Fazer
juízo é um ato comum dos homens, e todos nós o fazemos cotidianamente sem mesmo
o perceber. E a maioria das pessoas tem o costume de fazer julgamentos
apressados, inclusive considerando apenas a questão da culpabilidade do próximo
ou de si mesmo perante algum fato. Quebrou-se algum objeto dentro de casa,
surge logo a questão: de quem foi a culpa? Como se o fator culpa fosse o mais
importante. Aqui entra um fator muito importante, e que os santos levam em consideração
para sua própria perfeição: de quem quer que seja a culpa, o primordial não é
isso, mas, sim, que valores estão em jogo quando ocorre esse tipo de coisa, se
o do objeto ou se o apego ao mesmo. Quando alguém acusava algum santo (Santa
Teresinha do Menino Jesus é um exemplo deste procedimento) de fatos assim
corriqueiros, geralmente eles não se desculpavam, julgando que bem poderiam
realmente ter cometido aquilo, e, neste ato, estão implicitamente fazendo um
justo juízo de si mesmos.
O
ato de julgar é, portanto, muito importante em nossa perfeição. Vejamos o que
diz São Tomás de Aquino sobre a licitude do ato de julgar:
“O juízo é justo
na medida em que é um ato de justiça. Ora, como do sobredito resulta, três
condições se exigem para que um juízo
seja um ato de justiça: primeiro, que proceda de uma inclinação justa; segundo,
que proceda da autoridade do chefe; terceiro, que seja proferida pela razão
reta da prudência. A falta de qualquer delas torna o juízo vicioso e ilícito. –
De um modo quando vai contra a retidão da justiça. E, então, o juízo se chama
“pervertido” ou “ injusto”. – De outro modo, quando julgamos daquilo para o que
não temos autoridade. E, então, o juízo se chama “usurpado”. – De terceiro
modo, quando falta a certeza da razão; assim, quando julgamos do que é duvidoso
ou oculto, levados por leves conjecturas. E, então, chama-se o juízo
“suspeitoso” ou “temerário”.
DONDE A RESPOSTA
À PRIMEIRA PERGUNTA – O Senhor, no lugar citado, proíbe o juízo temerário que
incide sobre a intenção do coração ou sobre outras coisas incertas, como diz
Agostinho – Ou proíbe, com as palavras citadas, julgar das cousas divinas, as
quais, sendo-nos superiores, não devemos julgá-las, mas simplesmente crê-las,
como diz Hilário. – Ou proíbe o juízo não procedente da benevolência, mas, do
espírito amargo, como diz Crisóstomo.
RESPOSTA À
SEGUNDA – O juiz é constituído ministro de Deus; donde o dizer a Escritura:
“”Julgai o que for justo”; e depois acrescenta: “é o juízo de Deus”.
RESPOSTA À
TERCEIRA – Os réus de pecados graves não devem julgar os que também o são dos
mesmos ou de pecados menores, como diz Crisóstomo àquilo do Evangelho: “Não
queirais julgar”. O que sobretudo se deve entender dos pecados públicos; porque
então o nosso juízo gera o escândalo nos corações dos outros. Se, porém, não
forem públicos, mas ocultos, e, por dever, tivermos que dar o nosso juízo,
podemos acusar ou julgar com humildade e temor. Por isso, diz Agostinho: “Se
nos encontrarmos no mesmo vício que outrem, gemamos com ele e o incitemos a
tornar-se melhor, esforçando-nos também nós para consegui-lo, Nem contudo, por
isso, ao julgar os outros, nós nos condenamos, por atrairmos sobre nós um novo
motivo de condenação; mas, ao condenar a outrem, mostremo-nos merecedores da
mesma condenação, por um pecado igual ou semelhante”..[1]
A dificuldade que sentimos em exercer um julgamento
sobre o próximo é por causa da semelhança de situação: trata-se de seres feitos
da mesma carne, mesmo espírito, com vida terrena compatível entre si, e por
causa disso não passível, em sua essência, de exercer juízo sobre os outros. No
entanto, tal juízo é necessário para que possamos nos exercitar na regência
mútua e atingirmos a perfeição para a qual fomos criados.
Exemplo
de como julgar o próximo
“Jesus disse a seus
discípulos: Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em
particular, à sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão. Se
ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que
toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três
testemunhas. Se ele não vos der ouvido, dize-o à Igreja. Se nem mesmo
à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador
público. Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será
ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no
céu. De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na
terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será
concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles”. (Mt 18,15-20)
Nosso Senhor, nessa passagem do Evangelho, está orientando o
fiel de como deve julgar o próximo. O primeiro passo, nesse caso quando alguém
“peca contra ti”, isto é, não se trata de um pecado diretamente contra Deus,
mas contra o próximo, Ele orienta repreender o faltoso “a sós”, sem a presença
de estranhos. No entanto, caso o mesmo não se corrija, a orientação é chamar
uma ou duas testemunhas, a fim de que a questão seja decidida “sob a palavra de
duas ou três testemunhas”. Nesse caso, a própria pessoa ofendida é tida como
testemunha do caso, a se juntar às outras chamadas para exercer o juízo. E caso
o faltoso, mesmo assim, continue em seu erro, deve receber um julgamento da
comunidade, isto é, da Igreja, onde sofrerá o juízo de um juiz público e ter
uma condenação mais forte, podendo ser considerado como pagão ou pecador
público. O que vem depois, ao concluir afirmando que “onde dois ou três
estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles”, confirma que
aquele julgamento exercido sobre o próximo é aprovado por Deus, haja vista que
já houve consenso entre os fieis.
