MICHELANGELO conseguiu representar com
incomparável poder de expressão a face varonil e inspirada de Moisés, pastor
paternal e severo do povo de Deus na sua longa peregrinação em demanda da Terra
Prometida. O exemplo do grande Patriarca permanecerá por todos os séculos como
afirmação de que, a serviço do bem, cumpre construir e destruir. Legislador e
guia do povo eleito, ao mesmo tempo revelou-se inexcedível batalhador contra
todos os que se opunham ao Decálogo e queriam conspurcar a Lei de Deus. Os
Macabeus, os cruzados, os heróis de Belgrado são dignos continuadores desse
espírito de afirmação e pugnacidade, tão louvável em todas as épocas e tão necessário
em nossos dias.
As Cruzadas constituem um tema histórico que vai adquirindo hoje uma
inesperada atualidade. Não propriamente que se procure – fora do mundo fechado
dos especialistas – fazer pesquisas mais amplas a respeito do assunto, ou
conhecer-lhe melhor os pormenores. É o substractum doutrinário das Cruzadas que interessa hoje [a]
um número crescente de pessoas cultas, especialmente nos círculos católicos. Em
ultima analise, pergunta-se com uma insistência maior, com uma atenção mais
viva, com um anseio de clareza mais exigente, se as Cruzadas constituíram um movimento coerente com os princípios
fundamentais de nossa Religião.
Não é difícil adivinhar a razão desta “ressurreição” de um tão velho
tema. Com efeito – queira-se ou não – a situação internacional vai pondo em
evidência sempre maior um fato que há vinte ou trinta anos atrás se afiguraria
de todo em todo impossível para a maior parte dos políticos. É o entrelaçamento entre as questões
religiosas e internacionais. Desde os tratados de Westphalia, a
dissociação entre umas e outras veio se acentuando constantemente, até nossos
dias. De tal maneira que a simples idéia de uma tomada de posição da Igreja em
um conflito internacional, em nome dos direitos e dos interesses da Fé, a
muitos pareceria de todo descabida e ultrapassada pelos acontecimentos.
Entretanto, nas ultimas décadas a situação internacional sofreu transformações
que exigem uma revisão desta atitude psicológica. Seria fácil demonstrá-lo com
a análise da política européia nas vésperas da segunda guerra mundial. Mas a
presente conjuntura diplomática nos fornece neste sentido elementos de
observação ainda mais salientes. Não parece difícil evocá-los e estudá-los.
Segundo o linguajar jornalístico, o mundo está dividido hoje em três
grandes zonas. De um lado, os Estados Unidos, seguido da Inglaterra, da França
e das potências livres da Europa, América e Oceania. É o que se chama o
Ocidente, que conta com o apoio do Japão e algumas outras nações da Ásia. De
outro lado, a Rússia não só com a China e os satélites circunscritos pela
cortina de ferro, como também com alguns países que ficam geograficamente fora
desta cortina, por exemplo a Iugoslávia… e São Marino. Por fim, a Índia, as
nações árabes, etc., que constituem como que uma terceira força que se afirma
neutra entre Washington e Moscou.
Ora, sucede que cada um destes três grandes blocos se diferencia dos
outros por certos traços culturais, morais, políticos e sociais, por todo um
estilo de vida enfim. E é certo que, depois de uma eventual guerra mundial, se
a humanidade não for aniquilada, ou como que aniquilada, será inteiramente
dominada, durante muitos séculos, pelos princípios culturais, morais etc., do
vencedor.
É o que todos sentimos. Vivemos em anos que constituem o ponto agudo de
toda uma imensa crise multissecular. Há um anseio universal por que esta crise
se resolva afinal. A solução não pode tardar muito. Resta saber em proveito de
quem se dará.
Isto posto, é impossível evitar que um católico, movido pelo ideal da
instauração do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo os anelos
do Santo Padre Pio XII, se pergunte a si mesmo qual dos desfechos seria mais
conducente a este fim. O que implica, para ele, em passar em revista os elementos
constitutivos do espírito dominante em cada campo, e ver o que está mais
próximo, ou menos distante da Igreja. Aquele que oferece à Igreja condições de
existência e de ação mais fáceis, ou menos dificílimas, se se pudesse assim
dizer.
Ora, desta analise resulta que num dos campos as autoridades pura e
simplesmente não consentem na existência da Igreja.
A Igreja vive, naquele campo, em regime de clandestinidade. Ou, se se
Lhe permite viver à luz do sol, é apenas para mais seguramente golpeá-La. De
onde nasce o problema: é lícito ao
católico empunhar o gládio para lutar contra este adversário? Em
outros termos, no caso de explodir uma guerra mundial, em que de um lado
estejam os comunistas e do outro os ocidentais, os católicos das nações não
atacadas devem entrar no conflito, se isto for necessário para a derrota da
Rússia?
Na atual confusão dos espíritos, é particularmente difícil dar resposta,
nos estreitos limites deste artigo, a uma questão que envolve tal pluralidade
de aspectos. Entretanto, duas faces do assunto são magnificamente esclarecidas
por um recente documento do Santo Padre Pio XII. Queremos, pois, pôr em foco os
tópicos a elas concernentes em dito documento, a saber, na Carta Apostólica aos povos perseguidos da
Europa, datada de 29 de junho deste ano, quinto centenário da
Carta “Cum his superioribus annis” de
Calixto III.
