quarta-feira, 8 de novembro de 2023

ANÁLISE PSICOLÓGICA DO APÓSTOLO PAULO FEITA POR SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

 




 

 

São João Crisóstomo ficou conhecido como o "maior pregador da Igreja primitiva" (século IV e início do século seguinte) , cognominado de “Boca de Ouro” por causa de sua grande eloquência. Ficou mais famoso por causa de suas homilias. Entre elas estão 57 sobre o Gênesis, 59 sobre os Salmos, 90 sobre o Evangelho de Mateus, 88 sobre o Evangelho de João e 55 sobre os Atos dos Apóstolos. A “Legenda Dourada” contém este magnífico texto em que São João Crisóstomo comenta sobre quem foi o “Apóstolo das Gentes”

 

“Crisóstomo em seu livro “Elogio de Paulo” fez múltiplos comentários favoráveis ao glorioso apóstolo:

“Não se enganou quem chamou a alma de Paulo de magnífico campo de virtudes e de paraíso espiritual. Onde encontrar uma língua digna de louvá-lo, a ele cuja alma possui, sozinha, todos os bens que se podem encontrar em todos os homens e que reúne não apenas todas as virtudes humanas, mas, o que é melhor ainda, também as virtudes angelicais? Tarefa difícil, que não nos deve interromper. O maior elogio que se pode fazer a alguém é reconhecer que falar de suas virtudes e de sua grandeza supera nossas possibilidades. É glorioso para nós sermos vencidos nisso. Podemos, portanto, começar esse elogio dizendo que ele possuiu todas as qualidades.

Elogia-se a Abel por um sacrifício que ofereceu a Deus, mas se observarmos todas as oferendas feitas por Paulo vê-se que ele o superou da mesma forma que o Céu em relação à Terra, pois todo dia ele fazia um sacrifício, o da mortificação do coração e o da mortificação do corpo. Não eram nem ovelhas nem bois que ele ofertava, era ele próprio que se imolava duplamente. Não satisfeito, ele queria oferecer o universo, a terra, o mar, os gregos, os bárbaros, todas as regiões iluminadas pelo sol que ele percorreu com a rapidez do voo para encontrar homens, ou melhor dizendo, demônios, que elevou á dignidade de anjos. Onde encontrar uma hóstia comparável à que Paulo imolou com o gládio do Espírito Santo e que ofertou num altar situado acima do Céu? Abel pereceu sob os golpes de um irmão, Paulo foi morto por aqueles a quem ele desejava arrancar de incontáveis males. Querem saber quantas mortes ele sofreu? Tantas quantos os dias que viveu.

Noé salvou-se na arca com os filhos, Paulo para salvar a todos de um dilúvio muito mais terrível construiu uma arca não com peças de madeira, mas com suas epístolas, que livraram o mundo do perigo. Essa arca não navega sobre ondas que chegam à costa, ela vai por todo o mundo. Suas tábuas não untadas de pez nem de betume, mas impregnadas do Espírito Santo. Ao escrevê-las, ele fez dos insensatos e seres irracionais, imitadores dos anjos. Sua arca supera aquela que recebeu e soltou o corvo, que abrigou o lobo sem fazer ele perde sua ferocidade, pois a de Paulo transforma os abutres e gaviões em pombas, introduzindo mansidão em espíritos ferozes.

Admira-se Abraão, que por ordem de Deus abandonou sua pátria e seus parentes, mas não se pode igualá-lo a Paulo, que não deixou apenas seu país e seus parentes, como o próprio mundo e mesmo o Céu e até o Céu dos Céus. Ele desprezou tudo para servir a Cristo, reservando para si apenas uma coisa, a caridade de Cristo. Como ele mesmo disse: “Nem as coisas presentes, nem as vindouras, nem tudo o que há de mais elevado ou mais profundo, nada e ninguém jamais me poderá separar do amor a Deus que é fundado em Jesus Cristo Nosso Senhor” [1] Abraão expõe-se ao perigo para livrar os filhos de seu irmão dos inimigos, Paulo enfrentou inúmeros perigos para arrancar o universo do poder dos demônios e garantir aos outros plena segurança por meio da morte que sofria todos os dias. Abraão quis imolar seu filho, Paulo imolou a si mesmo milhares de vezes.

