No ano 256 se iniciou terrível
perseguição aos cristãos, comandando-a o sanguinário Valeriano. Entre os vários
cristãos aprisionados por se recusarem a adorar os ídolos pagãos, estavam Santa
Perpétua e Santa Felicidade, ambas casadas. Quando o pai de Perpétua soube que
a filha estava encarcerada por ser cristã, foi vê-la na prisão e disse:
- Filha minha, que estás fazendo? Como
podes desonrar desta forma nossa família? Jamais membro algum de nossa linhagem
passou pela vergonha de ver-se encarcerado.
Ao contestá-lo a jovem disse que se
estava em semelhante lugar era por ser Cristã. Seu pai, num arroubo de ira,
lançou-se sobre ela para agredi-la, mas foi impedido pelos guardas. Saiu dali,
aos gritos, proferindo imprecações
contra a filha.
Juntamente com Perpétua estava no
cárcere uma jovem chamada Felicidade. O juiz mandou chamar as duas cristãs para
serem interrogadas. Primeiro, dirigiu-se á Felicidade:
- És casada?
- Sim, sou casada.
- És muito jovem. Se queres viver, olha
por ti. Deves fazê-lo com tanto maior motivo quanto vejo que estás grávida.
- Não percas tempo. Te advirto que não
conseguirás submeter-me à tua vontade;
de modo que já podes ditar a tua sentença.
Neste momento entraram no recinto os
pais de Perpétua, trazendo com eles o marido e um filho dela, tão pequeno este
último que ainda mamava. É a própria Santa Perpétua que conta o que ocorreu,
num relato escrito no cárcere sob o título de "la
Passio de Perpetua et Felicidade":
"Dali a alguns dias correu o rumor
de que iríamos ser interrogadas. Veio também da cidade o meu pai, consumido de
pena, e se aproximou de mim com intenção de derrubar-me, e me disse:
"Compadece-te, minha filha, de minha velhice; compadece-te de teu pai, se
é que mereço ser chamado por ti com o nome de pai. Se com estas mãos te trouxe
até esta flor da idade, se te tenho preferido aos outros teus irmãos, não me
entregues ao opróbrio dos homens. Veja seus irmãos; vede tua mãe e a tua tia
materna; olha o teu filhinho, que não há de poder sobreviver-te. Depõe teus
ânimos, não nos aniquile a todos, pois nenhum de nós poderá falar livremente se
a ti te passa algo". Assim falava
como pai, levado de sua piedade, ao tempo que me beijava as mãos e se lançava
aos meus pés e me chamava, entre lágrimas, não já de filha, senão sua
senhora. E eu não estava transida de dor
por o caso de meu pai, pois era o único em toda minha família que não havia de
alegrar-se com meu martírio. E tratei de
anunciar-lhe, dizendo: "Ali na arena sucederá o que Deus quiser; pois tens de saber que não estamos postos em
nosso poder, senão no de Deus”. E retirou-se cheio de tristeza. Outro dia,
enquanto estávamos comendo, nos levaram subitamente para sermos interrogados, e
chegamos ao foro da praça pública.
Imediatamente se correu a voz pelos arredores da praça, e se congregou
imensa multidão. Subimos no estrado.
Interrogados, todos confessaram sua fé. Por fim, chegou minha vez. E logo
surgiu meu pai com meu filhinho nos braços e me tirou do estrado, suplicando:
"Compadece-te do menino pequeno". E o procurador Hilariano, que havia
recebido na ocasião o "ius gladii", o poder de vida e morte, em lugar
do defunto procônsul Minucio Timiniano: "Tem consideração - disse - pelos cabelos brancos de teu pai; tem consideração à tenra idade de
teu filho. Sacrifica pela saúde dos imperadores". E eu respondi: "Não sacrifico".
Hilariano: "logo, és cristã?", disse.
E eu respondi: "Sim, sou cristã". E como meu pai se mantinha
firme na intenção de derrubar-me, Hilariano deu ordem de que se afastasse dali,
e ainda lhe deram de paus. Eu senti os golpes em meu pai como se fossem em mim
mesma. Assim me doí também pela sua infortunada velhice. Então Hilariano
pronuncia sentença contra todos nós, condenando-nos às feras. E voltamos
jubilosos ao cárcere".[1]
Após o interrogatório, mandaram-nas de
volta à prisão. Antes, porém, as duas sofreram atrozes açoites. Os quatro
companheiros de Felicidade na prisão, vendo-a tão sofrida por causa dos
sofrimentos, e sabendo que apesar dela estar grávida já no oitavo mês, se
encheram de compaixão e de pena e começaram a rezar por ela. Enquanto rezavam,
ela começou a sentir as dores do parto e logo a criança nasceu. Enquanto paria, um dos carcereiros lhe
dirige indagações para atribulá-la mais ainda:
- Que pensas fazer quando o juiz te
chamar de novo? Porque tudo quanto agora estás sofrendo não é nada em
comparação com o que há de vir.
