“Prossegue, que vencerás!”
São
Fernando comandava o cerco de Sevilha (século XIII), que já durava meses sem
resultados favoráveis aos cristãos. A situação chegou a tal ponto que São Fernando
não conseguia nem conversar direito com sua esposa, pois logo os pensamentos
ruins e as tentações lhe acorriam na mente. Certo dia, após cear com ela,
disse:
-
Não me espere, D. Joana, pois terei que ir na capela onde tenho muito que rezar
-
Santa Maria vos valha, meu senhor!
São Fernando foi até sua capela, entrou e
fechou-se à chave por dentro, indo ajoelhar-se aos pés da Virgem dos Reis.
Sentia forte aflição e passou a rezar em voz alta:
-
Valei-me, Senhora, valei-me com o teu Filho!
Chamava
valei-me e socorrei-me repetidamente. Em certo momento, levantou-se para olhar
de mais perto o semblante da imagem. Naquela doce penumbra ela lhe parecia mais
carinhosa e maternal. Continuou a clamar em voz alta:
-
Sempre, Senhora, fostes a minha protetora e me tirastes de todos os trabalhos
que por Vós tenho me empenhado. Por que agora assim me deixas penar? Lembrai-vos, Senhora, de Córdoba, de Jaén, e
de todas as minhas conquistas que com o teu favor se fizeram. É verdade que por
causa dos meus pecados muito tenho merecido estas penas, mas comigo as sofrem
os meus vassalos... Rainha e Mãe de misericórdia, valei-me!
De
repente, pareceu ao rei que o sorriso da Senhora Santa Maria se acentuava.
Seria ilusão? Seus lábios se moviam como se fosse de uma pessoa viva. O rei a
olhava estático, quando ouviu chamar por seu nome:
-
Fernando!
Sem
estranhar-se disto, respondeu:
-
Que queres de mim, Senhora?
-
Na minha imagem, “a Antiga”, que está em Sevilha e tu tanto amas, encontrarás
muito bom auxílio.
E
envolvendo-o com um inefável olhar, com acento persuasivo e suavíssimo lhe diz:
-
Prossegue, que vencerás!
São
Fernando estava fora de si, mais no céu do que na terra, o lugar de onde vinha
claramente o sol que dissipava suas trevas. Imediatamente veio-lhe à mente a
imagem de que falou a Virgem, “a Antiga”, que há muitos séculos se encontrava
oculta na maometana Sevilha. E pensou como seria da maior glória de Deus
conquistá-la para novamente ser entregue à
veneração dos cristãos.
Sem
pensar em mais nada saiu da capela, deixando-a aberta, atravessou todo o
acampamento e saiu. Caminhava absorto por sua idéia sem pensar no tremendo
perigo que estava se expondo. Estava já bem perto das portas de Sevilha moura
quando apareceu de repente ao seu lado um formosíssimo jovem segurando um
archote na mão para iluminar o caminho. São Fernando o acompanhou sem dizer
palavra, pois logo percebeu que era um anjo.
Foram caminhando, passando por lugares estranhos, seguindo para a
entrada da cidade, onde a porta se abriu milagrosamente e dirigindo-se em
seguida até o centro de Sevilha mourisca. De repente, São Fernando se encontrou
no complicado labirinto das revoltas ruazinhas de Sevilha. Sempre atrás do
anjo, seguiu aquelas ruelas durante certo tempo até que chegados num ponto
pararam em frente a uma mesquita, a maior que havia naquela cidade. Abriu a
porta e mandou o anjo que São Fernando entrasse ali.
Lá
dentro da mesquita, o anjo apontou para um local onde havia um lenço na parede,
ocasião em que São Fernando caiu de joelhos pois sabia que ali se encontrava a
imagem de Nossa Senhora, chamada “a Antiga”. A parede se fez transparente e o
rei pôde ver a imagem da mesma forma como a haviam pintado séculos atrás.
Estava coberta com um véu e sustinha Seu Filho nos braços. São Fernando
demorou-se ali muito tempo, rezando à Senhora “a Antiga” para que ele A pudesse
resgatar de seu cativeiro, conquistando aquela cidade aos mouros inimigos.