Há quem admire a paciência de Isaac, que deixou taparem o poço cavado com suas próprias mãos, mas não eram poços que Paulo deixava cobrir de pedras, e sim seu próprio corpo, além de procurar levar ao Céu aqueles que o esmagavam. E quanto mais essa fonte era tapada, mais alto jorrava, mais transbordava, dando origem a vários rios.

A Escritura fala com admiração da longanimidade e da paciência de Jacó, no  entanto existe uma alma com têmpera de diamante que imite a paciência de Paulo? Não foi por sete anos, mas pela vida inteira que ele se escravizou pela esposa de Cristo. Não foi apenas o calor do dia ou o frio das noites que enfrentou, foram mil provas, ora sendo fustigado a varadas, ora esmagado e triturado sob uma chuva de pedras, e sempre se levantando para arrancar as ovelhas da goela do diabo.

José é ilustre por sua pureza, mas temo cair no ridículo se quiser louvar Paulo neste assunto, pois ele crucificava-se a si mesmo, considerava a beleza do corpo humano e de todas as coisas como fumaça e cinza, reagia a elas como um morto fica ao lado de outro morto, indiferente.

Todos os homens ficam espantados com a conduta de Jó, que era, de fato, um atleta admirável, mas Paulo não travou combates de alguns meses, sua agonia durou anos. Se não precisou raspar suas chagas com cacos de cerâmica, saiu fulgurante da goela do leão, e depois de inúmeros combates e provações tinha o brilho da pedra mais bem polida. Não foi apenas de três ou quatro amigos, mas de todos os infiéis, de seus irmãos mesmos, que teve de suportar os opróbrios, sendo difamado e amaldiçoado por todos. No entanto, exercia largamente a hospitalidade, era cheio de solicitude para com os pobres, interessava-se pelos doentes e pelas almas sofredoras. A casa de Jó estava aberta a todos os que chegavam, a alma de Paulo a todo mundo. Jó possuía imensos rebanhos de bois e ovelhas, era liberal para com os indigentes, enquanto Paulo não tinha nada além do seu corpo e entregava-o em favor dos pobres. Como ele disse: “Estas mãos proveram as minhas necessidades e as daqueles que estavam comigo[2]

Comido pelos vermes, Jó sofria dores atrozes, mas contem os golpes levados por Paulo, calculem a que angústias reduziram-no a fome, os grilhões e os perigos que enfrentou tanto por parte de familiares quanto de estranhos, numa palavra, do universo inteiro. Considerem a solicitude que tinha para todas as Igrejas e que o devorava, o fogo que nele ardia quando sabia de algum escândalo, e compreenderão que sua alma era mais dura do que pedra, mais forte do que o ferro e o diamante. O que Jó sofreu em seus membros, Paulo sofreu em sua alma. Os pecados cometidos pelos outros causavam-lhe tristezas mais vivas do que todas as dores, por isso de seus olhos escorriam, dia e noite, fontes de lágrimas. Sentia com isso dores mais fortes que as de uma parturiente, por isso dizia: “Meus filhinhos, sofro por vocês como se os tivesse parido”[3]

Moisés, para salvação dos judeus, ofereceu ser suprimido do livro da vida, morrer com os outros, mas Paulo pelos outros. Ele não queria morrer com os que deviam morrer, e sim obter a salvação deles para a glória eterna… Moisés resistiu ao Faraó, Paulo lutou todos os dias contra o diabo. Um combatia por uma nação, o outro pelo universo, não com o suor de sua fronte, mas com seu sangue.

