sábado, 26 de agosto de 2023

O FEUDALISMO





Quando o Cristianismo dominou completamente a Europa, a prática da religião Católica fez com que toda a sociedade visse a necessidade de fazer cumprir na vida social a totalidade dos preceitos evangélicos, dentre eles o que dizia que é maior aquele que serve do que aquele que é servido. Entre as ordens religiosas havia regras que fazia seus membros cumprir mais fielmente tais preceitos, especialmente o da obediência. Na sociedade civil, porém, só começou a existir algo semelhante com o surgimento do feudalismo. 

Feudo – Território que um vassalo recebia de um rei ou senhor, em troca de lhe prestar serviços e pagar tributos. O rei Afonso X, “O Sábio”, assim definia o feudo espanhol: “Feudo é o benefício dado pelo senhor a algum homem porque se tornou seu vassalo e lhe fez homenagem de ser-lhe leal, tomou este nome da fé que deve o vassalo guardar ao senhor”. Interessante notar que havia a homenagem e a vassalagem, coisas diferentes . As normas feudatárias podem ser resumida num documento remetido ao duque de Aquitânia, Guilherme, no ano 1020: “Aquele que jura fidelidade ao seu senhor deve ter sempre presente na memória estas seis palavras: incólume, seguro, honesto, útil, fácil e possível. Incólume, na medida em que não deve causar prejuízos corpóreos ao seu senhor; seguro, para que não traia os seus segredos ou as armas pelas quais ele se possa manter em segurança; honesto, para que não enfraqueça os seus direitos de justiça ou de outras matérias que pertençam à sua honra; útil, para que não cause prejuízo  às suas possessões; fácil ou possível, visto que não deverá tornar difícil ao seu senhor o bem que ele facilmente poderia fazer, nem tornar impossível o que para ele seria possível”  Mais adiante, o documento acrescenta: “O senhor deve também retribuir da mesma maneira todas estas coisas ao seu fiel. Se não o fizer, será com toda razão acusado de má fé, exatamente como seria (considerado) pérfido e perjuro (o vassalo) apanhado a fazer ou consentir tais prevaricações”. (“História da Idade Média” – Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez – Ed. Unesp, 1999 -  pp. 94/95)

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

SANTA CLARA DE ASSIS

 

 


(Santa Clara de Assis - Convento do Desterro - Salvador-BA)

Santa Clara (1194-1250) é de nobre família; fundou juntamente com São Francisco de Assis a Ordem Segunda dos Menores. Pôs em fuga os bárbaros Sarracenos que sitiavam seu mosteiro, avançando-se para eles com o Santo Cibório na mão.

A respeito de Santa Clara, Dom Guéranger afirma o seguinte:
“Santa Clara nasceu em Assis, em 1194. Ela pertencia à nobre família dos Alfreducci. Ela perdeu seu pai muito cedo. Quando sua família a quis casar, ela declarou que se daria a Deus e no dia 18 de março de 1212, ela partiu para São Damião, onde Francisco lhe deu o hábito religioso. Sua irmã e depois sua mãe deveriam se reunir a ela no claustro e, com elas, uma multidão de jovens, ávidas de viveram o ideal franciscano, que não era senão o ideal evangélico. Francisco lhe deu antes uma ‘formula vitae’, pois elas obtiveram seguir a Regra que lhes tinha dado os irmãos menores. Mosteiros fundados na Itália, em seguida nos países vizinhos e até em Braga. Em 1240, enquanto a santa Abadessa estava doente, os Sarracenos cercaram o Mosteiro de São Damião. Clara tomou o Santo Cibório nas mãos e rumou em direção ao inimigo que então fugiu. Em 1252 ela se deitou para não mais se levantar. A sua última doença foi consolada pela visita do Papa que confirmou a Regra e o privilégio da pobreza e no dia 11 de agosto ela dormiu na paz de Deus. Em 1850, seu corpo foi encontrado intacto como no dia de sua morte”.

Vários comentários poderiam ser feitos a respeito disto.

O primeiro é a respeito do número de pessoas que seguiram esta vocação. Que diferença em relação aos dias de hoje! Quer dizer, o ideal de pobreza evangélica, levado até ao extremo que São Francisco de Assis ensinou, encontrou em primeiro lugar a adesão da família de Santa Clara. E não só a adesão da família, mas a mãe e a irmã acabaram indo morar com ela.
Depois ela se entrega a esta vida austeríssima a qual, ao invés de afugentar, pelo contrário atrai a todo mundo. Para os senhores compreenderem a austeridade desta vida, talvez devessem ter estado em Assis, para terem uma idéia do que é aquilo, é uma coisa incrível! A pobreza é tal e tudo é tão pequenininho, tão diminuto, que a gente sente quase claustrofobia lá dentro. E a par de uma consolação, de uma graça, de uma leveza de alma, de uma unção, como não se sente em nenhum lugar, a gente nota que a vida materialmente falando é muito dura. Para resumir tudo em uma palavra se diria: “é um local lindo para se ir, mas talvez terrível para ficar”. É bem esta a realidade.

Outro aspecto a ser considerado: o hábito franciscano daquela época. Hoje é o que os senhores vêem, mas naquele tempo era uma espécie de saco. Ela vai com a irmã e a mãe vestida assim e, em vez de afastar as pessoas, pelo contrário, um mundo de moças vão acompanhá-las nesta vocação. Seria mais ou menos a mesma coisa do que se hoje fosse fundado um convento contemplativo para se rezar pelos movimentos autenticamente contra-revolucionários, com Regra muito severa, e legiões de moças, nobres e da alta burguesia, vão lá dizendo: “eu quero a pobreza, eu quero a penitência, eu quero o isolamento, eu quero separar-me para todo o sempre do mundo para só cuidar deste ideal sublime...”

Os senhores conhecem algo de parecido com isso? Os senhores vêem os tempos como mudam.

A gente lê isso assim e se tem a impressão de umas tantas histórias destas com uma espécie de ron-ron que se repete sempre para si mesmo. Mas quando a gente transpõe isto para os nossos dias é que compreendemos o que isto significa...

Outro aspecto: os senhores imaginem de manhã, num jornal “x” que todos conhecemos, uma notícia pequena (porque este quotidiano só daria esta matéria em ponto pequeno): “Monja faz recuar comunistas do Vietcong. A madre Verônica do Imaculado Coração de Maria, num momento de grande perigo, tomou o Santíssimo Sacramento, indo em direção aos inimigos. E contra a expectativa de suas irmãs de hábito e das pessoas da população local, os comunistas fugiram. Ignora-se o motivo da fuga dos comunistas”. O final de telegrama seria esse. Seria como esse jornal “x” noticiaria o fato.
O jornal “y” noticiaria de outra maneira: “Freira afugenta comunistas. Fato sensacional no Vietcong. Madre Verônica de Imaculado Coração de Maria trazendo o Santíssimo, etc., etc. A ação da religiosa, tendo causado profunda impressão na imaginação dos orientais, produziu a fuga em debandada. A população em breve, o Club “z” do local vai homenagear a religiosa. O Departamento de Estado concedeu-lhe uma medalha”.

