"Teresa, — diz o
comentário de Dom Guéranger —, sofreu
toda espécie de privações. Mas sofreu uma privação pior do que as privações
humanas. Um dia, Deus mesmo pareceu faltar-lhe. Como antes dela São Felipe
Benício, como depois dela São José Calazans e Santo Afonso Ligório, ela
conheceu a provação de se ver condenada, rejeitada, ela e suas filhas e seus
filhos, em nome e pela autoridade do Vigário do Esposo. Era um desses dias
preditos desde há muito onde – agora da citação Apocalipse – foi dado à "besta" de fazer
guerra aos santos e de os vencer. O espaço nos falta para contar esses
incidentes dolorosos. Para que contá-los? A "besta" não tem nesses
casos senão um modo de proceder, que ela repete no décimo sexto século, no
décimo sétimo, no décimo oitavo século e sempre — [ele] escreveu no
décimo nono, [e] nós já podemos falar no vigésimo.
Como também a "besta" tem sempre o mesmo
objetivo, Deus permitindo-o, não tem
senão um objetivo: o de conduzir os
seus a este alto grau de união crucificante onde aquele que quis ser o primeiro
a saborear a amargura desta borra de vinho pôde dizer dolorosamente,
mais do que ninguém: "Meu Deus, meu Deus porque Vós me
abandonastes?".
Realmente, é com
palavras muito eloqüentes que Dom Guéranger conta aqui o martírio de Santa
Teresa.
Os senhores sabem
que ela era carmelita calçada, quer dizer, do ramo de carmelita de que nós
somos terceiros, e quis fazer uma reforma da Ordem do Carmo, reforma esta que
tinha em vista, precisamente, a restauração de um espírito de mortificação e de
penitência que, há muitos séculos, se tinha acabado. Papas anteriores,
sucessivamente, vinham concedendo mitigações e mitigações [dando em] que os
conventos da Ordem do Carmo estavam transformados em verdadeiras pensões.
As carmelitas
passavam fora o tempo que queriam, voltavam quando entendiam. No Carmo, durante
o dia, no claustro se ouviam canções, dessas canções tocadas com guitarra, que
eram as canções amorosas, muito freqüentes na Espanha daquele tempo. As monjas
recebiam visitas em quantidade, a comida era regalada, a obediência era nula; do
espírito verdadeiramente de Santo Elias não restava mais nada.
Então, depois de
anos de relaxamento como religiosa ela resolveu, tocada pela graça, emendar-se
e resolveu então iniciar a Reforma Teresiana, constituindo mosteiros carmelitas
verdadeiramente observantes e austeros. Essa obra, que deveria encontrar o entusiasmo universal, encontrou uma oposição
tremenda. Todo o Inferno moveu-se contra ela, o que quer dizer que parte
da terra se moveu também. Porque grandíssima parte da terra está sob a direção
do Inferno. E entre outros elementos que contra ela se moveram, foram as
carmelitas calçadas, irmãs dela, os carmelitas calçados, irmãos dela, e além
das carmelitas e dos carmelitas, se moveram também outras autoridades
eclesiásticas e, por fim, até Roma.
E houve um
determinado momento — quando já estava muito adiantada a obra da Reforma
Teresiana, já estavam fundados os Carmelitas Descalços, ela tinha muitos
conventos —, em que chegou um decreto de Roma, emanado através do Padre Geral,
dando ordem para dissolver a reforma dela e obrigar todas as religiosas dela a
voltarem para as casas relaxadas. Era uma vitória do relaxamento contra a
observância, era uma vitória da moleza contra o zelo, era uma vitória, para
falarmos em termo moderno, era uma vitória da democracia-cristã sobre o
ultramontanismo. Isto foi uma coisa tremenda. E foi um dos piores dias da vida
dela. Ela rezou tremendamente e escreveu cartas para toda a Espanha pedindo
para agir.
E entre estas
cartas, foi uma carta para o Rei Felipe II, que ela chamava "nuestro santo Rei Felipe".