Joao Batista no meio do deserto alimentou-se de gafanhotos e mel silvestre, Paulo no meio do turbilhão do mundo não tinha sequer gafanhotos e mel. Contentava-se com comidas ainda mais simples, pois seu alimento era o fogo da pregação. Se um deu mostra de grande coragem diante de Herodes, o outro não enfrentou um, dois ou três tiranos, mas inúmeros, tão poderosos e ainda mais cruéis.

Resta comparar Paulo com os anjos, e também nisso seu papel não foi menos magnifico, pois teve como única preocupação obedecer a Deus. Quando Davi exclamava, admirado: “Bendigam ao Senhor, vocês que são seus anjos, que são poderosos para obedecer  sua voz e as suas ordens”, o que o profeta mais admirava nos anjos? Ele mesmo responde: “Meu Deus, você faz seus anjos leves como o vento e ministros ativos como chamas ardentes”. [4] Mas, podemos encontrar essas qualidades em Paulo. Como  a chama e o vento, ele percorreu toda a terra e purificou-a, mesmo sem ainda então participar da beatitude celeste, e este é um prodígio admirável, ter feito tanto enquanto ainda estava revestido de sua carne mortal.

Quanta condenação merecemos por não termos imitado a menor de todas as qualidades reunidas em um só homem! Nem sua natureza nem sua alma são diferentes da nossa, nem o mundo em que viveu, situado na mesma terra e nas mesmas regiões, criado sob as mesmas leis e os mesmos usos, mas superou todos os homens de seu tempo e dos tempos futuros. Acho admirável não  apenas sua enorme devoção e o fato de não sentir as dores que por virtude suportava, mas tê-las aceito sem esperar nenhuma recompensa. O atrativo de uma retribuição não nos incita a entrar no combate que ele aceitava mansamente, sem necessidade de nenhum prêmio para animar sua coragem e seu amor, pois a cada dia ele tinha mais força, mostrava um ardor sempre novo no meio dos perigos.

Ameaçado de morte, convidava todos a compartilharem a alegria de que era tomado: “Rejubilem-se e congratulem-me”[5] Corria mais ao encontro das afrontas e injúrias que a pregação lhe atraía do que nós procuramos reconhecimento e honras, desejava a morte muito mais do que amamos a vida, queria muito mais a pobreza do que ambicionamos as riquezas, procurava muito mais o trabalho que o descanso, os costumes austeros que os prazeres, rezava por seus inimigos com muito mais zelo do que estes o maldiziam.

A única coisa diante da qual recuava com horror era uma ofensa a Deus, pois o que mais desejava era agradar a Ele. Nenhum dos bens presentes, nenhum dos bens futuros, nada lhe parecia desejável. Nem me falem de recompensas e povos, exércitos, dinheiro, províncias, poder, tudo isso a seus olhos não passava de teias de aranha, mas considerem o que nos é prometido no Céu e verão todo seu ardente amor por Cristo. A dignidade dos Anjos e dos Arcanjos, todo o esplendor celeste, nada eram para ele comparados com o maior bem de todos, desfrutar do amor de Cristo. Com esse amor ele se tornava o mais feliz de todos os seres. Sem ele não teria querido habitar no meio dos Tronos e das Dominações, mas ver-se condenado às maiores penas, sem ele não teria sentido obter as maiores e sublimes honrarias. Ser privado desse amor era para ele o único tormento, o único inferno, a única pena, o infinito e intolerável suplício. Mas, possuir o amor de Cristo era para ele a vida, o mundo, o reino, as coisas presentes e futuras, o máximo de todos os bens.