Qual seria o nosso comentário? Coisa fantástica! Isto é que é freira! Manda o “Catolicismo” para a madre Verônica do Imaculado Coração. Poderíamos mandar para ela o livro “A liberdade da Igreja no Estado comunista”, outras publicações e, entusiasmados, imaginando o contato epistolar que se poderia travar com ela, não é verdade? Porque seria uma coisa maravilhosa afugentar os comunistas!

Pois bem, os senhores precisavam ver o que os sarracenos andavam fazendo por lá. Eles não invadiram só a Espanha, Portugal e um pouco a França, como se imagina. Eles várias vezes invadiram a Itália. E a Itália de antes da Renascença era uma nação militar e militar com gosto, com arte. E os soldados mercenários italianos eram muito apreciados. Depois do Renascimento as coisas tomaram um aspecto não tão heróico, mas antes disso era magnífico!

Os sarracenos tinham levado várias tropas de roldão e estavam chegando lá em Assis. Ou seja, era gente sanhuda, terrível, que tinha feito façanhas, que tinha feito recuar exércitos regulares de toda ordem. Não era gente impressionável. Santa Clara foi de encontro a esses com o Santíssimo Sacramento e salvou assim o Convento de São Damião.

Os senhores considerem a beleza da cena. Quer dizer, a fé que isto representa e a intervenção clara do milagre na ordem da História. Como é uma coisa magnífica, edificante!

Mais bonito é o seguinte: às vezes Deus – e assim são Suas obras –, para rechaçar os sarracenos dispôs de Cruzados, muitas vezes de guerreiros magníficos que não eram diretamente Cruzados. Mas em uma ou outra situação Ele quis que pessoas frágeis vencessem os sarracenos. Isto para provar que, no fundo, a vitória era d’Ele. E então é uma mulher – ou seja, o cúmulo da fragilidade – contra os Sarracenos, armada do Santíssimo Sacramento, onde Nosso Senhor está invisível na Eucaristia, algo que para os Sarracenos não é senão um pequeno disco branco. Então ela, armada “apenas” disto e que vai de encontro a eles... que fogem! Para que? Para fazer compreender bem que, no total, a vitória é sempre de Deus e são os meios sobrenaturais que alcançam a vitória.

Imaginem isso: os sarracenos fervilhando ali em volta do Convento, sedentos de sangue, para derrubar isto, para matar aquilo etc. e Santa Clara que sai do Convento e dá passos em direção a eles... que de repente olham para ela e começam a fugir. Os senhores podem avaliar a beleza de uma cena destas? Agora imaginem o resto. O que foram as ações de graças quando os sarracenos foram embora e que os franciscanos se encontraram com as franciscanas e que todos juntos puderam entoar um “Te Deum”! Que verdadeira maravilha uma coisa desta! É o fecho de uma ação histórica estupenda.

Aqui está um exemplo para compreendermos bem que quando não tivermos outra coisa senão o Santíssimo Sacramento para irmos de encontro dos infiéis, devemos ir com calma e com coragem. Porque quem está engajado num embate que é de Nossa Senhora, pode morrer, mas nunca tem vantagem em recuar, porque Nossa Senhora dá sempre a vitória. Isso é que não se discute.

(Plínio Corrêa de Oliveira – Santo do Dia, 12 de agosto de 1965)

 

(Extraído de:

https://www.pliniocorreadeoliveira.info/DIS_SD_650812_santa_clara_assis.htm )

 

sábado, 5 de agosto de 2023

FESTA DA TRANSFIGURAÇÃO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

 




MICHELANGELO conseguiu representar com incomparável poder de expressão a face varonil e inspirada de Moisés, pastor paternal e severo do povo de Deus na sua longa peregrinação em demanda da Terra Prometida. O exemplo do grande Patriarca permanecerá por todos os séculos como afirmação de que, a serviço do bem, cumpre construir e destruir. Legislador e guia do povo eleito, ao mesmo tempo revelou-se inexcedível batalhador contra todos os que se opunham ao Decálogo e queriam conspurcar a Lei de Deus. Os Macabeus, os cruzados, os heróis de Belgrado são dignos continuadores desse espírito de afirmação e pugnacidade, tão louvável em todas as épocas e tão necessário em nossos dias.

As Cruzadas constituem um tema histórico que vai adquirindo hoje uma inesperada atualidade. Não propriamente que se procure – fora do mundo fechado dos especialistas – fazer pesquisas mais amplas a respeito do assunto, ou conhecer-lhe melhor os pormenores. É o substractum doutrinário das Cruzadas que interessa hoje [a] um número crescente de pessoas cultas, especialmente nos círculos católicos. Em ultima analise, pergunta-se com uma insistência maior, com uma atenção mais viva, com um anseio de clareza mais exigente, se as Cruzadas constituíram um movimento coerente com os princípios fundamentais de nossa Religião.

Não é difícil adivinhar a razão desta “ressurreição” de um tão velho tema. Com efeito – queira-se ou não – a situação internacional vai pondo em evidência sempre maior um fato que há vinte ou trinta anos atrás se afiguraria de todo em todo impossível para a maior parte dos políticos. É o entrelaçamento entre as questões religiosas e internacionais. Desde os tratados de Westphalia, a dissociação entre umas e outras veio se acentuando constantemente, até nossos dias. De tal maneira que a simples idéia de uma tomada de posição da Igreja em um conflito internacional, em nome dos direitos e dos interesses da Fé, a muitos pareceria de todo descabida e ultrapassada pelos acontecimentos. Entretanto, nas ultimas décadas a situação internacional sofreu transformações que exigem uma revisão desta atitude psicológica. Seria fácil demonstrá-lo com a análise da política européia nas vésperas da segunda guerra mundial. Mas a presente conjuntura diplomática nos fornece neste sentido elementos de observação ainda mais salientes. Não parece difícil evocá-los e estudá-los.

Segundo o linguajar jornalístico, o mundo está dividido hoje em três grandes zonas. De um lado, os Estados Unidos, seguido da Inglaterra, da França e das potências livres da Europa, América e Oceania. É o que se chama o Ocidente, que conta com o apoio do Japão e algumas outras nações da Ásia. De outro lado, a Rússia não só com a China e os satélites circunscritos pela cortina de ferro, como também com alguns países que ficam geograficamente fora desta cortina, por exemplo a Iugoslávia… e São Marino. Por fim, a Índia, as nações árabes, etc., que constituem como que uma terceira força que se afirma neutra entre Washington e Moscou.

Ora, sucede que cada um destes três grandes blocos se diferencia dos outros por certos traços culturais, morais, políticos e sociais, por todo um estilo de vida enfim. E é certo que, depois de uma eventual guerra mundial, se a humanidade não for aniquilada, ou como que aniquilada, será inteiramente dominada, durante muitos séculos, pelos princípios culturais, morais etc., do vencedor.