Antes de tudo, sobre um ponto de fato. Não haja dúvidas. A situação dos
católicos é a mais aflitiva, nos países de atrás da cortina de ferro. A este
respeito, as esperanças de muitos elementos “otimistas” e “confiantes” não têm
fundamento na realidade.
O Soberano Pontífice começa por externar naquela Carta Apostólica como
lhe fica “contristado o coração, ao
considerar as condições penosas em que padece a Igreja em muitas regiões do
mundo em conseqüência do materialismo ateu“.
Em seguida, denuncia a perseguição que pesa sobre a Hungria, a Albânia,
a Bulgária, a Tchecoslováquia, a Iugoslávia, a Romênia, bem como sobre “os povos da Alemanha e Polônia” e “os que habitam as regiões vizinhas ao
Leste, e ao Norte ao longo do Mar Báltico”. Isto é, em todas as regiões
do império soviético em que há aglomerações consideráveis de católicos, e estes
podem constituir um perigo para o comunismo.
Há mais de dez anos, diz o Pontífice, “vós que habitais esses países estais na tristeza e na aflição”,
e “a Igreja de Cristo está
privada de seus direitos, se bem que em medidas diferentes segundo os lugares;
as associações pias e as congregações religiosas são dissolvidas e dispersadas,
e os Pastores são entravados no exercício de seu ministério, quando não são
exilados, deportados ou presos; tentou-se até, temerariamente, suprimir as
Dioceses de rito oriental e impelir por todos os meios para o cisma o Clero e
os fiéis. Sabemos também que muitos são perseguidos de todos os modos por haver
professado aberta, sincera e corajosamente a Fé, e por a ter defendido com
fortaleza. O que mais Nos contrista é saber que o espírito das crianças e dos
jovens é impregnado de doutrinas falsas e perversas com o intuito de os afastar
de Deus e dos seus santos preceitos, em detrimento da vida presente e não sem
risco para a vida futura.
“Nós, que pela vontade divina
ocupamos esta Cátedra de Pedro, temos constantemente diante dos olhos este
triste espetáculo; já tratamos dele em anteriores Cartas Apostólicas, mas
ainda, hoje não poderíamos calar, sem faltar a Nosso dever”.
Depois de palavras comoventes, de apoio e conforto, dirigidas aos Emmos.
Cardeais Mindszenty, Stepinac e Wyszynski bem como à Hierarquia e aos fiéis dos
países de além cortina de ferro, o Santo Padre afirma: “É para Nós um grande reconforto saber que
muitos dentre vós estão dispostos a sacrificar tudo, inclusive a liberdade e a
vida, de preferência a expor a risco a integridade da Religião Católica.
Sabemos que nisto numerosos Pastores deram testemunhos invencíveis de coragem
cristã: vós sobretudo, Nossos caros Filhos Cardeais da Santa Igreja Romana, que
vos tornastes objeto de admiração à face do mundo, dos Anjos e dos homens”.
Entretanto, como nos primeiros séculos da Igreja, não faltam
infelizmente os que, dominados pelo desânimo, tendem a apostatar. A estes,
dirige o Vigário de Jesus Cristo as seguintes palavras cheias de sabedoria e
força: “Sabemos também,
infelizmente, que a fragilidade e a fraqueza humanas vacilam, especialmente
quando as provas e vexações duram tanto. Acontece então que alguns caem no
desânimo, e perdem, o fervor; pior ainda, chegam à conclusão de que é
necessário mitigar a doutrina de Jesus Cristo, e, dizem eles, adaptá-la aos
tempos novos e às circunstâncias novas, enervando ou modificando os princípios
da Religião Católica para os pôr de acordo com os erros deste século em
progresso.
“A esses desalentados, e
semeadores de desalento, os Pastores têm o dever de lembrar a afirmação solene
do Divino Redentor: O Céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão
(Mat. XXIV, 35), e de os exortar a que ponham sua esperança e sua confiança
naquele cuja providência não se engana em suas disposições, e que nunca priva
de sua assistência os que estabelece na solidez de seu amor (cfr. Missal
Romano, orações do 7.º e do 2.º domingos depois de Pentecostes). Jamais com
efeito o Deus onipotente permitirá que seus filhos fiéis e generosos sejam
privados da graça e da força divina, e que, separados de Jesus Cristo, sucumbam
desgraçadamente nesta luta pela salvação, e presenciem impotentes a ruína
espiritual de seu próprio povo”.
Assim, o documento pontifício enumera um a um os elementos típicos de
uma grande perseguição: o território por ela atingido é imenso, numerosíssimos
os fiéis que ela oprime, a própria Hierarquia, em suas figuras mais altas e
representativas, não é poupada, os meios empregados são dos mais cruéis, em
face da prova muitos são os que resistem e atingem a palma do martírio, mas
outros há enfim que procuram numa apostasia velada ou franca o meio de salvar
sua existência terrena. O motivo
da luta é nitidamente religioso. Não se trata de uma ojeriza à
influência latina: as Dioceses de rito oriental são até as mais diretamente
visadas. Trata-se, isso sim, de um governo dominado pelo materialismo ateu que,
coerente com sua péssima ideologia, deseja a completa extinção da Fé.
