obras dos demônios.
Ao som da sua voz, tudo
desaparecia como no mais violento incêndio, tudo
cedia, o culto dos ídolos, a ameaça de tiranos, as
armadilhas de falsos irmãos. Como aos primeiros
raios do sol partem as neves, desaparecem os adúlteros e os ladrões,
escondem-se os homicidas nas cavernas, brilha o dia e tudo é
iluminado pelo fulgor de sua presença, assim também, e
com maior rapidez, onde Paulo semeava o Evangelho o erro era expulso, a verdade
renascia, o adultério e outras abominações desapareciam como
fumaça de palha jogada ao fogo. Brilhante como a chama, a verdade subia
resplandecente até os Céus, levada pelos que pareciam sufoca-la,
já que os perigos e as violências não podiam impedir sua ascensão. O
erro tem uma natureza tal, que se
encontra obstáculos desgasta-se e desaparece aos poucos, ao
passo que com a verdade ocorre o contrário, quanto mais atacada mais se
fortalece e cresce.
Ora, Deus nos
enobreceu tanto que por nossos esforços podemos chegar a ser
semelhantes a Paulo, o que não é impossível, pois temos em comum
o corpo, a alma, os alimentos, o mesmo Criador, o seu Deus que
é nosso Deus. Querem conhecer os dons que Deus concedeu a ele? Suas
vestimentas aterrorizavam os demônios. Ainda mais admirável é que ninguém
podia taxar Paulo nem de temerário em de tímido quando
o perigo surgia. Ele amava a vida presente para ensinar a verdade, mas tinha
pouco apreço por ela porque sua sabedoria mostrava como o mundo é
desprezível.
Enfim, Paulo não é menos admirável
quando fugia do perigo do que quando tinha prazer em se expor a ele. Esta
conduta mostra força, aquela, sabedoria. Da mesma forma, ele é admirável quando
parece elogiar e desprezar a si próprio. Neste caso trata-se de humildade,
naquele de magnanimidade., Há mais méritos em ter falado de si do que se
calado, porque assim teria sido mais culpado do que aqueles que se gabam a
respeito de tudo. De fato, se ele não tivesse sido glorificado, teria perdido
credibilidade diante dos que lhe tinham sido confiados, enquanto se humilhando,
elevava-os. Foi melhor Paulo glorificar-se do que ocultar as coisas que o
distingue: quem pela humildade esconde seus méritos ganha menos do que aquele
que os manifesta. É um grave erro gabar-se, é ato de extrema loucura querer
receber louvores quando não há necessidade disso, apenas por prazer do elogio.
Deus não concorda com isso, é insanidade, e mesmo que tais louvores tenham sido
ganhos com o suor do próprio rosto, perde-se a recompensa dele. Elevar-se acima
dos outros por meio das próprias palavras é jactância insolente, mas apresentar
o que é necessário é próprio de um homem que ama o bem, que procura tornar-se
útil.
Essa foi a conduta de Paulo, que visto como um enganador foi obrigado a
dar claras provas de sua dignidade, e ainda assim absteve-se de revelar muitas
outras coisas que poderiam honrá-lo. “Não falarei das visões e revelações do
Senhor” [8]
Nenhum profeta, nenhum apóstolo, teve tantas conversas com Deus quanto Paulo, o
que o tornou ainda mais humilde. Temia os golpes para mostrar sua segunda
natureza, pois era um e vários ao mesmo tempo: pela vontade elevava-se acima
dos homens, era verdadeiramente um anjo, mas também sentia medo, o que não é
indigno. Quem receando os golpes sai vitorioso da luta, é mais admirável do que
quem não é tocado pelo medo, do mesmo modo que não há culpa em se queixar, mas
em dizer ou fazer coisas que desagradam a Deus.
