(O Pai Nosso em Jerusalém)
Na vertente ocidental do Monte das
Oliveiras foi que, segundo a Tradição, Nosso Senhor nos ensinou a Oração
Dominical, o conhecido Padre Nosso, ou Pai-Nosso. Os Cruzados construíram
naquele lugar uma igreja destinada a perpetuar aquela recordação, depois
arruinada. Sobre as ruínas daquele santuário, a princesa de Tour d’Auvergne
mandou construir um novo, colocando no claustro que rodeia o edifício 32
quadros com o “Pater Noster”, em 32 línguas diferentes, conservado até os dias
atuais.
O Pai Nosso está dividido em duas partes
principais: na primeira se honra o nome de Deus
e se pede que traga Seu Reino até nós, e na segunda pedimos que nos ajude em nossas
necessidades. É bom notar que a Ave-Maria também está dividida em duas partes
semelhantes: na primeira se honra a Virgem Maria e na segunda se faz as
petições. Vamos fazer uma análise
sucinta da belíssima oração do Pai Nosso, considerada pelos santos como a mais
perfeita:
PAI NOSSO: Por essa expressão, ou
invocação, iniciamos a oração reconhecendo Deus como nosso Criador, o primeiro
título de Pai, primordial que é ser o Autor de nossas vidas. Tanto é que São Cirilo
de Alexandria, como veremos abaixo, diz que o principal nome como Deus deve ser
chamado é o de Pai;
QUE ESTÁS NO CÉU: Em seguida vem o
reconhecimento de Seu poder supremo, que é estar na eternidade e na glória:
onde também está o Seu principal reino, ou reinado;
SANTIFICADO SEJA VOSSO NOME: Aqui não se
trata somente de reconhecer Deus como Pai e Santo, completamente perfeito e
bom, mas que essa santidade se manifeste pelo Seu nome, que é o de Pai;
VENHA A NÓS O VOSSO REINO: Parece-me que
essa é a invocação principal da oração, o centro de tudo, a mais importante não
só da primeira parte mas de toda ela, pois expressa o desejo de que o Reino de
Deus, que está no Céu, não fique somente lá e desça até nós aqui na terra. Que
a regência divina impere inteiramente em nossos corações!
SEJA FEITA A VOSSA VONTADE, ASSIM NA
TERRA COMO NO CÉU: Para que o Reino de Deus desça do Céu até nós aqui na terra,
é necessário que Sua vontade seja cumprida tanto lá no Céu como entre nós,
trazendo-nos a Paz celestial. Foi essa uma das proclamações dos Santos Anjos
quando Nosso Senhor nasceu: “Paz na terra aos homens de boa vontade”. A paz,
que é fruto da regência divina sobre nossos corações, só virá aos “homens de
boa vontade”, quer dizer, àqueles que cumprem a vontade divina. Eis tudo para
que vivamos perfeitamente em santidade;
O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAÍ HOJE:
Aqui começa a segunda parte da oração, toda ela impetratória, isto é, feita de
pedidos. E o primeiro pedido de filho para um Pai deve ser o do pão, o do
sustento, tanto material quanto espiritual. Aqui é o nosso reconhecimento da
regência divina sobre nossas necessidades. É também o reconhecimento de que,
principalmente, nossas necessidades materiais, como o pão, vem do Pai, nosso
Criador e sustentáculo;
E PERDOAI NOSSAS DÍVIDAS (OU OFENSAS),
ASSIM COMO NÓS PERDOANOS AOS NOSSOS DEVEDORES (OU A QUEM NOS TEM OFENDIDO)(*):
a segunda petição, ou a que está em segundo lugar, dirigida ao Pai deve ser de
natureza moral, com isso alcançando d’Ele o perdão por nossas faltas. É sabendo
perdoar que se atinge a auto-regência mais perfeita;
E NÃO NOS DEIXEIS CAIR EM TENTAÇÃO, MAS
LIVRAI-NOS DO MAL: O terceiro pedido é de natureza moral e religiosa, mas,
sobretudo é um reconhecimento de nossa impotência e fraqueza na prática das
virtudes, pedindo ao Pai que não permita que caiamos no poder da regência
diabólica, que é o que ocorre quando pecamos.
(*)
Ver adiante um comentário sobre a diferença entre Dívidas e Ofensas, conforme
documento recente da Santa Sé.