E Felipe II mandou chamar o Núncio Apostólico para perguntar o que era aquilo.
Felipe II, personagem sumamente intimidador, ele metia tanto medo — é uma
glória isso, uma das maiores glórias de um varão é meter medo, o Dale Carnegie
acha que é ser simpático, eu acho precisamente o contrário —, que em geral,
quando as pessoas entravam na saleta do Escorial onde ele trabalhava, ele era
obrigado a dizer "sosegaos", porque a pessoa ficava toda
assustada.
Contam os
memorialistas, os senhores vão ficar muito surpresos com o que eu vou dizer,
mas são as verdades implacáveis da História, que o Núncio também teve medo e
concordou com tudo quanto Felipe II queria. E com isso, Felipe II evitou a
derrocada da Ordem de Santa Teresa.
Esse encontro de
dois grandes personagens, Felipe II e Santa Teresa, Santa Teresa apelando a
Felipe II — como um "heresia branca" ficaria "nodoso" com
isso — apelar para o Rei, para o Rei intimidar o Núncio Apostólico! A
"heresia branca", nessa hora, coisa pavorosa. Então Felipe II, que
chama o Núncio e que detém o destroçamento da Ordem do Carmo, dando origem
portanto a que se desenvolvesse um dos fatores mais ativos da Contra-Reforma e
que viesse daí todo o império de glórias para a Igreja, que veio com a
existência do Carmo reformado — e basta falar o nome de Santa Teresinha do
Menino Jesus para não ter que dizer mais nada. Tudo isto apostolado de Felipe
II, nos faz ver esses encontros de pessoas extraordinárias da História da
Igreja e que dão impressão de constelações no céu do firmamento da Igreja.
E eu não posso
deixar de fazer este comentário: costumam historiadores profanos,
revolucionários, sem nenhuma forma de imparcialidade, tratar da Invencível
Armada como sendo o fracasso de Felipe II. Quando a Invencível Armada foi
vencida, Felipe II teve um comentário só. Esse comentário é sublime e os historiadores
revolucionários não compreendem esse comentário. Ele, para dizer que não tinha
sido derrotado, só teve esta frase: "Eu mandei minha esquadra combater
homens, ela foi derrotada por elementos". Quer dizer, não houve
derrota. Foi uma coisa que Deus permitiu
para castigo da Inglaterra. Mas foi muito bem feita.
Ele tinha essas
frases extraordinárias. Quando vieram anunciar-lhe a Batalha de Lepanto ele estava rezando. Contaram-lhe a coisa toda e
ele, para indicar o domínio, a distância psíquica que guardava, ele teve esse
comentário apenas: "que grande perigo correu Don Juan". Mais
nada. Quer dizer, soberania sobre si mesmo, uma coisa fabulosa! É um grande
homem. Bem, e Santa Teresa dizia mais,
dizia que ele era santo. Eu sei que isto não é uma canonização, mas era o que ela dizia. Ninguém pode
me proibir de dizer isto também.
Eu gostaria muito
de ter um busto de Felipe II que eu vi numa escada do Escorial, escada não, no
pátio. Eu nunca vi nada que parecesse, que tivesse mais o "phisique
du rôle" de Felipe II. Um busto de mármore, eu vou até contar uma
fraqueza que eu tive. Um busto de mármore muito bem tomado, desta altura assim,
com a cabeça de Felipe II, mas como não se vê em nenhuma fotografia nem nada. É
uma dessas cabeças, uma das glórias de um homem — eu posso dizer por que eu não
tenho isso — uma das glórias de um homem é ter uma forma de cabeça expressiva.