- As dores que nestes momentos padeço
são minhas; a mim me corresponde padecê-las; em troca, estas outras torturas
que estão me reservando para mais tarde, Deus as padecerá por mim.
As prisioneiras foram tiradas do
cárcere, juntamente com os demais cristãos, e, desnudos, fizeram-nos desfilar
pela cidade, após o que foram jogados às feras. Foram martirizados neste dia
Saturnino, Perpétua, Felicidade e outros quatro companheiros.
Os santos Macabeus, prefiguras dos mártires cristãos
O maior sofrimento que havia para as
mulheres mártires era para aquelas que eram mães. Principalmente se elas tinham
seus filhos como cristãos, portanto fortes candidatos ao martírio juntamente
com elas. No tempo dos Macabeus, que, embora não houvesse chegado o
Cristianismo, o espírito cristão já predominava naquela família, o rei Antíoco
determinou que o seu deus, Júpiter Olímpico, fosse também adorado entre os
hebreus de Jerusalém. Havia na cidade vários templos e altares consagrados aos
deuses pagãos, mandados construir por Antíaco, e a família dos Macabeus era a
última resistência dos hebreus contra esta investida idolátrica.
Como se fosse uma prefigura dos
mártires cristãos, ocorreu o martírio dos sete irmãos macabeus, assim narrados
pela Sagrada Escritura:
"Aconteceu também que, tendo sido
presos sete irmãos com sua mãe, o rei os queria obrigar a comer carne de porco
contra a lei, atormentando-os para isso com açoites que lhes davam com
azorragues e nervos de boi.
Um deles, em nome de todos, falou
assim: Que pretendes, que queres saber de nós ? Estamos prontos antes a morrer que
violar as leis de nossos pais. O rei,
irritado, mandou pôr ao fogo frigideiras e caldeirões. Logo que ficaram em brasa, ordenou que se
cortasse a língua ao que tinha falado primeiro, e que, arrancado da cabeça o
couro cabeludo, lhe cortassem também as extremidades, à vista dos outros seus
irmãos e de sua mãe. Depois de estar assim mutilado, mandou que o chegassem ao
fogo e o torrassem na frigideira, quando ainda respirava. Enquanto se difundia
largamente o vapor da frigideira, os outros (irmãos) exortavam-se mutuamente
com sua mãe, a morrerem corajosamente, dizendo: O Senhor Deus vê e consola-se
em nós, conforme o declarou Moisés no seu cântico de protesto (contra Israel),
por estas palavras: Ele será consolado nos seus servos.
Morto deste modo o primeiro, levaram o
segundo ao suplício. Arrancado da cabeça o couro cabeludo, perguntaram-lhe se
queria comer (das carnes que lhe apresentavam) antes que ser atormentado em
cada um dos membros do seu corpo. Respondendo na língua de seus pais,
disse: Não! Pelo que também esse padeceu
os mesmos tormentos que o primeiro. Estando já para dar o último suspiro, disse
desta maneira: Tu, ó malvado, fazes-nos perder a vida presente, mas (Deus) o
Rei do universo, nos ressuscitará para a vida eterna, a nós que morremos, por fidelidade ás suas leis.
Depois deste, torturaram também o
terceiro. Tendo-lhe sido pedida a língua, ele a apresentou logo, assim como
estendeu as mãos corajosamente, e disse afoito: Do céu recebi estes membros,
mas agora os desprezo pela defesa das suas leis, esperando que ele nos tornará
a dar um dia. O próprio rei e os que o acompanhavam admiraram o valor deste
jovem, que reputava por nada os tormentos.
Morto este, atormentaram da mesma forma
o quarto. Quando ele estava já para expirar, disse: Felizes os que são
entregues á morte pelos homens, esperando em Deus que hão de ser por Ele
ressuscitados; porém, quanto a ti (ó rei),a tua ressurreição não será para a
vida.