É o que todos sentimos. Vivemos em anos que constituem o ponto agudo de toda uma imensa crise multissecular. Há um anseio universal por que esta crise se resolva afinal. A solução não pode tardar muito. Resta saber em proveito de quem se dará.

Isto posto, é impossível evitar que um católico, movido pelo ideal da instauração do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo os anelos do Santo Padre Pio XII, se pergunte a si mesmo qual dos desfechos seria mais conducente a este fim. O que implica, para ele, em passar em revista os elementos constitutivos do espírito dominante em cada campo, e ver o que está mais próximo, ou menos distante da Igreja. Aquele que oferece à Igreja condições de existência e de ação mais fáceis, ou menos dificílimas, se se pudesse assim dizer.

Ora, desta analise resulta que num dos campos as autoridades pura e simplesmente não consentem na existência da Igreja.

A Igreja vive, naquele campo, em regime de clandestinidade. Ou, se se Lhe permite viver à luz do sol, é apenas para mais seguramente golpeá-La. De onde nasce o problema: é lícito ao católico empunhar o gládio para lutar contra este adversário? Em outros termos, no caso de explodir uma guerra mundial, em que de um lado estejam os comunistas e do outro os ocidentais, os católicos das nações não atacadas devem entrar no conflito, se isto for necessário para a derrota da Rússia?

Na atual confusão dos espíritos, é particularmente difícil dar resposta, nos estreitos limites deste artigo, a uma questão que envolve tal pluralidade de aspectos. Entretanto, duas faces do assunto são magnificamente esclarecidas por um recente documento do Santo Padre Pio XII. Queremos, pois, pôr em foco os tópicos a elas concernentes em dito documento, a saber, na Carta Apostólica aos povos perseguidos da Europa, datada de 29 de junho deste ano, quinto centenário da Carta “Cum his superioribus annis” de Calixto III.

Antes de tudo, sobre um ponto de fato. Não haja dúvidas. A situação dos católicos é a mais aflitiva, nos países de atrás da cortina de ferro. A este respeito, as esperanças de muitos elementos “otimistas” e “confiantes” não têm fundamento na realidade.

O Soberano Pontífice começa por externar naquela Carta Apostólica como lhe fica “contristado o coração, ao considerar as condições penosas em que padece a Igreja em muitas regiões do mundo em conseqüência do materialismo ateu“.

Em seguida, denuncia a perseguição que pesa sobre a Hungria, a Albânia, a Bulgária, a Tchecoslováquia, a Iugoslávia, a Romênia, bem como sobre “os povos da Alemanha e Polônia” e “os que habitam as regiões vizinhas ao Leste, e ao Norte ao longo do Mar Báltico”. Isto é, em todas as regiões do império soviético em que há aglomerações consideráveis de católicos, e estes podem constituir um perigo para o comunismo.

Há mais de dez anos, diz o Pontífice, “vós que habitais esses países estais na tristeza e na aflição”, e “a Igreja de Cristo está privada de seus direitos, se bem que em medidas diferentes segundo os lugares; as associações pias e as congregações religiosas são dissolvidas e dispersadas, e os Pastores são entravados no exercício de seu ministério, quando não são exilados, deportados ou presos; tentou-se até, temerariamente, suprimir as Dioceses de rito oriental e impelir por todos os meios para o cisma o Clero e os fiéis. Sabemos também que muitos são perseguidos de todos os modos por haver professado aberta, sincera e corajosamente a Fé, e por a ter defendido com fortaleza. O que mais Nos contrista é saber que o espírito das crianças e dos jovens é impregnado de doutrinas falsas e perversas com o intuito de os afastar de Deus e dos seus santos preceitos, em detrimento da vida presente e não sem risco para a vida futura.

“Nós, que pela vontade divina ocupamos esta Cátedra de Pedro, temos constantemente diante dos olhos este triste espetáculo; já tratamos dele em anteriores Cartas Apostólicas, mas ainda, hoje não poderíamos calar, sem faltar a Nosso dever”.

Depois de palavras comoventes, de apoio e conforto, dirigidas aos Emmos. Cardeais Mindszenty, Stepinac e Wyszynski bem como à Hierarquia e aos fiéis dos países de além cortina de ferro, o Santo Padre afirma: “É para Nós um grande reconforto saber que muitos dentre vós estão dispostos a sacrificar tudo, inclusive a liberdade e a vida, de preferência a expor a risco a integridade da Religião Católica. Sabemos que nisto numerosos Pastores deram testemunhos invencíveis de coragem cristã: vós sobretudo, Nossos caros Filhos Cardeais da Santa Igreja Romana, que vos tornastes objeto de admiração à face do mundo, dos Anjos e dos homens”.

Entretanto, como nos primeiros séculos da Igreja, não faltam infelizmente os que, dominados pelo desânimo, tendem a apostatar. A estes, dirige o Vigário de Jesus Cristo as seguintes palavras cheias de sabedoria e força: “Sabemos também, infelizmente, que a fragilidade e a fraqueza humanas vacilam, especialmente quando as provas e vexações duram tanto. Acontece então que alguns caem no desânimo, e perdem, o fervor; pior ainda, chegam à conclusão de que é necessário mitigar a doutrina de Jesus Cristo, e, dizem eles, adaptá-la aos tempos novos e às circunstâncias novas, enervando ou modificando os princípios da Religião Católica para os pôr de acordo com os erros deste século em progresso.

“A esses desalentados, e semeadores de desalento, os Pastores têm o dever de lembrar a afirmação solene do Divino Redentor: O Céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão (Mat. XXIV, 35), e de os exortar a que ponham sua esperança e sua confiança naquele cuja providência não se engana em suas disposições, e que nunca priva de sua assistência os que estabelece na solidez de seu amor (cfr. Missal Romano, orações do 7.º e do 2.º domingos depois de Pentecostes). Jamais com efeito o Deus onipotente permitirá que seus filhos fiéis e generosos sejam privados da graça e da força divina, e que, separados de Jesus Cristo, sucumbam desgraçadamente nesta luta pela salvação, e presenciem impotentes a ruína espiritual de seu próprio povo”.

Assim, o documento pontifício enumera um a um os elementos típicos de uma grande perseguição: o território por ela atingido é imenso, numerosíssimos os fiéis que ela oprime, a própria Hierarquia, em suas figuras mais altas e representativas, não é poupada, os meios empregados são dos mais cruéis, em face da prova muitos são os que resistem e atingem a palma do martírio, mas outros há enfim que procuram numa apostasia velada ou franca o meio de salvar sua existência terrena. O motivo da luta é nitidamente religioso. Não se trata de uma ojeriza à influência latina: as Dioceses de rito oriental são até as mais diretamente visadas. Trata-se, isso sim, de um governo dominado pelo materialismo ateu que, coerente com sua péssima ideologia, deseja a completa extinção da Fé.

