Quando os portugueses chegaram ao Brasil
em 1.500 encontraram aqui uma população nativa das mais bárbaras e violentas,
cheia de vícios e maus costumes. Viviam guerreando-se entre si, e tal era a
mortandade entre eles que alguns comentaristas chegaram a afirmar que teriam se
dizimado uns aos outros, caso não tivessem sido civilizados pelos católicos. O
pior costume entre eles era a antropofagia: faziam guerras quase que com a única
finalidade, de, ao final, comerem os cadáveres dos inimigos mortos em batalhas.
E o que os animava a fazer isso, segundo depoimento dos cronistas da época, era
simplesmente ódio e desejo de vingança. E no momento em que iam assar e comer os
cadáveres faziam uma grande festa, conforme ficou atestado por vários cronistas
da época, especialmente os jesuítas e até mesmos alguns calvinistas franceses. Vejam
a seguir o relato de como faziam tais festins entre eles.
“De
todas as descrições antigas destas festas, a mais precisa é, sem dúvida, do
autor anônimo de “Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil”. É um pouco
longa, mas de segura objetividade; e só por isso transcrevemo-la aqui:
“De
todas as honras e glórias da vida, nenhum é tamanho para este gentio como matar
e tomar nomes nas cabeças de seus contrários, nem entre eles há festas que
cheguem às que fazem na morte dos que matam com grandes cerimônias, as quais
fazem desta maneira:
Os
que tomados na guerra vivos são destinados a matar, vêm logo de lá com um
sinal, que é uma cordinha delgada ao pescoço, e se é homem que pode fugir traz
uma mão atada ao pescoço debaixo da barba, e antes de entrar nas povoações, que
há, pelo caminho os enfeitam, depenando-lhe as pestanas e sobrancelhas e
barbas, tosquiando-os ao seu modo, e empenando-os com penas amarelas tão bem
assentadas que não lhes aparece cabelo; as quais os fazem tão lustrosos como
aos Espanhóis os seus vestidos ricos, e assim vão mostrando sua vitória por
onde quer que passam.
Chegando
à sua terra, o saem a receber as mulheres gritando e juntamente dando palmadas
na boca, que é recebimento comum entre eles, e sem mais outra vexação ou prisão
, salvo que lhes tecem ao pescoço “um colar redondo” como corda de boa
grossura, tão dura como pau, e neste colar começam de urdir grande número de
braços de corda, delgada de comprimento de cabelos de mulher, arrematada em
cima com certa volta e solta em baixo, e assim vai toda de orelha a orelha por
detrás das costas, e ficam com esta coleira uma horrenda cousa; e se é
fronteiro e pode fugir, lhe põem em lugar de grilhões por baixo dos giolhos[1]
uma peia de fios tecido muito apertado, a qual para qualquer faca fica fraca,
se não fossem as guardas que nenhum momento se apartam dele, quer vá pelas
casas, quer pelo mato, ou ande pelo terreiro, que para tudo tem liberdade, e
comumente a guarda é uma que lhe dão por mulher, e também para lhe fazer de
comer, o qual se seus senhores lhe não dão de comer, como é costume, toma um
arco e flecha e atira à primeira galinha ou pato que vê, de quem quer que seja,
e ninguém lhe vai à mão, e assim vai engordando, sem por isso perder o sono,
nem o rir e folgar como os outros, e alguns andam tão contentes com haverem de
ser comidos, que por nenhuma via consentiriam ser resgatados para servir,
porque dizem “que é triste cousa morrer e ser fedorento e comido pelos bichos”.
Estas
mulheres são comumente nesta guarda fiéis, porque lhes fica em honra, e por
isso são muitas vezes moças e filhas de principais, máxime se seus irmãos hão
de ser os matadores, porque as que não têm estas obrigações muitas vezes se
afeiçoam a eles de maneira que não somente lhes dão azo para fugirem , mas
também se vão com eles; nem elas correm menos risco se as tornam a tomar que de
levarem umas poucas de pancadas, e às vezes são comidas dos mesmos a quem deram
a vida.