Vemos assim quem foi Paulo: apesar da
fragilidade da natureza elevou-se acima da natureza, teve medo da morte mas não
a recusou. Ter uma natureza sujeita a doenças não é recriminável, mas ser
escravizado pelas doenças é crime. É um mérito admirável ter superado pela
força de vontade a fraqueza da natureza. Por isso se separou de João Marcos, já
que o ministério da pregação não se exerce com falta de firmeza e de resolução,
mas sendo forte e corajoso. Quem se empenha nessa sublime função deve estar
disposto a se oferecer mil vezes à morte e aos perigos. Se não estivesse
animado por esse pensamento, seu exemplo teria perdido um grande número de
fiéis, e seria melhor que ele abdicasse dessa tarefa para cuidar unicamente de
si próprio.
Nem os governantes, nem os domadores de
feras, nem os gladiadores, ninguém é obrigado a ter o coração tão predisposto ao
perigo e à morte como quem se dedica ao ofício da pregação. Estes correm
enormes perigos, devem combater os mais violentos adversários, trabalham em
condições difíceis. O resultado é a recompensa no Céu ou o suplício no Inferno.
Se entre eles surge um debate, não vejam isso como um crime, ele só é mau se
ocorre por motivo irracional ou injusto. Isso decorre da providência do
Criador, que quer tirar do torpor e da inércia as almas adormecidas e
desalentadas. Assim como a espada tem seu fio, também a alma recebeu um duplo
fio que deve ser usado conforme a necessidade. O da cólera às vezes, o da
doçura que é sempre bom mas que precisa ser empregado conforme as
circunstâncias, senão se torna um defeito. Paulo tinha afeição pela doçura,
porém na pregação era melhor usar sem moderação a ira.
É maravilhoso que, embora cheio de
correntes, coberto de golpes e ferimentos, ele tenha tido mais esplendor do que
os revestidos pelo brilho da púrpura e do diadema. Quando foi levado, preso,
através dos mares imensos, sua alegria era tão viva quanto seria se o
estivessem levando para tomar posse de um grande reino. Logo que chegou a Roma,
em vez de se dar por satisfeito foi percorrer a Espanha, não tirando um só dia
de descanso, tomado pelo ardor da pregação e não recuando diante dos perigos e
das zombarias. Ainda mais admirável, é como alguém tão bem armado para o
combate, tão cheio de coragem, pleno de ardor guerreiro, permanecia calmo e
flexível em tudo.
Quando lhe dizem para ir a Tarso, ele
vai, quando lhe dizem que é preciso descer pela muralha num cesto ele concorda,
tudo para evangelizar e levar uma multidão de crentes para Cristo. Ele temia
somente uma coisa: deixar a terra pobre de méritos por não ter salvo um grande
número de pessoas. Os soldados seguem com maior entusiasmo seu chefe quando o
veem coberto de ferimentos, esvaindo-se em sangue e continuando a combater o
inimigo sem levar em conta a própria dor, sem deixar de brandir a lança, de
cobrir o chão de cadáveres que caem sob seus golpes. Algo semelhante aconteceu
com Paulo. Quando o viam carregado de correntes e fazendo sua pregação na
prisão, quando o viam ferido e convertendo os que o agrediam, os fiéis sentiam
grande confiança. Ele próprio deu a entender isso quando disse: “Vários de meus
irmãos de fé, ouvindo meus tormentos, ficaram mais confiantes para pregar sem
medo a palavra de Deus”[9]
Ele
animava-se com isso e entregava-se com maior veemência à conversão de seus
adversários. Assim como o fogo se alastra graças a muitos e variados materiais,
também a linguagem de Paulo atraía todos os que o escutavam. Seus adversários
tornaram-se pasto desse fogo, cuja eficiência espiritual crescia com a chama do
Evanelho”.
Até aqui falou Cristóstomo”
(Texto extraído da obra “Jacopo de
Varazze - Legenda Áurea” – Vida de Santos – Companhia das Letras – págs. 520/528)
[1]
“Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a
força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá
separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Nosso Senhor”. (Rom 8, 38-39)
[2] At
20,34 e I Cor 4, 12.
[3] Gál.
4, 19
[4] Sl
102, 20-22 e 103,4.
[5] Fil
2, 18
[6] II
Cor 11, 29:
[7] Rom
10, 4
[8] II
Cor 12, 1;
[9]
Fil 1, 14
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