Ora – e este pormenor interessa sobremaneira – estas perseguições são movidas por Moscou, precisamente nos territórios que conquistou depois da ultima guerra. De onde impossível será não recear muitíssimo que, em outros países que conquiste, a Rússia proceda do mesmo modo.

Mas, dirá algum leitor, há nisto certo exagero. Pois nem toda a perseguição procede do Kremlin. Haveria temeridade em afirmar que tudo quanto se faz em Belgrado resulta de ordens vindas de Moscou. Pois ainda há bem pouco tempo as duas capitais estavam até em conflito.

Aceitemos a objeção, pelo menos argumentandi gratia.

Se a ruptura entre Moscou e Belgrado era sincera, é óbvio que Belgrado agiu por iniciativa própria, contra a Igreja. Como se explica que dois governos antagônicos entre si procedam em face da Igreja de maneira tão minuciosamente idêntica? Se entre esses dois governos só o que havia de comum era a ideologia, claro está que a ideologia é a responsável pelo que fazem de igual…

Note-se por fim que o discurso do Papa é posterior ao início de toda a “operação sorriso”. Ele é de molde a deixar bem certo que tal manobra não alterou em nada os termos essenciais da perseguição.

Destarte, tudo leva a crer que, se vencerem a guerra, os russos espalharão seus erros por todo o mundo, e inaugurarão a maior perseguição religiosa da história.

À vista disto, qual o dever dos católicos? Em sua Carta Apostólica, o Santo Padre evoca uma situação muito análoga à atual, com a simples diferença de que era menos trágica. Os turcos, tendo vencido o Império Bizantino, ameaçavam a Europa Central. Seu domínio representaria o triunfo do maometanismo, por certo um adversário muito menos total da Religião Católica, do que o materialismo ateu.

 “Verificando esta situação crítica, diz Sua Santidade, o infatigável Pontífice Calixto III julgou de seu dever exortar paternalmente os Pastores e fiéis do mundo católico a expiar seus pecados pela penitência, a restaurar a vida cristã em toda a sua integridade, a implorar o socorro eficaz de Deus por fervorosas orações. Alem disto, com grande constância, aplicou-se por todos os meios a desviar dos fiéis o perigo, e por fim atribuiu ao socorro divino a vitória alcançada pelos heróis que, alentados pelas exortações de S. João de Capistrano e guiados pelo valente general João Hunyady, defenderam corajosamente a fortaleza de Belgrado. Para que a lembrança deste acontecimento fosse conservada na Liturgia, e para que todos os cristãos dessem graças a Deus, instituiu ele a Festa da Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se celebraria no mundo inteiro no dia 6 de agosto (cfr. Carta Apostólica “Inter divinae dispositionis”, de 6 de agosto de 1457)“.

E Pio XII conclui: “Antes de terminar esta Carta, queremos lembrar-vos como Nosso Predecessor Calixto III, em sua Carta Apostólica Cum his superioribus annis, tinha ordenado que diariamente se tocassem os sinos em momento determinado, a fim de incitar os fiéis de todo o orbe católico a dirigir suas orações a Deus onipotente e benevolente, para que afastasse do povo cristão o imenso desastre que o ameaçava. Hoje, os perigos a que estão expostas vossas almas e a Igreja Católica em vossos países não são menores. Por isto, quando ouvirdes o som dos sinos convidando à oração, lembrai-vos desta exortação e, animados com a mesma confiança no socorro divino, elevai, a exemplo de vossos antepassados, súplicas e preces a Deus”.

Assim, a reação do Papa Calixto III, e agora a do Papa Pio XII, é a mesma. Antes de tudo, recorrer aos meios sobrenaturais. Para aplacar a cólera divina, nada melhor do que a oração, a penitência, a reforma da vida cristã. Mas se a Providência põe a nosso alcance também o gládio do poder temporal, para a resistência à mão armada, cumpre usá-lo. Foram heróis dignos de todo louvor os que acorreram de várias nações da Europa a fim de, sob a direção de João Hunyady, combater contra o maometano invasor. A Providência abençoou a tal ponto seu esforço, que lhes deu a vitória. E para isto suscitou o zelo de um grande Santo como João de Capistrano, a cujas exortações se deveu o ânimo indômito com que os guerreiros cristãos lutaram até o fim.

Se em algum lugar da terra houver perigo iminente de que um país seja dominado pelo comunismo, e se neste lugar a resistência armada for a única possível, parece-nos certo que só merecerá louvor o católico que para lá se dirija a fim de derramar seu sangue”.

 (Plínio Corrêa de Oliveira - Catolicismo, Nº 70 – Outubro de 1956)

 

 


Nossa Senhora das Neves

 


 

Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior, em Roma

 

Gostaria de mostrar aos senhores, antes de tudo, o que é um ambiente saturado de história. Numa mesma Basílica, quantas coisas magníficas: pedaços da manjedoura onde Nosso Senhor Jesus Cristo esteve; depois, uma idéia lindíssima: tirar as primícias do ouro de um continente e em vez de aplicá-lo em transações bancárias, utilitárias, destina “inutilmente” ao teto de uma igreja, e de uma igreja dedicada a Nossa Senhora, reconhecendo assim Nossa Senhora como Medianeira de todas as graças.

Depois vemos a recordação esplêndida do rosário rezado por São Pio V, por ocasião da batalha de Lepanto (a 7 de outubro de 1571). Os senhores vêem, então, grandes fatos históricos – um deles divino, que é a Encarnação de Verbo – todos eles deixando seus traços no mesmo monumento. Isto é o esplendor de uma civilização tradicional! Compreende-se porque no nome da TFPantes mesmo das palavras Família e Propriedade, colocamos Tradição.

Passo, agora, às considerações sobre Nossa Senhora das Neves feitas por Dom Guéranger, em sua obra “L’Année Liturgique”. Outra tradição magnífica é que essa igreja foi a primeira, em Roma, a ser consagrada a Nossa Senhora.

“Foi na metade do IV século que o Papa Libério acrescentou uma abside à vasta sala chamada “Sicininum” e a consagrou ao culto. É  por isso que às vezes se dá a esta Basílica o nome de basílica liberiana. Sixto III a reconstruiu quase inteiramente e depois a dedicou, por volta do ano 435, à Virgem da qual o Concílio de Éfeso tinha, em 431, definido a Maternidade Divina e consagrado no nome de Teotokos, que quer dizer Mãe de Deus. Foi então que a Basílica recebeu e conservou seu nome de Santa Maria Maior”.

Quer dizer, esta igreja data do meio do IV século enquanto igreja, mas a sala que foi tomada como seu núcleo e à qual se acrescentou uma parte do edifício, tem um tempo indeterminado. Vejam, então, que tem 1600 anos: é o esplendor da tradição!