Nos comentários de São Boaventura sobre
o Pai Nosso, a ênfase que ele dá é que nessa oração se pede, particularmente,
os sete dons do Espírito Santo. Na
primeira parte se pede o dom do temor, quando diz: “Pai nosso, que estás nos
céus, santificado seja o vosso nome”. Em segundo lugar se pede a piedade,
quando diz: “Venha a nós o vosso reino”. Em terceiro lugar se pede o dom
da ciência, quando diz: “Faça-se a vossa vontade, assim no céu como também
na terra”. Em quarto lugar se pede o dom da fortaleza, ao dizer: “O pão
nosso de cada dia nos dai hoje”. O pão corrobora as forças do homem. Em
quinto lugar se pede o dom do conselho, ao dizer: “E perdoai-nos nossas
dívidas, assim como nós perdoamos a nossos devedores”. Em sexto lugar se
pede o dom do entendimento, ao dizer: “E não nos deixeis cair em tentação”. Em
sétimo lugar se pede o dom da sabedoria, ao dizer: “Mas livrai-me do mal.
Amém”.
Continua
São Boaventura:
Na primeira parte se pede nossa
santificação, e isso pelo dom do temor, quando diz: “Pai nosso, que estás
nos céus, santificado seja o vosso nome”. Isaías: “O Senhor dos
exércitos, a Ele glorificai: Ele seja o que nos faça temer e tremer”. (“Dominum
exercituum ipsum santificate; ipse pavor vestre et ipse terror vester” – Glorificai
ao Senhor dos exércitos; seja Ele só o vosso temor e terror – Is 8, 13).
Na segunda se pede a consumação da
salvação humana, a qual não se obtém senão pela ordem da piedade: “Aguarda
um juízo sem misericórdia ao que não usou de misericórdia”. Se trata deste
dom quando diz: “Venha o vosso reino”.
Na terceira parte se pede o cumprimento
da lei divina pelo dom da ciência, o qual ensina a obrar o bem e evitar os
males. Deste dom se trata quando diz: “”Faça-se a vossa vontade, etc.”
Na quarta parte se pede o refocilamento
da eterna virtude, e por isso o dom de virtude ou de fortaleza, quando diz: “O
pão nosso de cada dia nos daí hoje”. O pão corrobora as forças do
homem.
Na quinta parte se pede o perdão dos
pecados pelo dom do conselho, quando diz: “E perdoai as nossas dívidas,
assim como, etc”.
Na sexta petição se pede a repulsa dos
enganos do inimigo pelo dom de entendimento, quando diz: “E não nos deixes
cair na tentação”.
Na sétima petição se pede subjugação da
concupiscência carnal pelo dom da sabedoria, quando diz: “Mas livrai-nos de
mal. Amém”. É impossível que a alma dome sua carne, ao menos que se encha
do dom da sabedoria. Longo seria falar de tudo isto.
Como se viu o Reino de Deus, ou a
regência divina (conforme vimos analisando), começa no coração humano, e
somente se consuma com a posse dos sete dons do Espírito Santo. Sempre foi esse
o entendimento dos ascetas e teólogos. O missionário português Frei Tomé de
Jesus, prisioneiro dos maometanos, compôs inspiradas palavra sobre a Oração
Dominical; chegando ao ponto em que se roga que desça até nós o Reino de Deus,
escreveu:
“Adveniat
ad Regnum tuum – Fujam de nós, como Vós. Como, Senhor,
sofreis que Vos amemos e Vos não vejamos? E se cumpre estar ainda mais tempo
degredados, Vós sabeis morar neste coração. Vinde, Padre e Senhor, aqui reinai,
e aqui morai, e se fizerdes desta alma Vosso reino, detenha-se o celestial
quanto quiserdes porque nem cá, nem lá, desejo senão que reineis Vós em mim, e
tenhais plenário senhorio em todas nossas almas..
O Padre Eterno, a primeira
revelação divina no templo da alma
As manifestações de Deus Pai, no Novo
Testamento, sempre mostram uma relação de afeto e veneração com o Filho e
revelada aos homens. Manifestou-se no batismo de Jesus (Mt 3, 17), dizendo:
“este é o meu Filho amado em quem pus minhas complacências”, frase repetida na
Transfiguração sobre o Monte Tabor (Mt 17, 5), parecendo ter sido estas as
únicas vezes em que Deus Pai se manifestou publicamente para dar testemunho de
Jesus. Aliás, tais cenas revelam uma manifestação da Santíssima Trindade e não
só do Pai Eterno.