Determinado
o tempo em que há de morrer, começam as mulheres a fazer louça, a saber:
panelas, alguidares, potes para os vinhos, tão grandes que cada um levará uma
pipa; isto prestes, assim os principais como os outros mandam seus mensageiros
a convidar outros de diversas partes para tal “lua”, até dez, doze léguas e
mais, para o qual ninguém se escusa.
Os
hóspedes vêm de magotes com mulheres e filhos, e todos entram no lugar com
“danças e bailes”, e em todo o tempo em que se junta gente, há vinho para os
hóspedes, porque sem ele todo o mais gasalhado não presta; a gente junta,
começam as festas alguns dias antes, conforme ao número e certas cerimônias que
precedem, e cada uma gasta um dia.
Primeiramente,
têm eles para isto umas cordas de algodão de arrazoada grossura, não torcidas,
senão torcidas de um certo lavor galante; é uma cousa entre eles de muito
preço, e não nas têm senão alguns principais, e segundo elas são primas, bem
feitas e eles vagarosos, é de crer que nem em um ano se fazem; estas estão
sempre muito guardadas, e levam-se ao terreiro com grande festa e alvoroço
dentro de uns alguidares, onde lhes dá um mestre disto dois nós, por dentro dos
quais com força corre uma das pontas de maneira que lhes fica bem no meio um
laço; estes nós são galantes e artificiosos, que poucos se acham que os saibam
fazer, porque têm algumas dez voltas e
as cinco vão por cima das outras cinco, como se um atravessasse os dedos da mão
direita por cima dos da esquerda, e
depois a tingem com um polme de um barro branco como cal e deixam-nas enxugar.
O
segundo dia trazem muitos feixes de canas bravas do comprimento de lanças e
mais, e à noite põem-nos em roda em pé, com as pontas para cima, encostados uns
nos outros, e pondo-lhes fogo ao pé se faz uma formosa e alta fogueira ao redor
da qual andam bailando homens e mulheres com maços de frechas ao ombro, mas
andam muito depressa, porque o morto que há de ser, que os vê melhor do que é
visto por causa do fogo, atira com quanto acha e quem leva, leva, e como são
muitos, poucas vezes erra.
Ao
terceiro dia fazem uma dança de homens e mulheres, todos com gaitas de canas e
batem todos à uma no chão ora com um pé, ora com outro, sem discreparem,
juntamente e ao mesmo compasso assopram os canudos, e não há outro cantar nem
falar, e como são muitos e as canas umas mais grossas, outras menos, além de
atroarem os matos, fazem uma harmonia que parece música do inferno, mas eles
aturam nelas como se fossem as mais suaves do mundo; e estas são suas festas,
afora outras que entremetem com muitas graças e “adivinhações”.
Ao
quarto dia, em rompendo a alva[2],
levam o contrário a lavar a um rio, e vão-se detendo para que, quando tornarem,
seja já dia claro, e entrando pela aldeia, o preso vai já com olho sobre o
ombro, porque não sabe de que casa ou porta lhe há de sair um valente que o há
de aferrar por detrás, porque, como toda
sua bem-aventurança consiste em morrer como valente, e a cerimônia que se segue
é já da mais propínquas à morte, assim como o que há de aferrar mostra suas
forças em só ele o subjugar sem ajuda de outrem, assim ele quer mostrar ânimo e
forças em lhe resistir; e às vezes o faz de maneira que, afastando-se o
primeiro homem cansado em luta, lhe sucede outro que se tem por mais valente
homem, os quais às vezes ficam bem enxovalhados, e mais o ficariam, se já a
este tempo o cativo não tivesse a peia ou grilhões. Acabada esta luta ele em
pé, bufando de birra e cansaço com o outro que o tem aferrado, sai um coro de
ninfas que trazem um grande alguidar novo pintado, e nele as cordas enroladas e
bem alvas, e posto este presente aos pés
do cativo, começa uma velha como versada nisso e e mestra do coro a entoar uma
cantiga que as outras ajudam, cuja letra é conforme a cerimônia, e enquanto
elas cantam os homens tomam as cordas, e metido o laço no pescoço lhe dão um nó
simples junto dos outros grandes, para que se não possa mais alargar, e feita
de cada ponta uma roda de dobras as metem no braço à mulher que sempre anda
atrás dele com este peso, e se o peso é muito pelas cordas serem grossas e
compridas, dão-lhe outra que traga uma das rodas, e se ele dantes era temeroso
com a coleira, mais o fica com aqueles
dois nós tão grandes no pescoço na banda detrás, e por isso diz um dos pés de
cantiga: “Nós somos aqueles que fazemos estirar o pescoço ao pássaro”, posto
que depois de outras cerimônias lhe dizem noutro pé: “Se tu foras papagaio,
voando nos fugira”.