“Uma linda lenda nascida na Idade Média relata que Nossa Senhora apareceu em sonho ao papa Libério, mandando que construísse uma basílica sobre o monte Esquilino (onde se acha Santa Maria Maior, em Roma), no lugar em que ele encontraria, no dia seguinte, tudo coberto de neve. Com efeito, no dia seguinte, embora se estivesse em plena canícula, uma neve miraculosa indica a colocação da basílica desejada por Nossa Senhora. É por isso que se teria podido chamar essa Igreja de Nossa Senhora das Neves. A lenda não deixa de ter relação com o uso de se espalharem, nesse dia, flores brancas na basílica.

“Esse costume simbólico, exprimindo a pureza virginal de Nossa Senhora, esteve, talvez, na origem da lenda ou, pelo contrário, a lenda deu origem ao costume? Não se sabe. O certo é que Santa Maria Maior merece bem o seu nome. É a Basílica de Nossa Senhora por excelência. E se muitas vezes a transcendental pureza das catedrais de Nossa Senhora de Chartres ou de Amiens fez jorrar do coração do peregrino brados de alegria e de louvor, é a confiança tranquila e a indulgência infinita da Mãe que convida a harmonia de Nossa Senhora de Roma”.

Os senhores vêem aqui um lindo papel das lendas. Os espíritos geométricos e sinárquicos não gostam das lendas, porque não está demonstrado que foi verdade… Não compreendem que a lenda existe para demonstrar uma verdade superior: a própria verdade histórica. Aqui há uma série de coisas que estão demonstradas de Nossa Senhora.

Quer dizer, se a neve não caiu na basílica (talvez tenha caído), Nossa Senhora é tal que Ela se mostraria bem como é, tendo agido assim. Então, por aí se tem uma idéia de como é Nossa Senhora. Nesse sentido, a lenda dá uma verdade de caráter superior. Como é próprio de Nossa Senhora violar todas as regras de distância que há entre o Céu e a terra e aparecer para um Papa; como também é próprio de Nossa Senhora indicar o lugar para algo maravilhoso; como lhe é próprio ter escolhido a neve na canícula para indicar um lugar para Si, uma vez que a neve representa o refrigério no meio do calor.

No calor horroroso de Roma, aparece um lugar coberto de uma neve maravilhosa: isto é bem o que Nossa Senhora é para nós em nossa vida. É a neve no meio do calor de nossas batalhas sempre dentro da lei de Deus e dos homens, de nossas provações, dos nossos sofrimentos, no meio da poeirada dessa vida… é a neve alvíssima, branquíssima, imaculada, refrigerante, que nos dá um ante-gosto do Céu! De maneira que o fato, podendo não ser verdadeiro, é inteiramente verdadeiro o que ele nos diz de Nossa Senhora e, portanto, enunciando uma verdade de caráter superior. É o mérito da lenda.

“É nessa Igreja que, numa noite de Natal, Nossa Senhora depôs o Menino Jesus nos braços de São Caetano de Tiene. É aqui que, durante uma outra noite de Natal, Santo Inácio de Loyola celebrou sua primeira Missa. É  aqui que os rosários rezados por São Pio V obtiveram para os cruzados a vitória de Lepanto.

“Há na Basílica uma capela que tem uma imagem de Nossa Senhora, que talvez seja mais antiga que se conhece, e que se diz que foi um quadro pintado por São Lucas.

“É aqui, diante da Madona de São Lucas, que São Carlos Borromeu gostava de rezar e é aqui que, para testemunhar sua gratidão para com a Mãe de Deus, ele deu uma regra monástica aos cônegos dessa Basílica”.

Os senhores estão vendo, portanto, além de todas essas tradições, esse desfile de Santos…

O que me surpreende é que não se conte que aqui está sepultado o grande São Pio V, o grande Papa santo e inquisidor-mor, o grande inimigo do protestantismo e o grande inspirador da batalha de Lepanto.

Vejam quantas maravilhas num só lugar! Mais uma vez insisto na importância da tradição e da lenda.

Falei de quanto é possível que seja lenda a queda da neve sobre o terreno onde se construiria Santa Maria Maior. Entretanto, o fato se deu. E isto porque há uma porção de coisas na Idade Média que são à maneira de lenda.

Por que acabaram os fatos à maneira de lenda? E por que a história foi se tornando cada vez mais uma sucessão de fatos com aspecto puramente natural? E por que, por fim, está tomando agora o aspecto de pesadelo? Poderíamos dizer que houve três etapas: a da beleza lendária, a da normalidade natural e a etapa do pesadelo cada vez mais frequente. Explica-se esta transformação pela transformação do próprio homem.

Numa época em que os homens tem o espírito elevado, tem fé, tem o senso das coisas celestes e, portanto, dos modelos ideais e das coisas perfeitas, eles desejam as coisas extraordinárias, tendem para elas e as praticam. O Céu os apoia e afirma com milagres aquilo que fazem.

A partir do momento em que veio a época do terra-a-terra – com o racionalismo, protestantismo, cartesianismo e todas as formas de naturalismo – este  começa a surgir e a história se torna terra-a-terra. Então, aparecem os “colossos” da nova era. O colosso da era da lenda é um homem que realiza coisas tais que nunca se poderia imaginar que um simples homem pudesse fazer. O colosso da era do naturalismo é muito menos do que isso: ele faz tudo quanto se podia imaginar… Não fez o inimaginável. Depois vem o homem do pesadelo… porque o naturalismo gera monstros.

 (Santo do Dia, 5 de agosto de 1965)

 

 

https://www.pliniocorreadeoliveira.info/nossa-senhora-das-neves-5-8-dedicacao-da-basilica-de-santa-maria-maior-em-roma/

 


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

MULHERES ESTÉREIS PODEM GERAR FILHOS PARA DEUS

 



Uma das vergonhas femininas, que causava opróbrio às mulheres da Antiguidade era não ter filhos. Por que? Porque havia um mandamento divino que se tornou o ponto alto da honra de todo varão, ou de todo casal: “Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra”. Seria este o primeiro mandamento dado por Deus aos homens. O segundo seria a proibição de comer o fruto da árvore da ciência do Bem e do Mal. O homem desobedeceu o segundo, mas o primeiro ficou sendo mais fácil e até honroso cumpri-lo. Ter filhos, portanto, era o que havia de mais honroso, pois só assim se poderia dar continuidade à estirpe. E, geralmente, haviam patriarcas que formavam em torno de si um conceito, um nome, uma honra que fazia merecer dar continuidade através de seus filhos. E Deus foi tão rigoroso com este mandamento que castigou Onan com a morte por ter evitado conceber filhos em sua esposa (Gn 38, 8-10).

No entanto, Deus premiou muitas mulheres, tidas como estéreis, com filhos excepcionais que iluminaram a História. Sansão nasceu de mãe estéril, o mesmo ocorrendo com o grande São João Batista. Ana, mãe de Samuel, profeta e juiz de Israel, também estéril, pediu a Deus um filho que servisse no templo, e logo o obteve. São Nicolau de Cupertino foi fruto das orações de sua mãe, estéril. O mesmo ocorreu com São Francisco de Paula, cujos pais eram estéreis, e São Luís Gonzaga, o Patrono da juventude e modelo da castidade, que nasceu também de mãe que era estéril até o seu nascimento.