Ora – e este pormenor interessa sobremaneira – estas perseguições são
movidas por Moscou, precisamente nos territórios que conquistou depois da
ultima guerra. De onde impossível será não recear muitíssimo que, em outros
países que conquiste, a Rússia proceda do mesmo modo.
Mas, dirá algum leitor, há nisto certo exagero. Pois nem toda a
perseguição procede do Kremlin. Haveria temeridade em afirmar que tudo quanto
se faz em Belgrado resulta de ordens vindas de Moscou. Pois ainda há bem pouco
tempo as duas capitais estavam até em conflito.
Aceitemos a objeção, pelo menos argumentandi gratia.
Se a ruptura entre Moscou e Belgrado era sincera, é óbvio que Belgrado
agiu por iniciativa própria, contra a Igreja. Como se explica que dois governos
antagônicos entre si procedam em face da Igreja de maneira tão minuciosamente
idêntica? Se entre esses dois governos só o que havia de comum era a ideologia,
claro está que a ideologia é a responsável pelo que fazem de igual…
Note-se por fim que o discurso do Papa é posterior ao início de toda a
“operação sorriso”. Ele é de molde a deixar bem certo que tal manobra não
alterou em nada os termos essenciais da perseguição.
Destarte, tudo leva a crer que, se vencerem a guerra, os russos
espalharão seus erros por todo o mundo, e inaugurarão a maior perseguição
religiosa da história.
À vista disto, qual o dever dos católicos? Em sua Carta Apostólica, o
Santo Padre evoca uma situação muito análoga à atual, com a simples diferença
de que era menos trágica. Os turcos, tendo vencido o Império Bizantino,
ameaçavam a Europa Central. Seu domínio representaria o triunfo do
maometanismo, por certo um adversário muito menos total da Religião Católica,
do que o materialismo ateu.
“Verificando esta situação crítica, diz Sua Santidade, o
infatigável Pontífice Calixto III julgou
de seu dever exortar paternalmente os Pastores e fiéis do mundo católico a
expiar seus pecados pela penitência, a restaurar a vida cristã em toda a sua
integridade, a implorar o socorro eficaz de Deus por fervorosas orações. Alem
disto, com grande constância, aplicou-se por todos os meios a desviar dos fiéis
o perigo, e por fim atribuiu ao socorro divino a vitória alcançada pelos heróis
que, alentados pelas exortações de S.
João de Capistrano e guiados pelo valente general João Hunyady, defenderam
corajosamente a fortaleza de Belgrado. Para que a lembrança deste acontecimento fosse conservada na Liturgia, e
para que todos os cristãos dessem graças a Deus, instituiu ele
a Festa da Transfiguração de Nosso
Senhor Jesus Cristo, que se celebraria no mundo inteiro no dia 6 de agosto (cfr. Carta
Apostólica “Inter divinae dispositionis”, de 6 de agosto de 1457)“.
E Pio XII conclui: “Antes
de terminar esta Carta, queremos lembrar-vos como Nosso Predecessor Calixto
III, em sua Carta Apostólica Cum his superioribus annis, tinha ordenado que
diariamente se tocassem os sinos em momento determinado, a fim de incitar os
fiéis de todo o orbe católico a dirigir suas orações a Deus onipotente e
benevolente, para que afastasse do povo cristão o imenso desastre que o
ameaçava. Hoje, os perigos a que estão expostas vossas almas e a Igreja
Católica em vossos países não são menores. Por isto, quando ouvirdes o som dos
sinos convidando à oração, lembrai-vos desta exortação e, animados com a mesma
confiança no socorro divino, elevai, a exemplo de vossos antepassados, súplicas
e preces a Deus”.
Assim, a reação do Papa Calixto III, e agora a do Papa Pio XII, é a
mesma. Antes de tudo, recorrer aos meios sobrenaturais. Para aplacar a cólera
divina, nada melhor do que a oração, a penitência, a reforma da vida cristã.
Mas se a Providência põe a nosso alcance também o gládio do poder temporal,
para a resistência à mão armada, cumpre usá-lo. Foram heróis dignos de todo
louvor os que acorreram de várias nações da Europa a fim de, sob a direção de
João Hunyady, combater contra o maometano invasor. A Providência abençoou a tal
ponto seu esforço, que lhes deu a vitória. E para isto suscitou o zelo de um
grande Santo como João de Capistrano, a cujas exortações se deveu o ânimo
indômito com que os guerreiros cristãos lutaram até o fim.
Se em algum lugar da terra houver perigo iminente de que um país seja
dominado pelo comunismo, e se neste lugar a resistência armada for a única
possível, parece-nos certo que só merecerá louvor o católico que para lá se
dirija a fim de derramar seu sangue”.
(Plínio Corrêa de Oliveira - Catolicismo, Nº 70 – Outubro de 1956)