A revista “Dr. Plínio” n.
299, de fevereiro de 2023, publica algumas conferências de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre
a psicologia do brasileiro, tema que ele abordou em várias ocasiões. Na capa da
revista está estampado o teor delas: “O Brasil e sua
vocação à santidade”. Alguns observadores dessa nossa mentalidade andaram
notando, inclusive o próprio Dr. Plínio, que a maior parte provém de nossa
origem portuguesa. Alguns cronistas comentam que essa bondade maravilhosa do
povo português começou a tomar corpo no reinado de Dom João I (século XIV),
quando veio morar na corte a princesa inglesa D. Filipa de Lencastre, a qual foi absorvida completamente por nosso povo.
Eis o papel de uma grande dama católica
na formação das elites e, como consequência, na mentalidade de dois povos.
Logo que D. João I consolidou a
monarquia portuguesa (séc. XIV), tratou de realizar o seu casamento, pois o
trono precisava de uma rainha para que o aspecto familiar fosse mais destacado
em seu reinado. O duque de Lencastre, ou Lancaster, era o quarto filho do rei
da Inglaterra, Eduardo III. Nascido em
1340 e batizado com o nome de Jonh of Gaunt, era casado com a princesa
D. Constanza, herdeira do trono de Castela. Dotado de fina educação religiosa,
militar e política, tornou-se um dos maiores aliados de Portugal na época do
Condestável Nun'Álvares Pereira. Em 1387, num grande acordo político entre
Portugal e Inglaterra, é realizado o casamento de D. João I com a filha do
duque de Lencastre, D. Filipa. Os historiadores portugueses são unânimes em
reconhecer que este casamento reforçou os laços de entendimentos e aliança
entre Portugal e Inglaterra, e fez rainha de Portugal e mãe e educadora da mais
extraordinária geração de príncipes que algum dia tivemos, uma mulher excelsa,
que muito havia de influenciar a vida da sociedade portuguesa, ajudando a
encaminhá-la nos caminhos da virtude e do saber.
D. Filipa foi a grande colaboradora do
rei na obra de restauração da sociedade portuguesa. Era necessário formar uma
nobreza nova, uma nova classe de dirigentes, com aqueles que se tinham revelado
portugueses dignos, fiéis, na crise que se passara com a morte do Rei D.
Fernando. Uma parte da nobreza que vinha da primeira dinastia estava
corrompida, nos costumes e nos ideais, e não se dispunha a ajudar D. João na
empresa de abrir novos alicerces à vida nacional. Muitos deles, inclusive,
haviam apoiado à causa contrária ao Mestre de Avis. Dom João I queria, assim,
formar à sua volta uma nova elite, mas com os vassalos que se haviam
distinguido pelos seus serviços e tinham ideais religiosos e patrióticos afins
com o rei e com Dom Nuno Álvares Pereira.
Bondade e virtudes católicas trazidas por herança
Segundo os cronistas, a nova rainha não
tinha muita beleza física, mas era verdadeiramente uma digna filha de Branca de
Lencastre - mulher meiga e encantadora.
D. Filipa possuía, conforme o cronista Fernão Lopes, "todas as bondades
que à mulher de alto valor pertencem".
Como as mulheres piedosas de seu tempo,
D. Filipa entregava-se a infindáveis práticas religiosas. Recitava todas as
manhãs as Horas Canônicas, segundo o rito da catedral de Salisbury. Às
Sexta-feira não falava a ninguém sem ter antes recitado todo o saltério.
Jejuava freqüentemente e lia as Sagradas Escrituras em "convenientes
tempos". A piedade de D. Filipa não era, porém, formalismo vazio:
acompanhava-a uma bondade prática e luminosa que aquecia e alegrava todos os
que a rodeavam. Não fazia coisa alguma com rancor nem ódio, pois todas as suas
obras eram feitas com amor de Deus e do próximo. Governava a sua casa com uma
dignidade afável, sem nada de altivez. Todos a tinham como uma pessoa simples e
amável, muito dedicada ao trabalho mas sem deixar também de divertir-se com os
jogos das suas jovens damas de honra.
Seu espírito prático, desprendido e
dedicado à Causa da Religião e do Pátria, a fez adaptar-se rapidamente ao novo
país. Oriunda da corte inglesa, vindo morar num país completamente diferente,
tanto no que se refere à língua quanto aos costumes, inserida numa corte pouca
afeta ao luxo e à riqueza, de tal forma acostumou-se com tudo que logo
conquistou os corações de seus súditos, e nunca foi considerada pelos
portugueses como uma "rainha estrangeira".