Muitas mulheres, inclusive, estiveram estéreis por toda a vida. Outras com capacidade de gerar muitos filhos naturais, tiveram apenas um, como Nossa Senhora. No entanto, é preciso notar que as vocações divinas nesse aspecto são as mesmas, quer dizer, a geração de filhos para Deus não é só dos que nascem do ventre, podendo ser gerados também do coração. É assim que muitas fizeram votos de castidade e não tiveram filhos carnais, mas, no entanto, tiveram muitos filhos espirituais, como as Santas Virgens e Fundadoras. Vejam o que diz Isaías : “Entoa alegre canto, ó estéril, que não deste à luz; ergue gritos de alegria, exulta, tu que não sentiste as dores de parto, porque mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos da esposa, diz o Senhor  (Is 54, 1). “Por acaso eu que abro o seio não farei nascer?, diz o Senhor. Se sou eu que faço nascer, impedirei de dar à luz?, diz o seu Deus” (Is 66, 9). Davi deve estar se referindo a estas mulheres que dão a Deus filhos espirituais, em vez de carnais, quando escreveu num salmo louvando os poderes divinos: “...faz a estéril sentar-se em sua casa, como alegre mãe com seus filhos” (Sl 113, 9). Ora, como é que a estéril vai sentar-se à mesa com seus filhos? Se teve filhos é porque deixou de ser estéril. Então ele se refere á esterilidade natural, enquanto que os filhos dessas estéreis deve ser aqueles gerados pelas vocações divinas, são filhos espirituais.

Vejamos os casos de mulheres estéreis no Antigo Testamento que Deus operou o milagre de torna-las fecundas:

Sara - “Deus disse a Abraão: A tua mulher Sarai, não mais a chamará de Sarai, mas seu nome é Sara. Eu a abençoarei, e dela te darei um filho; eu a abençoarei, ela se tornará nações, e dela sairão reis de povos  (Gen 17, 9-10). Exegetas explicam que (assim como Abraão e Abrão) Sara e Sarai tem o mesmo significado de “princesa” ou “mãe de príncipes”, daí dizer que “dela sairão reis de povos”. A mudança de nome significa uma vocação divina, um chamado para uma missão sobrenatural.

Rebeca – “Isaac tinha quarenta anos quando se casou com Rebeca, filha de Batuel... Isaac implorou ao Senhor por sua mulher, porque ela era estéril; o Senhor o ouviu e sua mulher Rebeca ficou grávida”  (Gen 25, 20-21).

Raquel – Uma das esposas de Jacó era estéril (Gen 29, 32), tornada fecunda depois: “Então Deus se lembrou de Raquel: ele a ouviu a tornou fecunda” (Gen 30, 22). O que se nota nas narrativas bíblicas das mulheres de Jacó é que havia disputas ciumentas entre Raquel e Lia, e, por causa das gerações de filhos, ambas eram ora punidas por Deus pela esterilidade ora abençoadas pela fecundidade.

A mãe de Sansão – Talvez a única cujo nome não é citado, mas apenas dito que era uma “mulher”, casada com um patriarca chamado Manué, cuja “mulher era estéril e não tinha filhos” (Juízes 13, 2-3). Tanto a ela quanto ao marido o Anjo apareceu algumas vezes até que eles cressem que se tratava de um mensageiro divino a lhes avisar que ela teria um filho; “A mulher deu à luz um filho, ao qual deu o nome de Sansão’ (Juízes 13, 24).

Ana, mãe de Samuel, profeta e juiz de Israel, também estéril, pediu a Deus um filho que servisse no templo, e logo o obteve. Seu marido, Elcana, tinha outra mulher, que era fértil, mas Ana, não. Isso era motivo de humilhações por parte da rival de Ana (I Samuel 1, 7), mas Deus lembrou-se dela e lhe deu um filho (I Sam 1, 20) que lhe deu o nome de Samuel. (I Samuel 2:5) – “Os que tinham muito agora trabalham por comida, mas os que estavam famintos agora não passam fome. A que era estéril deu à luz sete filhos, mas a que tinha muitos filhos ficou sem vigor”.

Eliseu e a sunamita estéril – “Certo dia, Eliseu passava por Sunam e uma mulher rica que lá morava o convidou para uma refeição. Depois, cada vez que passava por ali, ia até lá para comer. Ela disse a seu marido: “Olha, sei que é um santo homem de Deus este que passa sempre por nossa casa.  Façamos para ele, no terraço, um quarto de tijolos, com cama, mesa, cadeira e lâmpada; quando vier à nossa casa, ele se acomodará lá”. Passando um dia por ali, retirou-se ao quarto do terraço e se deitou. Disse a seu servo Giezi: “Chama essa sunamita”. Chamou-a e ela veio à sua presença. Eliseu prosseguiu: “Dize-lhe: Tu nos trataste com todo desvelo. Que podemos fazer por ti? Queres que eu interceda por ti junto ao rei ou junto ao chefe do exército?”  Mas ela respondeu: ”Vivo no meio do meu povo”. Eliseu perguntou: “Então, que eu poderia fazer por ela?” Giezi respondeu: “Ela não tem filhos e seu marido já é idoso”. Disse Eliseu: “Chama-a”. O servo a chamou e ela apareceu na porta. E ele disse: “Daqui a um ano, nesta mesma época, terás um filho nos braços”. Mas ela replicou: “Não, meu senhor, homem de Deus, não enganes tua serva!” E a mulher concebeu e deu à luz um filho na mesma época, no ano seguinte, como Eliseu havia dito.

O menino cresceu. Certo dia, foi ter com o pai junto aos ceifadores e disse a seu pai: “Ai, minha cabeça! Ai, minha cabeça!”. E o pai ordenou a um dos servos: “Leva-o para junto da mãe dele”. Este o tomou e o conduziu à mãe. O menino ficou nos joelhos da mãe até o meio-dia e depois morreu. Ela subiu, colocou o menino sobre o leito do homem de Deus, fechou a porta atrás de si e saiu. Chamou o marido e disse-lhe: “Manda-me um dos servos com uma jumenta: vou depressa à casa do homem de Deus e volto”. Perguntou-lhe ele: “Por que vais ter com ele hoje?”  Não é neomênia nem sábado!” Mas ela respondeu: “Fica em paz”. Mandou selar a jumenta e disse ao servo: “Conduz-me e vai adiante. Não me detenhas pelo caminho, a não ser que eu te ordene”.  Ela partiu e foi ter com o homem de Deus no monte Carmelo. Quando o homem de Deus a viu de longe, disse a Giezi, seu servo: “Lá está aquela sunamita. Corre-lhe ao encontro e pergunta: Estás bem? Tem marido vai bem? Teu filho está bem?”  Ela respondeu: “Bem’. Chegando perto do homem de Deus na montanha, ela agarrou-lhe os pés. Giezi aproximou-se para afastá-la, mas o homem de Deus disse: “Deixa-a, pois tem a alma amargurada e o Senhor mo encobriu e nada me revelou. Ela disse: “Acaso eu pedi um filho a meu senhor? Não te havia pedido que não me enganasses?”