Nosso Senhor disse que tudo o que
fazemos ou o que imaginamos, tudo o que pensamos, enfim, é segredo do Pai (Mt
6, 1-4). Por isso, recomenda orar ao Pai em segredo (Mt 6,6 e 6, 18), pois não
serão nossos gestos ou palavras que O farão nos ouvir (Mt 6,7-8). O Pai perdoa a quem perdoa (Mt 6, 14/15) e só nos concede coisas boas
(Mt 7, 11). Por fim, só entrará no
reino dos céus quem faz a vontade do Pai (Mt 7, 21).
A ação de Deus Pai (que, aliás, é sempre
conjunta com as outras três pessoas divinas, pois todas Elas agem ao mesmo
tempo) se circunscreve sempre ao interior mais profundo das almas. E da mesma
forma procede do Pai as revelações mais importantes, pois é Ele quem revela (a
Sabedoria) aos pequeninos e as esconde aos “sábios” (Mt 11,25).
Foi Deus Pai quem revelou a São Pedro o caráter divino da natureza de
Jesus (Mt 16, 17): “Não foi a carne e o sangue que to revelou, mas meu Pai que
está nos céus”,
De outro lado Pai e Filho têm tal união
que se completam, pois “ninguém conhece mais o Pai do que o Filho” (Mt 11,
26-27) e vice-versa. Assim também como todas as coisas que são reveladas,
inclusive aquela feita a São Pedro, Ele o faz através do Filho, e é o Filho
quem revela o Pai (Mt 11,27).
Enfim, Deus Pai se revela no interior de
seus filhos verdadeiros, trata-se da luz primeira, dos primeiros conhecimentos
que o homem tem em seu interior sobre Deus. Esta imagem primeira, estes sinais
mais recônditos de Deus, como Pai supremo, o homem o encontrará dentro de sua
própria alma. Para tanto basta que use a “luz da razão”.
O nome de Pai é mais apropriado a Deus
do que o nome de Deus, conforme escreveu São Cirilo de Alexandria:
“O
Filho não manifestou o nome do Pai apenas revelando-o e dando-nos uma instrução
exata sobre a Sua divindade, uma vez que
tudo isso tinha sido proclamado antes da vinda do Filho pela Escritura
inspirada. O Filho também nos ensinou, não só que Ele é verdadeiramente Deus,
mas que é também verdadeiramente Pai, e que é assim verdadeiramente chamado,
pois tem em Si mesmo e produz para fora de Si mesmo o Filho, que é co-eterno
com a Sua natureza.
O
nome de Pai é mais apropriado a Deus do que o nome de Deus: este é um nome de
dignidade, aquele significa uma propriedade substancial. Porque quem diz Deus
diz o Senhor do universo. Mas quem nomeia o Pai específica a característica da
pessoa: mostra que é Ele que gera. Que o nome de Pai é mais verdadeiro e mais
apropriado que o de Deus mostra-no-lo o próprio Filho pelo modo como o usa.
Pois Ele não dizia: «Eu e Deus», mas: «Eu e o Pai somos um» (Jo 10, 30). E
dizia também: «Foi a Ele, ao Filho, que Deus marcou com o Seu selo» (Jo 6, 27).
Mas,
quando mandou os seus discípulos batizarem todos os povos, ordenou
expressamente que o fizessem, não em nome de Deus, mas em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo (Mt 28, 19)”..
O
Reino de Deus se inicia nas moradas interiores do homem
O que significa a expressão “Casa do meu
Pai?”. Trata-se do Templo de Deus. Foi assim que Ele se expressou ao expulsar
os vendilhões do Templo de Jerusalém: “Está escrito: a minha casa é uma casa de
oração e vós fizestes dela um covil de ladrões” (Lc 19, 45-46). A Casa de Deus,
o Templo de Deus e as moradas celestes são a mesma coisa, embora o Templo
citado acima diga respeito ao edifício de Jerusalém. E, no entanto, diz-se que
o Templo de Deus encontra-se no interior do homem; à semelhança de como está
Ele também no céu, encontra-se no coração e na alma do homem. Vale a mesma
afirmação para o coração, este interior profundo do homem, que sendo templo de
Deus deve ser antes de tudo “casa” de oração.