Há homens cuja
forma de cabeça já diz tudo. Assim era Felipe II. Aquilo era honestidade e
obstinação. Depois, uma cara com olhar olhando assim, parecendo dizer "sosegaos"
nos lábios, enquanto o olhar tirava todo o sossego. Eu tive a fraqueza, eu sei
que em nenhuma museu do mundo se vende nada, eu tive a fraqueza de perguntar
qual era o preço desse busto. O guardião: "Não senhor". Uma miniatura
de Felipe II, é melhor não brigar com ele, e baixei imediatamente as minhas
exigências, as minhas esperanças.
Bom, enfim, em
suma, aí está, de passagem, a figura de Felipe II e é bom enquadrá-la ou
fazê-la ver na luz de Santa Teresa de Jesus.
Eu falava da Invencível
Armada. Então, apresentam-nos como um rei derrotado. Um rei que, simplesmente, tivesse evitado que a reforma teresiana fosse
destruída, já seria um rei vencedor para todos os séculos, simplesmente
por este fato. Porque isso vale muito mais do que dominar a Inglaterra. E ter
uma Ordem de contemplativos verdadeiramente penitentes, que rezem
verdadeiramente e que são pára-raios de Deus para evitar os castigos que caem
na terra, isto vale muito mais do que a Invencível Armada.
Alguém me põe aqui
a poesia que exprime tão bem a alma de Santa Teresa de Jesus — foi a sessão de
documentação histórica — e que é aquela famosa poesia dela: Soneto a Cristo Crucificado. Eu
não ouso ler isto aqui porque temos argentinos presentes e minha pronúncia é
para além de infame. Quem sabe se um dos argentinos pode ler isto...
"No me
mueve, mi Dios, para querer-te
el Cielo que me
tienes prometido;
Ni me mueve el
Infierno tan temido
para dejar por eso
de ofenderte.
¡Tú me mueves
Señor!, muéveme el verte
Clavado en una Cruz
y escarnecido;
Muéveme ver tu
cuerpo tan herido;
Muévenme tus
afrentas y tu muerte.
Muéveme, en fin, tu
Amor y en tal manera
que aunque no
hubiera Cielo, yo te amara,
y aunque no hubiera
Infierno, te temiera.
No me tienes que
dar porque te quiera,
pues aunque lo que
espero no esperara,
lo mismo que te
quiero te quisiera."
Eu acho que os
senhores todos entenderam, é uma verdadeira maravilha. Eu gostaria de acentuar
a dinâmica do soneto. É um soneto anti espírito democracia-cristã e
anti-ecumênico a mais não poder. Porque é um soneto que começa com um requinte,
começa dizendo uma coisa que espanta e que caminha depois de espanto em espanto
até o sumo do espanto, deixando perplexo quem não tem espírito sobrenatural; o
que é uma das belezas do espírito espanhol.
Os senhores vejam,
eu comento em português a coisa assim: "Não me move meu Deus para
querer-te o Céu que me tens prometido, não me move o Inferno tão temido para
deixar por isso de ofender-te." O bobo que lê isso diz assim: "Mas
como? Eu exatamente tenho medo de ofender-te por causa do Inferno, eu te amo
por causa do Céu". E este soneto começa
a dizer que não é isso que me move. Quer dizer, já é uma afronta ao espírito tímido, vulgar, ordinário.
Já começa vencê-lo.
Depois continua:
"Tu me moves senhor, move-me o ver-te cravado na Cruz e escarnecido".
Quer dizer, esse soneto é o
esbofeteamento do egoísta. Para o tipo egoísta, diz: "Bom, o que move?
A mim, para amar-te chagado, escarnecido? Então eu não amo a nada. Eu não te
amo por vantagem minha? Eu tenho que te amar neste estado de humilhação?"
É uma segunda afronta, mas é uma segunda vitória do amor, é um segundo hino de
adoração.
Depois continua:
"Move-me ver teu corpo tão ferido, move-me tuas afrontas e tua
morte". Acaba então falando da morte. É o ferido, é o machucado, é o
arruinado, é o morto... Eu não faço questão de ouro, não faço questão de prata,
não faço questão de glória, eu não faço questão de nada, vou dizer mais: nem do
Céu eu faço questão, nem de Inferno como
elemento determinante único do meu amor, ou como elemento principal do meu
amor. Como elemento colateral sim, como elemento principal não. Principal para amar é aquilo de que todos os
homens têm horror: escárnio, feridas, sangue e morte. E isso que eu amo-te.