Chegada a hora de voltar, o anjo lhe toca no ombro e São Fernando lhe obedece
imediatamente. Talvez algum mouro sanhudo tenha se encontrado com ele no
caminho, sem imaginar quem seria aquele homem com o rosto escondido num capuz,
mas mesmo que descobrisse o anjo certamente o protegeria. E quem sabe se o seu
anjo da guarda não cegou algum mouro que o tenha visto na entrada ou saída da
cidade?
Quando
ambos chegaram no campo cristão, o anjo da guarda desapareceu misteriosamente.
Tropeçando em algo que havia no chão, São Fernando se acorda do êxtase em que
estava. Notou que agora estava só.
Ao
longe, Sevilha lhe parecia uma cidade morta, sem uma voz humana, nem um galo
que cante ou mesmo algum latido de cão. São Fernando compreendeu naquele
instante a grandiosa mercê que a Mãe de Misericórdia acabava de fazer-lhe.
Havia pedido a Ela alento e luz que dissipasse todas as dúvidas com que lhe
tentava o demônio, e logo depois de haver lhe dito Ela mesma que venceria, lhe
dava como prova de que era de Deus o aviso, o estupendo prodígio de fazê-lo
entrar em Sevilha no meio da noite, mandando que um anjo lhe mostrasse o
caminho, lhe abrisse as portas e o trouxesse de volta sem qualquer perigo. E
tudo isto para que ele pudesse venerar a antiga imagem de Santa Maria, lá
escondida como se fosse uma prisioneira.
E a prova de que não era sonho nem delírio, ali estava ele agora em todo
o seu siso, fora do acampamento cristão e a dois passos da Sevilha moura,
plenamente seguro e sem temor de nada, com uma paz firme e tranqüila e dentro
do coração uma enorme gratidão para Seu Senhor, Jesus Cristo.
Caiu
ali de joelhos novamente. Olhou para o objeto em que havia tropeçado e feito
com que saísse do êxtase e viu que se tratava de sua própria espada, que talvez
tivesse deixado cair ali no chão quando seguia o seu anjo. Beijou
carinhosamente a cruz de sua empunhadura, colocou-a rápido na bainha e disse:
-
Como eu vos larguei sem dar conta disto?
De
repente, ouviu vozes. Todo o acampamento cristão estava em polvorosa. Eram
vozes de comando como se as hostes estivessem para sair para alguma investida.
Homens montados a cavalo e bem armados davam ordens para partir imediatamente.
O que ocorria? O rei correu para o acampamento para ver o que se passava. Foi
barrado pelo sentinela, que ao ouvir a voz do rei gritou:
-
O rei!
Ao
mesmo tempo todos correm para o local e o rodeiam. Seus ricos-homens e
cavaleiros fazem ao mesmo tempo a pergunta:
-
Senhor, onde estavas?
-
Graças ao Criador que voltais são e salvo!
Todo
aquele clamor era porque, quando deram pela falta do rei, andavam a tempos o
procurando por todo o acampamento sem o achar. Já imaginavam que havia sido
raptado pelo inimigo. São Pelayo, um dos mais perplexos e preocupados com a
ausência do rei, pergunta:
-
Mas dizei, Senhor, onde estavas?
-
Estava em Sevilha, tratando da rendição da cidade com alguns meus confidentes.
Em
seguida pergunta o rei:
-
Que horas são?
-
Faltam duas horas para amanhecer o dia, senhor.
-
Vamos aproveitá-las descansando, pois amanhã teremos muitos trabalhos que
fazer. Dai muitos louvores a Jesus Cristo, pois amanhã Sevilha será nossa.
Os
nobres lhe beijaram a mão e todos seguiram para sua tendas. No dia seguinte,
Sevilha foi conquistada e libertada a imagem de Nossa Senhora “ A Antiga”, que
os mouros mantinham “aprisionada” dentro da igreja transformada em mesquita.
(Fonte: “Nuestra Señora en el Arzon” - C. Fernandez de Castro, A. C. J.- Editora Escelicer,
S.L., de Cádiz, Espanha -1948)
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