A
este tempo estão os potes de vinho postos em carreira pelo meio de uma casa
grande, e como a casa não tem compartimentos, ainda que seja de 20 ou 30 braças
de comprido, está atulhada de gente, e tanto que começam a beber é um lavarinto
ou inferno vê-los e ouvi-los, porque os que bailam e cantam aturam com
grandíssimo fervor quantos dias e noites os vinhos duram: porque, como esta é a
própria festa das matanças, há no beber dos vinhos muitas particularidades que
duram muito, e a cada passo ourinam, e assim aturam sempre, e de noite e dia
cantam e bailam, bebem e falam cantando em magotes por toda a casa, de guerras
e sortes que fizeram, e como cada um quer que lhes ouçam a sua história, todos
falam a quem mais alto, afora outros estrondos, sem nunca se calarem, nem por
espaço de um quarto de hora. Aquela manhã que começam a beber, enfeitam o
cativo por um modo particular que para isto têm, a saber: depois de limpo o
rosto e quanta penugem nele há, o untam com um leite de certa árvore que pega
muito, e sobre ele põem um certo pó de umas cascas de ovo verde de certa ave do
mato, e sobre isto o pintam de preto com pinturas galantes, e untando também o
corpo todo até a ponta do pé o enchem todo de
pena, que para isto têm já picada a tinta de vermelho, a qual o faz
parecer a metade mais grosso, e a cousa do rosto o faz parecer tanto maior e
luzento, e os olhos mais pequenos, que fica uma horrenda visão, e da mesma
maneira que elas têm pintado o rosto, o está também a espada, a qual é um pau
ao modo de uma palmatória, senão que a cabeça não é tão redonda, mas quase
triangular, e as bordas acabam quase em gume e a haste será de 7 ou 8 palmos,
não é toda roliça, terá junto da cabeça 4 dedos de largura e vem cada vez
estreitando até o cabo, onde tem uns pendentes ou campainhas de penas de
diversas cores, é cousa galante e de preço entre eles; eles lhe chamam “Ingapenambim”,
“orelha de espada”. O derradeiro dia dos vinhos fazem no meio do terreiro uma
choça de palmas ou tantas quantas são os que hão de morrer, e naquela se
agasalham, e sem nunca mais entrar em casa, e todo dia e noite é bem servido de
festas mais que de comer, porque lhe não dão outro conduto senão uma fruta que
tem sabor de nozes, para que ao outro dia não tenha muito sangue.
Ao
quinto dia pela manhã, ali às sete horas pouco mais ou menos, a companheira o
deixa, e se vai para casa muito saudosa e dizendo por despedida algumas
lástimas pelo menos fingidas; então lhe tiram a peia e lhe passam as cordas do
pescoço à cinta, e posto em pé à porta do que o há de matar, sai o matador em
uma dança, feito alvo como uma pomba com barro branco e uma, a que chamam “Capa
de pena”, que se ata pelos peitos, e ficam-lhe as abas para cima como asas de
Anjo, e nesta dança dá uma volta pelo terreiro e vem fazendo uns esgares
estranhos com olhos e corpo, e com as mãos arremeda o minhoto que desce à
carne, e com estas diabruras chega ao triste, o qual tem as cordas estiradas
para as ilhargas e de cada parte um que o tem, e o cativo, se acha com que
atirar, o faz de boa vontade, e muitas vezes lhe dão com que, porque lhe saem
muitos valentes, e tão ligeiros em furtar o corpo que os não pode acertar.