Como todas as jovens bem educadas de
seu tempo, D. Filipa entrou para o estado de casada perfeitamente preparada
para cumprir rigorosamente todos os seus deveres. O próprio rei ficou encantado
com a esposa, admirando-lhe todas as virtudes. Logo nasceu entre ambos grande e
fervoroso afeto. Entregou-se o rei totalmente à sua leal esposa e se deixou
levar por sua piedade fervorosa, que terminou por fazer dele um marido
exemplar.
Tudo mudava na corte. Tudo caminhava
para uma regeneração moral de toda a sociedade. E o exemplo vinha de cima, dos
reis. Desaparecera todo o relaxamento e corrupção que antes imperava. Em lugar
do efeminado Fernando havia o enérgico João; em vez da escandalosa Leonor,
havia agora uma rainha exemplar, sem mácula, enquanto os outros nobres eram
eclipsados pela figura ímpar do Condestável Nun'Álvares Pereira.
Família católica autêntica, uma sociedade de admiração mútua
Era comum entre príncipes de certas
coroas medievais as contendas, que levavam sempre a rebeliões entre si e a
golpes contra irmãos e os próprios pais. Em Portugal e Castela houve vários
casos. Na casa de D. Filipa e D. João, a convivência era realmente original.
Longe de formarem um grupo de rivais, os jovens príncipes constituíam uma
sociedade de admiração mútua. Não só isso, adoravam-se uns aos outros, nunca
tendo nascido entre eles qualquer vestígio de ciúmes ou invejas.
Muitos diziam que o rei era afortunado
em possuir tais filhos. Pode ler-se, observa um cronista, "de um rei que
tinha um bom filho obediente, mas ter cinco filhos - todos obedientes - parecia
bom de mais para ser verdade!".
A obediência era a virtude mais
admirada por aquela geração. No entanto, os filhos eram tratados com tanta
brandura pelo pai, que um deles afirmou nunca haverem recebido dele qualquer
ferimento, açoite, ou palavra rude. A obediência dos filhos era, pois, oriunda
do amor paterno muito mais do que pelo temor ou reverência filial. Os filhos de D. João foram criados juntos
numa atmosfera glorificada pela piedade mística de sua mãe, fortalecida pelo
pai soldado e amigos guerreiros, e tornada intelectual pela sua própria paixão
pelos livros.
O mais velho dos filhos, D. Duarte, era
ponderado e erudito, talvez mais talhado para a vida acadêmica do que para o
trono. Foi o herdeiro e sucessor. Dom Henrique, conhecido como "O
Navegador", era o mais prometedor dos filhos por sua grande capacidade e
discernimento. Tal foi o seu gigantismo que se destacou de todos os seus
irmãos, que no entanto foram brilhantes. Dom Pedro parece ter sido o espírito
orientador, mais prático do que Dom Duarte e mais prendado. Foi mais estadista
do que o irmão mais velho. Os mais novos, Dom Fernando morreu mártir entre os
mouros, e D. Isabel casou-se com o duque de Borgonha.
Dar e ouvir conselhos, uma prática de virtudes
É espantoso como as pessoas daquele
tempo gostavam de exortações. Ser aconselhado e advertido não nos dá nenhum
prazer, mas naqueles tempos uma pessoa séria não pensava assim. Um exemplo eram
as exortações que faziam entre si Dom Pedro e Dom Duarte. A quantidade de
sábios conselhos que estes dois irmãos prodigalizavam um ao outro seria de
molde a causar desuniões se ocorressem no mundo moderno. Mas este hábito não
existe somente entre estes dois irmãos, mas entre pais e filhos, e entre os
outros irmãos uns com os outros.
Como único temor o pecado
O filho mais novo de D. Filipa,
Fernando, quase lhe custou a vida, deu trabalho para nascer, e por algum tempo
mostrou poucas possibilidades de viver. No entanto, sobreviveu e veio a se
tornar num jovem sossegado e meigo, cuja "conversação angélica" todos
apreciavam. Não tendo a vitalidade dos irmãos, não tinha gosto pelos exercícios
violentos com as armas, vivia para a Religião e para os estudos. Tinha uma
"mui grande e nobre livraria" e a sua capela estava belamente
ordenada, "segundo os costumes de Salisbury". Sua divisa era "Le
bien me plait". Estes infantes meio ingleses tinham suas divisas escritas
em francês, língua da sociedade culta e aristocrática da época.