Ele desprezava coisas que nos assustam como desprezamos a erva ressecada. Tiranos e povos furiosos não lhe pareciam mais que mosquitos, a morte, os sofrimentos e todos os suplícios possíveis pareciam-lhe simples brinquedos de criança, sobretudo se tivesse de suportá-los por amor a Cristo, quando então os abraçava com alegria e ornava-se com seus grilhões como se estivesse coroado com diadema. A prisão era para ele o próprio Céu. Recebia chicotadas e ferimentos vendo nas dores um prêmio não inferior ao recebido por um atleta vencedor. Chamava as dores de “graça”, pois o que em nós causa tristeza nele proporcionava uma grande satisfação. O que o entristecia  continuamente eram os peados, daí ter dito: “Quem erra sem que eu me aflija?”[6]

Alguém pode dizer que às vezes o sofrimento produz certo prazer, como no caso de pais cujo filho morreu e que encontram algum consolo ao dar livre curso às lágrimas, que diminuem a dor. De fato, Paulo sentia alívio em chorar noite e dia, porque jamais alguém deplorou seus próprios males tão vivamente quanto ele deplorava os males alheios. Do mesmo modo, era tão grande sua aflição ao ver os outros se perderem por causa de pecados que pedia para perder sua própria glória celeste em troca da salvação deles. A que se poderia compará-lo? Ao ferro? Ao diamante? De que era composta sua alma? De diamante ou de ouro? Ela era mais firme do que o mais duro diamante, mais preciosa do que o ouro e as pedras de maior valor. A que poderíamos comparar essa alma? A nada, a menos que ao ouro fosse dada a força do diamante ou ao diamante o brilho do ouro. Mas, por que compará-lo ao ouro ou ao diamante? Ponham o mundo inteiro na balança e verão que a alma de Paulo pesará mais. O mundo e tudo o que há nele não valem Paulo. Mas se o mundo não o vale, o que valerá? Talvez o Céu. Mas o próprio Céu não é nada comparado a Paulo, porque se ele preferiu o amor a Deus ao Céu e a tudo o que este contém, seria possível o Senhor, cuja bondade supera a de Paulo tanto quanto a própria bondade supera a malicia, não o preferir a todos os Céus? Deus, sim, nos ama muito mais do que nós o amamos, e seu amor sobrepuja o nosso mais do que se pode exprimir.

Deus o transportou para o Paraíso, até o terceiro Céu, o que era merecido, pois Paulo andou pela terra como se tivesse conversando com os anjos, pois embora preso a um corpo mortal imitava a pureza dos anjos; embora sujeito a mil necessidades e a mil fraquezas, esforçou-se por não se mostrar inferior às potências celestes. Como se tivesse asas, ele percorreu toda a terra colocando-se acima dos trabalhos e dos perigos, como se já tivesse entrado no Céu e habitasse no meio das potências incorpóreas, agia como se não tivesse corpo e desprezava as coisas da Terra.

Os povos foram confiados aos cuidados dos anjos, mas nenhum deles zelou pelo que estava sob sua guarda como Paulo fez com toda a Terra. Da mesma forma que um pai aflito é muito indulgente om um filho transtornado, quanto mais este é violento nos seus impulsos, mais fica comovido com o estado  dele e mais lágrimas derrama, assim como Paulo respondia com piedade àqueles que o maltratavam. Assim fez com aqueles que o haviam açoitado cinco vezes, sedentos de seu sangue, chorando, lamentando e orando por eles: “Irmãos, sinto no meu coração um grande desejo de que Israel seja salvo e peço isso a Deus com minhas preces”. [7] Vendo que eles não davam atenção às suas palavras, era tomado por uma grande dor. Como o ferro colocado no fogo também se torna fogo, Paulo inflamado pelo fogo da caridade tornou-se todo caridade. Como se fosse o pai universal de todos, ele superou todos os pais nos cuidados carnais e espirituais. Como se tivesse sozinho gerado o mundo inteiro, desejava apresentar cada um dos homens a Deus, tendo pressa de introduzir todos eles no reino de Deus, entregando-se de corpo e alma pelos que amava. Esse homem do povo, artesão que preparava peles, progrediu tanto em virtudes que apenas em trinta anos submeteu ao jugo da verdade romanos e persas, partos e medas, indianos e citas, etíopes, sármatas e sarracenos, enfim, todas as raças humanas, como o fogo que jogado na palha e no feno consome todas as obras dos demônios.