E o que é o coração do homem segundo a
ascética? Aqui não se refere ao órgão propulsor da vida, mas sim ao centro das
cogitações, o cerne de suas afeições, o ponto central para onde ele dirige suas
preferências, ideias, simpatias, etc. A Sagrada Escritura está recheada de
referências ao coração do homem e o sentido é sempre esse.
Já o termo “morada” foi mais referido
por Nosso Senhor Jesus Cristo. O que quis dizer Ele com a palavra “morada”? A
morada pode ser entendida como um lugar, o qual é destinado a acolher pessoas.
Assim como as moradas celestes são destinadas a acolher os bem-aventurados, as
moradas de Deus no nosso interior são destinadas a acolhê-Lo com o fim de
adorá-Lo, reverenciá-Lo, obedecê-Lo, prestar-Lhe culto, etc. Desta forma, as
moradas celestes, a que se referia Nosso Senhor, queria dizer os lugares
destinados aos bem-aventurados na outra vida. São os tronos celestes. Mas não
quer dizer somente isso: há também as moradas interiores do homem.
Da mesma forma, o fato de Nosso Senhor
dizer que são muitas as moradas, quer também significar a grande diversidade de
vida espiritual que cada um pode ter
para se chegar até Deus, ou, como são diversas as batalhas para conquistá-las
até chegar a Ele. Nesse sentido, existem tanto as moradas celestes quanto as de
Deus no interior de nossa alma. Nosso interior pode ter, neste sentido, dois
grandes castelos senhoriais: um destinado a ser templo de Deus e outro
destinado à Sua morada. Melhor ainda, a mesma morada pode servir ela mesma de
templo. Aliás, uma só, não, várias moradas, como disse o próprio Nosso Senhor.
Assim, mesmo tendo Deus Pai em nosso interior como luz primeira de nossa
existência, precisamos preparar uma morada para Deus Filho e o Espírito Santo.
São Paulo disse: “Por essa causa dobro os
meus joelhos diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a
família, quer nos céus, quer na terra, toma o nome, para que, segundo as
riquezas de sua glória, vos conceda que sejais corroborados em virtude, segundo
o homem interior, pelo seu Espírito, e que Cristo habite pela fé nos vossos
corações, de sorte que, arraigados e fundados na caridade, possais
compreender, com todos os santos, qual seja a largura e o comprimento, a altura
e a profundidade; e conhecer também o amor de Cristo, que excede toda a
ciência, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (Ef 3, 14-19)
Qual a finalidade das moradas celestes?
Dar descanso, gozo e paz (descanso não só como fim de nossas tribulações, mas
como êxtase nas coisas de Deus; gozo dos bens eternos e paz que é fruto da
tranqüilidade da ordem), pois esta é a finalidade de toda morada. E permitir à
contemplação do Eterno sem qualquer obscuridade do espírito humano.
Por causa disso, as moradas celestes devem ser
compostas de substâncias espirituais e corporais próprias do Empíreo
(destinadas a acolher também as propriedades do corpo ressurrecto:
translucidez, sutileza, agilidade, ubiqüidade etc.), além de dons, virtudes e
graças para sustentar, alimentar e engrandecer corpo e alma. Os quais foram necessários à ascese na terra
de uma forma imperfeita quanto ao nosso uso, mas perfeitíssimos no céu por
causa de estarmos imersos em Deus.
Quanto ao interior de nossa alma, temos
lá os reflexos das celestes moradas de Deus, os quais se tornam realidade com a
vinda da Santíssima Trindade para morar em nós.
Assim, Deus pode morar em nosso interior de uma forma natural, como reflexo de Suas perfeições (somos imagem
e semelhança de Deus) e também de uma forma completa através da ascese. Nós
somos também uma morada de Deus no verdadeiro sentido da palavra: “Se alguém me ama, guardará as minhas
palavras, meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos nele morada” (Jo 14, 23).