Eliseu disse a Giezi: “Cinge teus rins, toma meu bastão na mão e parte. Se encontrares alguém, não o saúdes, e se alguém te saudar, não lhe respondas! Colocarás meu bastão sobre o rosto do menino”. Mas a mãe do menino disse: “Tão certo como Senhor vive e tu vives, eu não te deixarei!” Então ele se ergueu e a seguiu. Gizei, que os havia precedido, tinha colocado o bastão sobre o rosto do menino, mas ele não disse nada nem reagiu. Então o servo voltou para encontrar-se com Eliseu e informou-lhe: “O menino não despertou”.

Eliseu chegou à casa: lá estava o menino morto e estendido sobre sua própria cama. Ele entrou, fechou a porta atrás deles dois e orou ao Senhor. Depois subiu á cama, deitou-se sobre o menino, pondo a boca sobre a dele, os olhos sobre os dele, as mãos sobre as dele, estendeu-se sobre ele e a carne do menino se aqueceu. Eliseu pôs-se a andar novamente de um lado para outro na casa, depois tornou a subir e se estendeu sobre ele: então o menino espirrou sete vezes e abriu os olhos. Eliseu chamou Giezi e disse-lhe: “Chama a sunamita” Chamou-a e, quando ela chegou perto de Eliseu, este lhe disse: “Toma teu filho”. Ela entrou, lançou-se a seus pés e prostrou-se por terra; depois tomou seu filho e saiu”  (II Reis 4, 8-41).

Observa-se que o profeta é chamado de “homem de Deus”, termo muito usado com todos os profetas daquele tempo. Eliseu costumava ficar no monte Carmelo em retiro com os outros profetas que o seguiam (que eram mais de 100), mas também fazia viagens e incursões na vizinhança para fazer apostolado com a população. Daí haver se hospedado na casa da sunamita. Veja-se também que a família dela era rica e nem por isso o homem de Deus a rejeitou, mas, pelo contrário, prestou-lhe grande assistência espiritual. O fato dela dizer que “vivia no meio do povo” demonstra que não era uma rica egoísta e que assistia a todos de sua sociedade. Do fato, porém, em princípio não se deduz que ele operou o milagre de fazer a mulher ficar fértil, mas sim de ter previsto sua gravidez. Embora não se descarte a idéia de ter ocorrido os dois fatos no mesmo caso. Milagre estupendo, realmente, foi a ressurreição do filho dela.

No Novo Testamento, o caso mais comum é o de Santa Isabel: “Também Isabel, sua parenta, terá um filho na velhice; aquela que diziam ser estéril já está em seu sexto mês de gestação” (Lc 1, 36)

 


terça-feira, 1 de agosto de 2023

O RELATIVISMO E SEUS EFEITOS PSICOLÓGICOS NAS POPULAÇÕES

 


 

Relativismo é uma teoria filosófica criada por Hegel, também chamada de “hegelianismo”, pela qual não há verdades objetivas, tudo é relativo. Baseado nesse pressuposto ele ampliou o sentido da dialética, pelo qual há uma infinita disputa entre tese e antítese sem nunca se chegar a uma conclusão. Quando se afirma alguma coisa é uma tese e sua negação é uma antítese; esta por sua vez é uma tese que gera uma outra antítese, e assim indefinidamente sem nunca se chegar a uma conclusão, a uma verdade absoluta. Tais conceitos confusos sobre a dialética deu lugar ao relativismo, pois, não há verdade dogmática e estável, tudo é relativo.

O relativismo hegeliano pode ser visto apenas no campo das opiniões, pois na opinião pode haver mais dúvida do que certeza. As pessoas emitem opiniões, espécies de sentenças ou juízos pessoais, aceitando ou repudiando aquilo que está sob seu julgamento. Mas, emitir opinião simplesmente não basta para fazer juízo e ter certeza, pois nossa opinião é falha e cheia de amor-próprio. São Tomás de Aquino diz que o homem não deve ter somente opiniões, mas Fé, pois esta é firme e inabalável enquanto nossas opiniões são vulneráveis e cheias de erros. Daí o erro de Descartes e seus seguidores em eleger a dúvida como ponto de partida da certeza. O ponto final de um perfeito juízo deve, pois, ser consequência de nossa Fé, e esta é uma certeza inabalável.

Quem nos dá uma ligeira ideia a respeito do que seja “opinião” é o padre Leonel Franca numa de suas famosas obras:

“Aparentando ao que duvida é o estado de quem “opina”. Aqui o equilíbrio que caracterizava a dúvida é destruído em favor de uma das alternativas. A inteligência adere, pronuncia-se, afirma.[1] Mas as razões, as probabilidades, as verossimilhanças que a inclinam não lhe parecem decisivas e tranquilizadoras. O objeto não se ilumina com toda a sua claridade. Há uma região de penumbra e de sombra. A luz total faria talvez vê-lo do outro modo e determinaria quiçá outra atitude da inteligência. Os argumentos, por mais numerosos e sedutores que pareçam, não ultrapassam os limites do provável, deixam ainda aberta a possibilidade de outros argumentos que viriam mudar o estado da questão. A nota característica da opinião é esta inquietude, esta consciência de que a solução a que se chegou não é definitiva, este receio, não sem fundamento, de que talvez a verdade esteja do outro lado; esta “formido oppositi” de que nos falam os velhos e modernos lógicos.[2]

No caso da dúvida como no da opinião, achamo-nos em face de uma “cogitatio informis”, na expressão de S. Tomás,[3] de um pensamento que não se completou. Os dados intelectuais em jogo não levaram definitivamente à solução final. O espírito ficou suspenso sem possibilidade de uma adesão tranquilizadora.

Eis o que explica o aspecto “afetivo” que acompanha esta diferença de estados intelectuais: segurança, tranquilidade, paz, como corolários da segurança; inquietude, temor, angústia, como repercussões dolorosas da dúvida. Se a incerteza concerne não já um problema científico de alcance puramente especulativo, mas uma questão pessoal que interessa todo o nosso ser e a nossa atividade e em que se jogam os nossos destinos, esta angústia, filha da dúvida, pode atingir em almas grandes a profundidade interior de dilacerações e de torturas indizíveis. Toda a faculdade que se exerce normalmente, segundo as leis de sua natureza, dá uma impressão de prazer e de bem-estar. A dor e o sofrimento são o grito de um órgão que não funciona bem. Feita, por natureza, para a verdade, a ser possuída conscientemente na segurança da certeza, a inteligência move-se, debate-se, sofre enquanto não atinge a convicção profunda própria de sua atividade específica.