Ao som da sua voz, tudo desaparecia como no mais violento incêndio, tudo cedia, o culto dos ídolos, a ameaça de tiranos, as armadilhas de falsos irmãos. Como aos primeiros raios do sol partem as neves, desaparecem os adúlteros e os ladrões, escondem-se os homicidas nas cavernas, brilha o dia e tudo é iluminado pelo fulgor de sua presença, assim também, e com maior rapidez, onde Paulo semeava o Evangelho o erro era expulso, a verdade renascia, o adultério e outras abominações desapareciam como fumaça de palha jogada ao fogo. Brilhante como a chama, a verdade subia resplandecente até os Céus, levada pelos que pareciam sufoca-la, já que os perigos e as violências não podiam impedir sua ascensão. O erro tem uma natureza tal, que se  encontra obstáculos desgasta-se e  desaparece aos poucos, ao passo que com a verdade ocorre o contrário, quanto mais atacada mais se fortalece e cresce.

Ora, Deus nos enobreceu tanto que por nossos esforços podemos chegar a ser semelhantes a Paulo, o que não é impossível, pois temos em comum o corpo, a alma, os alimentos, o mesmo Criador, o seu Deus que é nosso Deus. Querem conhecer os dons que Deus concedeu a ele? Suas vestimentas aterrorizavam os demônios. Ainda mais admirável é que ninguém podia taxar Paulo nem de temerário em de tímido quando o perigo surgia. Ele amava a vida presente para ensinar a verdade, mas tinha pouco apreço por ela porque sua sabedoria mostrava como o mundo é desprezível.

Enfim, Paulo não é menos admirável quando fugia do perigo do que quando tinha prazer em se expor a ele. Esta conduta mostra força, aquela, sabedoria. Da mesma forma, ele é admirável quando parece elogiar e desprezar a si próprio. Neste caso trata-se de humildade, naquele de magnanimidade., Há mais méritos em ter falado de si do que se calado, porque assim teria sido mais culpado do que aqueles que se gabam a respeito de tudo. De fato, se ele não tivesse sido glorificado, teria perdido credibilidade diante dos que lhe tinham sido confiados, enquanto se humilhando, elevava-os. Foi melhor Paulo glorificar-se do que ocultar as coisas que o distingue: quem pela humildade esconde seus méritos ganha menos do que aquele que os manifesta. É um grave erro gabar-se, é ato de extrema loucura querer receber louvores quando não há necessidade disso, apenas por prazer do elogio. Deus não concorda com isso, é insanidade, e mesmo que tais louvores tenham sido ganhos com o suor do próprio rosto, perde-se a recompensa dele. Elevar-se acima dos outros por meio das próprias palavras é jactância insolente, mas apresentar o que é necessário é próprio de um homem que ama o bem, que procura tornar-se útil.

Essa foi a conduta de Paulo,  que visto como um enganador foi obrigado a dar claras provas de sua dignidade, e ainda assim absteve-se de revelar muitas outras coisas que poderiam honrá-lo. “Não falarei das visões e revelações do Senhor” [8] Nenhum profeta, nenhum apóstolo, teve tantas conversas com Deus quanto Paulo, o que o tornou ainda mais humilde. Temia os golpes para mostrar sua segunda natureza, pois era um e vários ao mesmo tempo: pela vontade elevava-se acima dos homens, era verdadeiramente um anjo, mas também sentia medo, o que não é indigno. Quem receando os golpes sai vitorioso da luta, é mais admirável do que quem não é tocado pelo medo, do mesmo modo que não há culpa em se queixar, mas em dizer ou fazer coisas que desagradam a Deus.