Como, então, poderemos chegar às moradas
divinas existentes no interior de nossa alma? Deve-se travar verdadeiras
batalhas para o mister. Devemos seguir não somente o Decálogo, mas os conselhos
evangélicos e andar nos passos de Nosso Senhor, que carregou Sua Cruz até o
Calvário. Naqueles conselhos evangélicos vamos encontrar a fórmula que fará com
que o próprio Nosso Senhor venha fazer em nós a Sua morada e nos leve para a
Morada d’Ele:
“Depois
que eu tiver ido e vos tiver preparado o lugar, virei novamente e
tomar-vos-ei comigo para que, onde eu estou, estejais vós também. E vós
conheceis o caminho para ir onde vou” (Jo 14, 3-4):
Pelo que se viu acima, somente iremos
depois que Nosso Senhor foi, e somente iremos para o lugar que Ele nos preparou
juntamente com Ele mesmo. Da mesma forma, só iremos com Ele depois de “conhecer
o caminho” que Ele também já trilhou (quer dizer, o da Cruz e da santificação);
Como é este caminho? Ele mesmo o
responde: “Eu sou o caminho, a verdade e
a vida, ninguém vai ao Pai senão por mim”
(Jo 14, 6). Para se ir ao Pai (portanto, para as moradas celestes)
tem-se primeiro que seguir o caminho (que é a Cruz), a verdade (que é a Fé) e a
vida (que é o amor a Deus, a caridade), e tudo isto ninguém o fará se não for
por intermédio de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Como Deus “habita” ou
reina em nós
A) de forma “natural”
Segundo São Tomás de Aquino, Deus está
em nós, naturalmente falando, de três maneiras diferentes: por potência (todas as criaturas estão sujeitas a seu
império), por presença (por causa de sua onipresença) e por essência (porque
opera em toda parte e em toda parte Ele é a plenitude do ser e causa primeira
de tudo). Estas três maneiras são as mesmas com que Deus também está em toda a
criatura e não só nos homens.
B) pela lei da Graça
A Santíssima Trindade faz-se presente na
alma humana, transmitindo-lhe a vida divina: o Pai vem a nós e continua em nós
a gerar o Filho; com o Pai recebemos o Filho em nosso interior, e como fruto do
amor de ambos recebemos o Espírito Santo. Fazem as três pessoas divinas sua
morada em nossa alma e nos adotam como filho: se acolhemos, pois, em nossa
morada o nosso Criador, Redentor e Santificador, transmitem-nos assim
participação na vida divina.
Como, então, estando Deus em nosso
interior precisamos nos dirigir a Ele? É que Deus não se satisfaz em morar em
nosso interior apenas da forma natural, como fomos criados (a primeira acima),
mas principalmente de uma maneira sobrenatural. Então esta segunda forma de
morada não é sempre predominante nas almas, podendo estar ausente por causa dos
pecados. Além do mais, Deus pede que
façamos uma ascese em Sua busca para sermos perfeitos como Ele.
Segundo São Boaventura, o sumo bem
consiste na busca da felicidade, e estando o sumo bem em Deus, acima, pois, de
nós, ninguém pode tornar-se feliz se não
subir acima de si mesmo, não por ascensão corporal, mas de coração. “Ora, não podemos elevar-nos acima de nós
senão por uma força superior que nos eleve. Por mais que se disponham os
degraus interiores, se o auxílio divina não nos acompanha, nada se consegue”
Essa ascensão só se dará por via de aceitação da completa regência divina sobre
nós, nossa inteira submissão à vontade de Deus.
“Perdoai nossas dívidas...”
E tudo pode começar com o perdão de
nossas dívidas. O que é uma dívida? Trata-se de uma obrigação contraída,
decorrente de uma falta cometida ou de um benefício recebido. A dívida é
reconhecida pelo devedor pela promessa feita no ato em que é contraída.
Promete-se cumprir alguma coisa, como por exemplo a obrigação de restaurar ou
repor um bem. Deve quem faz a promessa.
Neste sentido, o homem tem muitas
dívidas para com Deus. Primeiramente vêm as dívidas pelos benefícios recebidos.
Pelo fato de haver sido criado, deve obrigações a Deus Pai Criador; pelo fato
de haver sido remido pelo Salvador, deve também obrigações ao Redentor; e por
causa das graças atuais que recebe da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o
Espírito Santo, o homem deve igualmente obrigações a cumprir na santificação de
sua alma.