Dom Duarte e Dom Pedro foram os
companheiros de infância de Dom Henrique, pois tinham quase a mesma idade.
Formavam um trio harmonioso, e a intimidade que ligava os dois mais velhos
parece que não melindrava o mais novo. Dom Henrique era mais reservado e não
confiava sua alma a ninguém. Dom Duarte chegou até a publicar um livro,
"Leal Conselheiro", onde falava de suas confidências e de sua
família. Dom Henrique não se prestou a escrever nada sobre si mesmo, todos seus
segredos foram levados para o túmulo.
Apesar da disparidade de temperamento,
todos os irmãos tinham cada um ânimo de soldado e nada temiam. Sim, temiam uma
única coisa, segundo nos revela o cronista Zurara, era o pecado. Todos haviam
aprendido com a mãe a cumprir todos os mandamentos da Santa Madre Igreja e
abraçavam um misticismo religioso profundo e sincero. Além das mesmas práticas
já aprendidas no convívio com a mãe, das rezas diárias e da freqüência aos
sacramentos e às Missas, jejuavam costumeiramente e carregavam consigo
dolorosos cilícios, com o que venciam galhardamente as tentações.
Afastai os nossos filhos dos jogos e os metais em trabalhos
e perigos!
D. João I preparava o exército para a
primeira investida militar fora do país: iam invadir Ceuta. Nem o rei nem a
rainha se manifestavam sobre a presença dos filhos no exército. Mas eles o
desejavam. Primeiramente procuraram a mãe, para junto dela conseguir
anuência. Os astutos jovens não disseram
a ela que o pai já sabia de seus planos, mas pediram-lhe graciosamente que se
servisse de sua influência junto do rei para que lhes fosse garantido a
autorização para embarcar na empresa guerreira.
Queriam ser armados cavaleiros com honras militares, como era comum entre
os medievais.
D. Filipa recebeu-os muito bem, pois
compreendia que seus filhos precisavam conquistar as esporas de ouro com valor
e heroísmo. Quando eles acabaram de
falar, ela lhes respondeu: "Bem, é verdade que vos tenho assim aquele amor
que qualquer mãe deve ter a seus filhos. Porém, tratando-se de semelhantes feitos
eu nunca vos poderia privar vossas boas vontades, antes vos ajudarei a elas com
todas minhas forças e poder". E mandou perguntar logo a Dom João se estava
desocupado e a podia receber naquele momento.
Na presença do rei, disse:
"Senhor, eu vos quero pedir uma coisa que é muito contrária para requerer
mães para filhos, porque comumente as mães pedem aos pais que afastem seus
filhos dos trabalhos e perigos, tendo sempre grande receio de quaisquer danos
que lhe possam acontecer. Eu tenho intenção de vos pedir que os afaste dos
jogos e das folganças e os metais em trabalhos e perigos. Vossos filhos e meus
vieram hoje a mim e me contaram todo o feito que tinhas passado acerca da
cidade de Ceuta, pediam que me aprouvesse a vos falar disso, e vo-lo requerer
da sua parte e da minha. Eu, Senhor, não queria por nenhuma forma, pois Deus
por sua graça quis lhes dar disposição do corpo e do entendimento, que eles por
seu trabalho falecessem de conseguir os feitos daqueles..."
O rei atendeu benignamente ao pedido.
Mas disse para a rainha que ele também tinha um pedido a fazer: era que ela era
quem deveria dar a autorização para que eles fossem para a guerra, nisto
incluindo o próprio rei. D. Filipa ficou
aterrada. Não esperava que o rei, seu esposo, lhe fizesse tal pedido. Mas como
se tratava de "serviço que seria para Deus fazer o seu santo nome ser
adorado entre infiéis" aprovou o pedido, mesmo sabendo que pai e filhos se
exporiam a perigo de vida.,
Façais vossos filhos cavaleiros com espadas que lhes darei
com minha bênção
Quando os preparativos para a partida
se iniciaram, a rainha orava cotidianamente na igreja de Sacavém. Ajoelhava-se
todos os dias, de manhã cedo até o meio-dia, e depois voltava à tarde e rezava
até altas horas da noite. Sentia uma grande dor em ver partir para a guerra seu
esposo junto com os filhos, embora estivesse plenamente de acordo.