Os senhores estão
vendo como vai subindo e o paradoxo
como vai ganhando altura. E toda
a audácia da alma cristã, da verdadeira alma católica, como se faz sentir aí.
Ele continua, ela continua (a gente diz "ele" subconscientemente, tão
másculo é isso): "Move-me por fim teu amor e de tal maneira que ainda que
não houvesse Céu eu te amaria e ainda que não houvesse Inferno eu te
temeria". Isso é magnífico, é uma
espécie de réplica, confirma, é um arrebite no paradoxo inicial. A gente
vê que a pessoa fica assim meio tonta e diz: "Bem, está bom, então eu fico
sabendo". "Ainda que não houvesse Céu eu te amaria, ainda que não
houvesse Inferno eu te temeria". E isto por causa das tuas chagas, etc.,
etc. É uma beleza como audácia, não
é isto?
"Não me tens
que dar para que eu te queira, pois ainda que o que eu espero eu não esperasse,
o mesmo que eu te quero eu te quereria". Isso é o ponto final, diz o
último não é? Pode dar-me, eu aceito, eu espero teus dons, eu os quero mas,
ainda que não desses, eu te quereria. Quer dizer, o amor puro na sua manifestação mais desinteressada, mais grandiosa, mais
cavalheiresca, enfim, mais sobrenatural e mais admirável. A gente sente
aí a alma católica fervendo, tão diferente desse ecumenismo aguado, dessas
concessões, desse "amor ao bom senso".
A gente só ama verdadeiramente uma Doutrina quando a gente ama todos os
paradoxos a que esta doutrina pode se prestar. A gente ama as formulações mais
excessivas e mais estridentes dessa doutrina. E a gente as ama mais do que
todas as outras. É assim que a gente ama qualquer coisa. E não é com essa
espécie de endeusamento de um "bom senso" assim mais ou menos de
encomenda.
Agora, é bom nesta
hora triste da Igreja que nós estamos atravessando, considerarmos que estas
reflexões, estas palavras se aplicam também à Santa Igreja Católica. A Santa Igreja Católica está chagada, a Santa
Igreja Católica está ferida, a Santa Igreja Católica está crucificada e
Ela só não morrerá porque Ela é imortal. Porque todas as razões de morte nesse
momento coincidem n’Ela. E, então, tomando o Corpo Místico de Cristo, que é um
outro Jesus Cristo, nós podemos dizer também para a Igreja Católica: "Não me move ó Santa Igreja para querer-te o
Céu que tu me prometeste, nem me move o Inferno tão temido para deixar por isto
de ofender-te". Realmente, à Santa Igreja Católica nós não devemos
ofender nem é por amor ao Céu, nem por medo do Inferno, mas por um amor gratuito, filial, tão amoroso que
tem fibras de adoração pelo meio, à Santa Igreja Católica, como instituição.
Depois continua:
"Tu me moves ó Santa Igreja Católica, move-me o ver-te cravada em uma cruz
e escarnecida. Move-me ver teu corpo tão ferido, move-me tuas afrontas e tua
aparente morte. Move-me por fim o teu amor e de tal maneira que — e isto é bem
verdade nós em relação a Igreja Católica — ainda que não houvesse Céu nós amaríamos a
Santa Igreja Católica, ainda que não houvesse Inferno nós temeríamos. Não me
tens que dar para que eu te queira, pois ainda que o que eu espero não
esperasse, do mesmo modo ó Santa Igreja eu te quereria". São esses os
sentimentos em relação à Santa Igreja que nós devemos ter nos dias tristes.
(Plínio Corrêa de Oliveira - "Santo do Dia", 15 outubro de
1965)
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