Em seguida, pegaram no quinto e
atormentaram-no. Mas ele, olhando para o rei disse-lhe: Tu fazes o que queres,
porque recebeste o poder entre os homens, ainda que mortal entre eles; todavia
não cuides que Deus desamparou a nossa nação;
espera e verás quão grande é o seu poder e como ele te atormentará a ti
e a á tua raça.
Após este, levaram (ao suplício) o sexto, que, quando estava perto de morrer,
disse: Não te iludas; se padecemos isto,
é porque o merecemos pelos pecados contra o nosso Deus, pelos quais vêm sobre
nós tão espantosos flagelos. Mas não imagines que hás de ficar sem castigo,
depois de teres empreendido combater contra Deus".
A Sagrada Escritura detalha o suplício
dos sete irmãos, até o sexto, sem falar que a mãe os assistia. Mas é de se
imaginar. Se ela estava presente, vendo seus filhos serem martirizados, e da
forma mais horrorosa conforme descrita, que sofrimentos indescritíveis não
estaria também passando. Cada filho que ia para o sacrifício era uma tremenda
dor para seu coração de mãe. Certamente, tanto os maus conselhos das pessoas
que a acompanhavam como em seu interior, devem ter surgido várias tentações
para ceder; e, cedendo, poderia ganhar talvez não a vida de seus filhos, mas a
sua.
Mas a Sagrada Escritura não se esqueceu
de mãe tão heróica, e relata como ela
enfrentou tamanho martírio:
"Entretanto a mãe deles,
sobremaneira admirável e digna de memória, vendo morrer os seus sete filhos em
um só dia, suportou heroicamente a sua morte, pela esperança que tinha no Senhor.
Cheia de nobres sentimentos, exortava, na língua de seus pais, a cada um deles
em particular, dando firmeza, com ânimo varonil, à sua ternura de mulher.
Dizia-lhes: Não sei como fostes formados no meu ventre; não fui eu que vos dei
o espírito e a vida, ou que formei os membros do vosso corpo. O Criador do
mundo, que formou o homem no seu nascimento e deu origem a todas as coisas, vos
tornará a dar o espírito e a vida, por sua misericórdia, em recompensa do
quanto agora vos desprezais a vós mesmos, por amor das suas leis".
A estas alturas, o tirano que desta
forma martirizava toda uma família, filhos e mãe, estava desesperado porque
chegando ao sexto filho nada conseguia. Só restava o filho mais novo e a mãe,
ambos agora mais unidos ainda em torno de seus princípios religiosos e mais
amparados por Deus. Que fazer? Faltava usar de lisonja e fingida amizade.
Continuemos o relato pela Sagrada Escritura:
"Ora, Antíaco, considerando-se
desprezado e julgando que aquelas palavras (dos mártires) eram um insulto para ele, como falasse ainda
o mais novo, não somente o exortava, mas ainda lhe assegurava com juramento que
o faria rico e ditoso, que o teria na classe dos seus amigos e lhe confiaria altos cargos se abandonasse as
leis dos seus pais. Como o jovem de nenhum modo consentisse em tais coisas, o
rei chamou a sua mãe, e aconselhou-a a que fizesse àquele jovem recomendações
para salvar a vida. Depois de a ter exortado com muitas razões, ela lhe
prometeu que procuraria persuadir seu filho. Tendo-se, pois, inclinado para lhe
falar, zombando deste cruel tirano, disse-lhe na língua pátria: Meu filho, tem
compaixão de mim, que te trouxe nove meses no meu ventre, que te amamentei
durante três anos, que te nutri e eduquei até esta idade. Suplico-te, meu
filho, que olhes para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles,
e que penses bem que Deus os criou do nada, assim como a todos os homens. Não
temas este algoz, mas sê digno de teus irmãos, aceita a morte, para que eu te encontre
com eles no dia da misericórdia".
As últimas palavras desta mãe revelam
bem o grau heróico de virtudes que ela praticava neste momento. Provavelmente
ela estava assistida por vários anjos, e sua alma era fortalecida por graças
extraordinárias dadas por Deus, pois naturalmente nenhuma pessoa seria capaz de
resistir a tantos tormentos e depois desejar a morte de seu último filho, após
perder seis, um após outro, pelo mesmo motivo, resistir impavidamente abraçando
os princípios religiosos que herdara de seus pais e que julgava em seu interior
serem inspirados pelo Deus verdadeiro.