Acabado
isto vem um honrado padrinho do novo cavaleiro que há de ser, e tomada a espada
lhe passa muitas vezes por entre as pernas, metendo-a or por uma parte, ora por
outra da própria maneira que os cachorrinhos dos sanfonineiros[3],
lhe passam por entre as pernas, e depois tomando-a pelo meio com ambas as mãos
aponta com uma estocada aos olhos do morto e isto feito lhe vira a cabeça para
cima da maneira que dela hão de usar, e a mete nas mãos do matador, já como
apta e idônea com aquelas bênçãos para fazer o seu ofício para o qual se põe
algum tanto ao lado esquerdo, de tal jeito que com o gume da espada lhe acerta
o toutiço, porque não tira a outra parte, e é tanta a bruteza destes que, por
não temerem outro mal senão aquele presente tão inteiros estão como se não
fosse nada, assim para falar, como para exercitar as forças, porque depois de
se despedirem da vida com dizer que “muito embora morra, pois muitos têm mortos
e que alem disso cá ficam seus irmãos e parentes para o vingarem”, e nisto
aparelha-se um para descarregar e o outro para furtar o corpo, que é toda a
honra de sua morte. E são nisto tão ligeiros que muitas vezes é alto dia sem o
poderem matar, porque em vindo a espada pelo ar, ora desvia a cabeça, ora lhe
furta o corpo, e são nisto tão terríveis que se os que têm as pontas das cordas
o apertam, como fazem quando o matador é frouxo, eles tão rijo que os trazem a
si e os fazem afrouxar em que lhes pese, tendo um olho neles e outro na espada,
sem nunca estarem quedos, e como o matador os não pode enganar ameaçando sem
dar, sob pena de lhe darem uma apupada, e ele lhe adivinham o golpe, da maneira
que, por mais baixo que venha, num assopro se abatem e fazem tão rasos que é
cousa estranha, e não é menos tomarem a espada aparando-lhe o braço por tal
arte que sem lhe fazerem nada correm com ela juntamente para baixo e a metem de
baixo do sovaco, tirando pelo matador, ao qual, se então não acudissem, o outro
o despacharia, porque têm eles nestes atos tantos agouros que para matar um
menino de cinco anos vão tão enfeitados como para matar algum gigante, e com
essas ajudas ou afoutezas tantas vezes dá, até que acerta alguma e esta basta,
porque tanto que ele cai e lhe dá tantas até que lhe quebra a cabeça, posto que
já se viu um que a tinha tão dura, que nunca lhe puderam quebrar, porque como a
trazem sempre descoberta, têm as cabeças tão duras que as nossas em comparação
deles ficam como de cabaças e quando querem injuriar algum branco lhe chamam de
“cabeça mole”.
Se
este que mataram ao cair cai de costas, e não de bruços, têm-no por grande
agouro e prognóstico que o matador há de morrer, e ainda que caia de bruços têm
muitas cerimônias , as quais s se não guardam têm para si que o matador não
pode viver; e são muitas delas tão penosas que se algum por amor de Deus
sofresse os seus trabalhos não ganharia pouco, como abaixo se dirá. Morto o
triste, levam-no a uma fogueira que para isto está prestes, e chegando a ela,
em lhe tocando com a mão dá uma pelinha pouco mais grossa que véu de cebola,
até que todo fica mais limpo e alvo que um leitão pelado, e então se entrega ao
carniceiro ou magarefe, o qual lhe faz um buraco abaixo do estômago, segundo
seu estilo, por onde os meninos primeiro metem a mão e tiram pelas tripas, até
que o magarefe corta por onde quer e o que lhe fica na mão é o quinhão de cada
um, e o mais se reparte pela comunidade, salvo algumas partes principais que
por grande honra, se dão aos hóspedes mais honrados, as quais eles levam muito
assadas, de maneira que não se corrompam, e sobre elas em suas terras fazem
festas e vinhos de novo”.
(Extraído do livro “Vida e Morte do Padre
José de Anchieta”, de Quirício Caxa, Coleção Cidade do Rio de Janeiro, vol.5,
págs. 120/128
[1]
Giolhos, era o que chamavam de joelhos na linguagem quinhentista.
[2]
Isto é, amanhecendo o dia.
[3] Ou
sanfoneiros, tocadores de sanfona, que, naquela época, talvez fosse comum em
Portugal.
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