Vemos assim quem foi Paulo: apesar da fragilidade da natureza elevou-se acima da natureza, teve medo da morte mas não a recusou. Ter uma natureza sujeita a doenças não é recriminável, mas ser escravizado pelas doenças é crime. É um mérito admirável ter superado pela força de vontade a fraqueza da natureza. Por isso se separou de João Marcos, já que o ministério da pregação não se exerce com falta de firmeza e de resolução, mas sendo forte e corajoso. Quem se empenha nessa sublime função deve estar disposto a se oferecer mil vezes à morte e aos perigos. Se não estivesse animado por esse pensamento, seu exemplo teria perdido um grande número de fiéis, e seria melhor que ele abdicasse dessa tarefa para cuidar unicamente de si próprio.

Nem os governantes, nem os domadores de feras, nem os gladiadores, ninguém é obrigado a ter o coração tão predisposto ao perigo e à morte como quem se dedica ao ofício da pregação. Estes correm enormes perigos, devem combater os mais violentos adversários, trabalham em condições difíceis. O resultado é a recompensa no Céu ou o suplício no Inferno. Se entre eles surge um debate, não vejam isso como um crime, ele só é mau se ocorre por motivo irracional ou injusto. Isso decorre da providência do Criador, que quer tirar do torpor e da inércia as almas adormecidas e desalentadas. Assim como a espada tem seu fio, também a alma recebeu um duplo fio que deve ser usado conforme a necessidade. O da cólera às vezes, o da doçura que é sempre bom mas que precisa ser empregado conforme as circunstâncias, senão se torna um defeito. Paulo tinha afeição pela doçura, porém na pregação era melhor usar sem moderação a ira.

É maravilhoso que, embora cheio de correntes, coberto de golpes e ferimentos, ele tenha tido mais esplendor do que os revestidos pelo brilho da púrpura e do diadema. Quando foi levado, preso, através dos mares imensos, sua alegria era tão viva quanto seria se o estivessem levando para tomar posse de um grande reino. Logo que chegou a Roma, em vez de se dar por satisfeito foi percorrer a Espanha, não tirando um só dia de descanso, tomado pelo ardor da pregação e não recuando diante dos perigos e das zombarias. Ainda mais admirável, é como alguém tão bem armado para o combate, tão cheio de coragem, pleno de ardor guerreiro, permanecia calmo e flexível em tudo.

Quando lhe dizem para ir a Tarso, ele vai, quando lhe dizem que é preciso descer pela muralha num cesto ele concorda, tudo para evangelizar e levar uma multidão de crentes para Cristo. Ele temia somente uma coisa: deixar a terra pobre de méritos por não ter salvo um grande número de pessoas. Os soldados seguem com maior entusiasmo seu chefe quando o veem coberto de ferimentos, esvaindo-se em sangue e continuando a combater o inimigo sem levar em conta a própria dor, sem deixar de brandir a lança, de cobrir o chão de cadáveres que caem sob seus golpes. Algo semelhante aconteceu com Paulo. Quando o viam carregado de correntes e fazendo sua pregação na prisão, quando o viam ferido e convertendo os que o agrediam, os fiéis sentiam grande confiança. Ele próprio deu a entender isso quando disse: “Vários de meus irmãos de fé, ouvindo meus tormentos, ficaram mais confiantes para pregar sem medo a palavra de Deus”[9]

Ele animava-se com isso e entregava-se com maior veemência à conversão de seus adversários. Assim como o fogo se alastra graças a muitos e variados materiais, também a linguagem de Paulo atraía todos os que o escutavam. Seus adversários tornaram-se pasto desse fogo, cuja eficiência espiritual crescia com a chama do Evanelho”.

 

Até aqui falou Cristóstomo”

 

(Texto extraído da obra “Jacopo de Varazze - Legenda Áurea” – Vida de Santos – Companhia das Letras – págs. 520/528)



[1] “Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Nosso Senhor”. (Rom 8, 38-39)

[2] At 20,34 e I Cor 4, 12.

[3] Gál. 4, 19

[4] Sl 102, 20-22 e 103,4.

[5] Fil 2, 18

[6] II Cor 11, 29:

[7] Rom 10, 4

[8] II Cor 12, 1;

[9] Fil 1, 14


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