O julgamento da
pecadora pública
Trata-se do episódio mais característico
desta prerrogativa de julgar que afeta todos os homens, alguns por iniciativa
própria e outros por causa da lei. Refiro-me ao fato narrado no Evangelho de
São João 8.1-11, quando os fariseus e saduceus, para tentar Jesus Cristo,
levaram à sua presença uma mulher flagrada em pecado de adultério e sujeita às
penas da lei que, no caso, era castigo de morte por lapidação.
Quando Jesus Cristo diz que aquele que não
tiver nenhum daqueles pecados que atire a primeira pedra está com isso
confirmando que aquele julgamento seria justo e a punição legítima, desde que
os executores fossem pessoas isentas da mesma culpa. Vamos supor que algum
daqueles homens fosse realmente puro, algum Jeremias ou coisa semelhante (é
claro que, nesse caso, não iria tentar o Mestre), poderia tranquilamente
apedrejar a mulher que não estaria cometendo nenhum ato contrário à justiça. Estaria
até cumprindo o que Ele mesmo mandou.
Sabia, porém, Jesus, que todos ali eram
pecadores empedernidos. Alguns de seus Apóstolos deveriam estar presenciando a cena,
seriam puros naquele tipo de pecado, mas não foram instados a se manifestar. Jesus Cristo
dirigiu-se apenas aos que queriam executar a sentença ou pedir que o Mestre
tomasse uma atitude para fazê-Lo ir de encontro ao que pregava que era o perdão
aos pecadores.
E ao perdoar a mulher, dizendo-lhe que se
ninguém a condenava Ele também não, estava Jesus aprovando a vida pecaminosa
dela? De modo algum, e de tal forma a
reprovava que disse no final: vai e não peques mais. Por ter
conhecimento do íntimo daquela mulher sabia de antemão que ela estava
arrependida, e por isso a perdoou. Fez, portanto, um julgamento da pecadora, mas
sem sentença de condenação, mas de
perdão.
E o fez pelo simples dom da palavra.
Outro detalhe a observar no episódio acima:
Nosso Senhor estava sendo convocado para ser juiz, mas para que julgasse teria
que, antes de tudo, ouvir testemunhas ou provas da culpa da ré. Ele não fez um
julgamento, dizendo que a mulher tinha culpa daquele pecado por isso. Mas, ela
já tinha sido julgada, o que eles queriam era que ele como que desse o sinal de
cumprimento da pena, uma espécie de sentença.
Sem provas, com as testemunhas fugindo covardemente (pois tinham a mesma
culpa daquilo que acusavam), Ele apenas disse à mulher que “também não a condenava”,
mandou-a embora e deu ordens para não pecar mais. Usou apenas o dom da palavra
para se fazer cumprir sua sentença, não de condenação mas de perdão.
De modo geral o juízo, ou julgamento, é
composto de duas partes: na primeira temos a análise dos fatos e a constatação
da realidade (o testemunho do que está ocorrendo) e as críticas aos
mesmos; e na segunda parte, como
conclusão do juízo, a exaração da “sentença” ou censura. Para que se cumpra a
primeira, geralmente, usa-se dos recursos dos “olhos” e dos “ouvidos”, tanto de
quem julga como das testemunhas
É lícito o testemunho
de si mesmo, ser juiz em causa própria?
Este tema foi levantado pelos fariseus contra Jesus Cristo neste
episódio narrado por São João:
“Outra vez
lhes falou Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; o que me segue não anda nas
trevas, mas terá a luz da vida. Os fariseus disseram-lhe: Tu dás testemunho de
ti mesmo; logo, o teu testemunho não é verdadeiro. Respondeu Jesus e
disse-lhes: Embora eu dê testemunho de mim mesmo, o meu testemunho é
verdadeiro, porque sei donde vim e para onde vou, mas vós não sabeis donde eu
venho, nem para onde vou. Vós julgais segundo a carne, eu a ninguém julgo; e,
se julgo alguém, o meu juízo é verdadeiro, porque eu não sou só mas eu e o meu
Pai que me enviou. Na vossa lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é
digno de fé. Sou eu que dou testemunho de mim mesmo; e meu Pai, que me enviou,
dá testemunho de mim.” (Jo 8. 12-18).
Há duas coisas distintas nesse episódio: julgar e dar testemunho.
O testemunho é apenas a exposição da
verdade sobre algo, alguém ou algum fato; quanto ao ato de julgar é a análise e
decisão sobre aquilo, se é bom, se é mau, etc, e a exaração de uma sentença, ou
simplesmente de uma conclusão. Nesse caso é lícito dar testemunho de si mesmo,
desde que haja uma segunda pessoa que o confirme, pois apenas a palavra de si
mesmo não é suficiente. Do mesmo modo é lícito julgar, desde que não seja
“segundo a carne”, mas conforme as inspirações divinas. Quando Nosso Senhor diz
“eu a ninguém julgo”, Ele quer dizer, segundo a carne, pois logo adiante diz
que se julga alguém o seu juízo é verdadeiro. Quer dizer, Ele julga sim (pra
isso veio ao mundo), mas não segundo a carne.
[1]Summa,
Questão LX, Art. II (tradução de Alexandre Correia), edição da Escola Superior
de Teologia de São Lourenço de Brindes – Universidade Caxias do Sul – Livraria
Sulina Editora),
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