A fé não é dúvida, não é opinião; é certeza. No crente nenhuma suspensão de juízo, nenhuma adesão oscilante e tímida, mas a convicção profunda de quem está com a verdade.

Entre as certezas, porém, a fé ocupa um lugar distinto que só lhe podemos assinalar com um exame mais detido dessa atitude intelectual”.[4]

 

Entre a fé e a opinião a diferença é visível[5]

Ainda estamos falando de opinião pessoal. Mas, como fica a opinião pública? Se toda ela é baseada na soma das opiniões individuais, não há firmeza em seus conceitos, não pode haver certezas firmes nela? Evidentemente que a opinião pública necessariamente não deve ser firme e certa, ela pode estar errada ou cheia de dúvidas. O que se diz é que ela deve refletir com exatidão o consenso das opiniões individuais de seus participantes, das pessoas que a formam. É tanto que pode haver duas opiniões públicas diferentes e até divergentes uma da outra: a manifestada pelo verdadeiro povo e a das massas, sendo aquela firme e baseada na chamada “fé pública” e esta última baseada apenas em impulsos momentâneos. A diferença visível falada acima é no que se refere à opinião pessoal

Há, portanto, uma opinião pública volúvel e outra firme e inabalável. Esta última é alicerçada pela Fé de cada indivíduo ao se manifestar no conjunto da sociedade. Há também uma espécie de “Fé Pública”, que é o conjunto das crenças dogmáticas e inabaláveis manifestadas pela sociedade dos fiéis, a Santa Igreja. É ela a expressão viva do Corpo Místico de Cristo.

São Tomás disse, conforme acima, que quem tem opinião não quer dizer que tem Fé, porque a opinião é algo inconsistente, não é uma convicção inabalável como a Fé, que nunca é o parecer ou a opinião pessoal. Mas, ele está se referindo aí à opinião pessoal. A opinião pública é, portanto, diversificada, nunca é a mesma, nunca é unânime numa determinada sociedade, haja vista uma de suas definições que diz ser ela “o conjunto das impressões” de determinado grupo de pessoas. Quer dizer, “impressões” não é certeza. Exceção feita aos que manifestam sua Fé de forma pública, pois aí temos algo firme, uma certeza, sendo manifestada na opinião pública. Podemos dizer que há outra opinião pública, considerada mais legítima, pois não baseada em impressões, mas em raciocínios lógicos e racionais, que não é fruto dos sentidos mas da mente, da razão, do intelecto, ou então, da Fé.

Hoje em dia, com as opiniões oriundas dos impulsos da mídia eletrônica, constata-se o retrato fiel desse tipo de opinião pública volúvel, inconstante e, portanto, falsa. Embora, de certo modo, ela reflita realmente a opinião das pessoas, pelo fato de ser inconsistente, baseada apenas em impressões passageiras, mudará facilmente seus conceitos para outros conforme a leve as impressões do momento.

 

Relativismo ou indiferença?

Mas, aqui vamos ver o relativismo segundo outros parâmetros. Trata-se do modo comportamental com que as pessoas vivem os princípios da Fé e não das opiniões de um ou de outro. O modo como as pessoas negam as verdades eternas dos princípios morais de convivência social e vivem como se os mesmos não existissem. Talvez o termo correto seria “indiferentismo” e não relativismo, haja vista que as pessoas se comportam de forma indiferente com relação às verdades eternas.

Que verdades são estas? Que princípios morais são estes decorrentes de tais verdades?

As principais verdades ignoradas por tal comportamento são aquelas decorrentes da Fé. As pessoas não se dizem ateus ou sem Fé, mas vivem como se ela não existisse, como se de fato não acreditassem em Deus e na doutrina cristã. Como se nota tal comportamento? É na indiferença com que se trata as coisas divinas e religiosas, negligenciando-as, não praticando-as, ou mesmo tratando-as com desprezo. Às vezes não é simplesmente o fato do católico deixar de assistir às Santas Missas, mas menosprezar quem as assiste. No seu dia a dia o mais importante são os problemas corriqueiros, as compras, as comidas, as bebidas, as festas, os passeios, etc. Deus e a Religião fica para depois, ou para nunca. Um exemplo disso é a completa ausência de qualquer símbolo religioso nos locais frequentados pelas multidões de hoje em dia, dando a impressão de que tudo pode estar ali, menos Deus.

Certo religioso (que agora não recordo o nome) fez uma homilia em que dizia que a pessoa nunca se afasta de Deus lhe dando logo as costas. Geralmente a pessoa vai se afastando, se distanciando, de frente para Ele, mas a partir de certa distância não terá nenhum escrúpulo em lhe virar completamente as costas, de tão longe que já chegou d’Ele. O que leva muita gente a se afastar assim de Deus é o relativismo.

Esse relativismo religioso da Fé manifesta-se também dentro de casa, na vida do lar. Não se reza antes e depois do deitar, ou antes e depois das refeições. Reza-se apenas quando há algo terrível acontecendo e se necessita de Deus para ajudar a resolvê-lo, como uma doença grave ou algum acidente. Também não se ensina mais as orações e o catecismo às crianças em casa. Ensinam-se aos inocentes coisas mundanas em profusão, até mesmo imoralidades a palavrões, mas nada que diga respeito à Fé cristã. Aí já não é indiferença ou relativismo, mas ateísmo prático.

 



[1] São Tomás escreveu alguma vez que na opinião não havia assentimento: “dubitans non habet assensum... similiter nec opinans”. De Verit, q. XIV, a I. Cfr. III Sent. dist. 23, q. 2, a 2, sol. 1. Ambas estas obras são trabalho de juventude. Nas posteriores, o santo afirma explicitamente a existência de uma adesão, posto que destituída de firmeza, no espírito de quem opina. Cfr. S. Theol. 2, 2ae q. 1 a 4; q. 2, a. 1.

[2] “A opinião é uma adesão mesclada de dúvida e, por isso, mais ou menos vacilante e inconstante”. E. Boirac, ‘Cours élémentaire de philosophie”, Logique. c. V, Paris, 1900, p. 287. « De ratione opinionis est quod id quod est opinatum, existimetur possibile aliter se habere ». S. Tomás, Summa II, Iiae, q. 1, a. 5, ad 4m.

[3] Questio namque quamdiu probabilibus rationibus sub dubio agitatur, quasi informis est, nondum ad veritatis certidudinem pertingens”. In Boeth, de Trinitate, Proemii explanatio.

[4] “A Psicologia da Fé”, Pe. Leonel Franca, Livraria Agir Editora, 1952, págs. 20/21.

[5] S. Tomás assim se exprime: “É da essência da opinião julgar que a cousa poderia ser diversa enquanto que, na fé, por causa de sua certeza, se julga que a cousa afirmada não pode ser diversa”.  Summa Theol. 2, 2ae q. I,  a 5, ad 4m