Há muitos anos que D. Filipa não gozava
de boa saúde. Sabendo disto, Dom João evitava lhe falar da viagem, de tal forma
que ela imaginava já que haviam desistido da idéia. Um dia, porém, o rei chega
em sua presença e confirma a data da partida. A rainha sente profundamente. De
tal forma sentiu o choque que ficou
abalada, provocando o choro de suas aias.
Dirigindo-se para elas, disse: "Amigas, não tendes porque chorar,
porque o choro em tais casos não é coisa que aproveite, antes vos rogo que
usemos do que nos é propício, isto é, encomendarmo-nos a Deus este feito muito
afincadamente fazendo tais obras e bens, porque merecemos ser ouvidas, e isto é
melhor que derramamento de lágrimas..."
Dirigindo-se ao rei, seu esposo, diz:
"Eu vos peço por mercê... que vos façais vossos filhos cavaleiros na minha
presença, ao tempo de vosso embarque com largas espadas que eu lhes darei com
minha bênção". Dom João prometeu alegremente, e D. Filipa encontrou algum
alívio em mandar vir de Lisboa as três mais belas espadas que lá se pudessem
fazer.
Depois, entregou-se inteiramente às
orações e ao jejum. No mesmo dia
D. Fililpa estava tranqüila e
resignada, como manda o verdadeiro espírito cristão. Não tinha esperanças de
melhora, sabia que estava chegando o seu fim. Virando-se para os filhos, diz:
"Deus sabe o tamanho desejo que tive de ver a hora em que vós fostes
armados cavaleiros, e para isso mandei fazer e guarnecer três espadas, e pois a
Deus apraz que eu neste mundo não veja tamanho prazer, ele seja louvado por
tudo". Indaga logo depois: "As espadas já estão prontas?". Como
a resposta foi negativa, disse que dessem ordens em Lisboa para que as acabassem
logo e as trouxessem.
Em seguida, a moribunda pegou uma cruz
de madeira e a partiu em quatro partes, entregando cada uma a seu marido e aos
três filhos ali presentes. No dia seguinte chegaram as três espadas. Deu a
maior a Dom Duarte, dizendo: "Meu filho, porque Deus vos quis escolher
entre vossos irmãos para serdes o herdeiro destes reinos... eu vos dou esta
espada... que vos seja espada de justiça para regerdes os grandes e os pequenos
destes reinos depois de a Deus aprouver que sejam em vosso poder, por
falecimento do rei vosso pai, e vos encomendo seus povos, e vos rogo toda
fortaleza sejais sempre sua defesa não consentindo que lhes seja feito nenhum
agravo, mas a todos cumprimento de justiça. E vedes, filho, quando digo
justiça, justiça com piedade, pois a justiça que em alguma parte não é piedosa
é chamada crueldade".
Dom Duarte ajoelhou-se e beijou a mão
da mãe, prometendo lembrar-se de suas palavras durante toda a vida. Em seguida,
a mãe chama os outros dois filhos, D. Pedro e D. Henrique, entregando a cada um
sua espada, juntamente com sua bênção: Eu vos dou esta espada com a minha
bênção com a qual vos recomendo e rogo que queirais ser cavaleiro.
D. Filipa nunca perdeu a lucidez
enquanto a doença seguia o seu curso, e teve muito mais o que dizer aos filhos
antes de os deixar. Com a aproximação de sua morte, Dom João começou a se
inquietar e os filhos pediram que ele não assistisse o desenlace fatal. Os
filhos lamentavam que ela morresse naquele momento, quando se preparavam para
uma importante batalha, aquilo que ela mesmo tanto desejara. Ao que D. Filipa
respondeu: "Eu subirei ao alto, e do alto vos verei, e a minha doença não
turvará a vossa viagem. Partireis pela festa de Santiago".
Dom João ainda insistiu em querer
assistir os últimos momentos de sua esposa, mas foi instado pelos seus
conselheiros e por Dom Duarte que saísse.
Despediu-se assim ele com o coração partido e afastou-se a cavalo. D.
Filipa ficou com seus filhos e na presença deles morreu tranqüilamente com um
sorriso no rosto. A alma de uma santa mãe subia aos céus e deixava aqui na
terra os frutos de sua vida: a gloriosa epopéia de seus filhos que abismaram o
mundo. Era o dia 19 de julho de 1415.
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