Que outra mãe, em outro período histórico, sendo crente de outra
religião, teria assim resistido às investidas contra seus princípios dando a
própria vida e a de seus sete filhos? Não, não há registro histórico de caso
semelhante.
E continuemos com o relato da Bíblia,
com todo o seu sabor sobrenatural:
"Quando ela ainda estava falando,
o jovem disse: Que esperais vós de mim? Eu não obedeço ao mandado real, mas às
prescrições da lei que foi dada a Moisés a nossos pais. Quanto a ti, autor de
todos os males que oprimem os hebreus, às mãos de Deus não escaparás. Quanto a
nós, por causa de nossos pecados é que padecemos; e se o Senhor nosso Deus se
irou um pouco contra nós para nos castigar e corrigir, tornar-se-á a
reconciliar outra vez com os seus servos. Tu, porém, ó malvado e o mais
perverso de todos os homens, não te ensoberbeças loucamente erguido em vãs
esperanças, quando levantas a mão contra
os servos de Deus, porque ainda não escapaste ao juízo de Deus onipotente, que
tudo vê. Meus irmãos, depois de terem
suportado agora uma dor transitória, entraram já na aliança da vida
eterna; tu, porém, tens de sofrer, pelo
juízo de Deus, a pena justamente devida á tua soberba. Eu como meus irmãos,
entrego o meu corpo e a minha vida em defesa das leis de meus pais, rogando a
Deus que, quanto antes, se mostre propício à nossa nação e te constranja, por
meio de tormentos e de flagelos, a confessar que ele é o único Deus. Oxalá que na minha morte e na de meus irmãos
se detenha a ira do Todo-Poderoso, que justamente caiu sobre todo o nosso povo.
Então o rei, abrasado em ira, embraveceu-se
contra este mais cruelmente que contra os outros, não suportando sofrer
ver-se assim escarnecido. Morreu este jovem sem se contaminar, confiando
inteiramente no Senhor. A mãe foi a
última a morrer, depois de seus filhos" (II Mac 7, 1-41).
Realmente, é muito melancólico e frio o
final do relato tirado da Sagrada Escritura.
De tudo o que sofreu aquela mãe, de todo o seu valor heróico, se diz
pouco, a não ser que "foi a última a morrer depois de seus
filhos". Mas é que a simples morte
diz pouco sobre o martírio. O epílogo foi a morte, mas o principal estava no
sofrimento que ela teve ao ver seus sete filhos serem barbaramente assassinados,
de uma forma desumana e cruel, antes dela mesma.
Os sete irmãos, filhos de Santa Felícitas
Fato análogo se deu entre os primeiros
mártires cristãos. Foram martirizados
antes de sua mãe, Santa Felicitas, seus sete filhos, Jenaro, Félix, Felipe, Silvano,
Alexandre, Vidal e Marcial. O prefeito
Publio, seguindo ordens do imperador Antonio, mandou comparecer perante ele a
mãe e seus sete filhos, procurando fazer o que era comum naquele tempo:
tratando-se de cristãos, convencê-los a adorar os ídolos, que era como se fosse
a "moda" daquela época.
A mãe cristã, ao ser chamada desta
forma à presença da autoridade, disse:
- Não me comovem tuas lisonjas nem me
assustam tuas ameaças. O Espírito Santo está comigo, e estou segura que com sua
ajuda não me vencerás enquanto viva; se me matas, minha morte constituirá uma
grande vitória sobre ti.
Em seguida, a mãe cristã, cheia de fé,
dirige-se a seus filhos:
- Filhos meus queridíssimos, levantai
vossos olhos e olhai o céu onde está Cristo esperando-nos. Lutai valentemente
por Ele e demonstrai o amor que tendes mantido fiéis a seu nome.
O indigno prefeito, ao ouvir isto,
mandou a seus prosélitos que esbofeteassem a Felicitas, e em seguida, tanto ela
como seus sete filhos fossem martirizados se continuassem firmes na fé cristã.
Esta valorosa mulher, longe de fraquejar, não cessou em nenhum momento de
exortar veementemente a seus filhos que permanecessem firmes na fé. Todos os
sete irmãos foram martirizados, um a um, na presença da própria mãe. Repetia-se martírio semelhante ao dos
macabeus.
Finalmente, a própria mãe foi também
martirizada e voou sua alma para a glória celeste para fazer companhia a seus
sete filhos.
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