Em segundo lugar vêm as dívidas
decorrentes da justiça, pois quando o homem peca, desobedecendo a Lei de Deus,
tem obrigação de reparar o mal cometido. Por tratar-se de danos espirituais o
homem só pode reparar os pecados mortais com os méritos de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Isso significa que,
arrependendo-se de seus pecados (dívida contraída por infração da Lei) procure
emendar-se de vida e tentar de alguma forma reparar o mal que fez. E só pode
fazê-lo no chamado Tribunal da Penitência, isto é, na Confissão. No entanto,
muitos pecados ocasionam danos irreparáveis na ordem natural, como por exemplo
um assassínio, mas reparáveis na ordem sobrenatural com o arrependimento, a
Confissão e a promessa de emenda de vida. Neste caso, a dívida é reconhecida
quando o pecador promete emenda de vida, após arrepender-se, mas só será
reparada no plano espiritual após a Confissão. .
Ficam ainda pendentes de remissão e
reparação as penas temporais, isto é, as conseqüências das dívidas
assumidas. Estas para serem remidas ou
pagas pelo homem são necessárias duas coisas:
o tempo e a intensidade e valor dos méritos. Neste último caso, os méritos serão medidos
pela intensidade do amor a Deus: quanto maior este amor, tanto mais intensa a
vontade de remir a dívida, tanto menor será o tempo. È por causa disso que
muitos não conseguem remir suas dívidas temporais no decorrer de sua vida: o
tempo não é suficiente porque não se ama a Deus com tanta intensidade.
Como se viu acima, o homem, por si
mesmo, às vezes não consegue remir suas próprias penas temporais enquanto vive,
pois além de não as pagar com grande intensidade de amor a Deus, de forma a
resgatá-las em pouco espaço de tempo, contrae novas dívidas e acumula sempre
mais débitos enquanto vive. Daí a necessidade do purgatório na outra vida, a
fim de resgatar no outro mundo aquilo que não conseguimos pagar neste.
Porque Nosso Senhor disse
“Perdoai nossas dívidas”...
A expressão foi contestada no período do
Concílio Vaticano II por duas razôes: a primeira por referir-se a problemas financeiros,
a conotação da palavra “dívida” nos leva sempre aos problemas com o dinheiro; a
segunda porque julgavam que São Mateus escreveu a palavra “dívidas” movido pelo
hábito de sua profissão, já que era cobrador de impostos. Julgou-se, assim, que
Nosso Senhor não chegou a pronunciar essa palavra e o mais adequado seria
“ofensas”.
Mas, não; a palavra “dívidas” constante
no Evangelho é de significação inteiramente teológica, e foi ela que realmente
Nosso Senhor pronunciou ao nos ensinar o Pai Nosso. Suas raízes estão, assim,
no Antigo Testamento. Vejamos um comentário extraído de um documento do
Vaticano, em que fala sobre a necessidade de pedirmos perdão de “nossas
dívidas”, tanto para com Deus como para com os demais homens:
“O Jubileu
bíblico
Um importante precedente bíblico para a reconciliação e a
superação de situações passadas é uma celebração do Jubileu, como ela é
regulada no livro do Levítico (capítulo 25). Em uma estrutura social composta
de tribos, clãs e famílias foram inevitavelmente criadas situações confusas
quando os indivíduos ou famílias em condições precárias devem
"resgatar" a si mesmos a partir de suas dificuldades, dando a posse
de suas terras ou casa, servos ou filhos aos que estavam em melhores condições
que a dele. Esse sistema teve o efeito de alguns israelitas vindo a sofrer
intolerável dívida, pobreza e escravidão, para o benefício dos outros filhos de
Israel, na mesma terra que havia sido dada por Deus. Isso poderia trazer que em
períodos mais ou menos longo de tempo, um território ou um clã cair nas mãos de
poucos ricos, enquanto o resto das famílias do clã chegou a estar em forma de
dívida ou a escravidão; eles foram forçados a viver em total dependência dos
mais ricos.
As leis de Levítico 25 é uma tentativa de reverter esta
(ao ponto de dúvida pode sempre colocar em um caminho cheio!) Convocada a
celebração do jubileu a cada cinqüenta anos, a fim de preservar a tecido social
do povo de Deus e restaurar a independência também menor país da família. Lv 25
é decisiva para a repetição regular da confissão de fé no Deus de Israel que
libertou o seu povo através do êxodo: "Eu sou o Senhor teu Deus que te
tirei da terra do Egito para dar ao Canaã e ser o vosso Deus "(Lv 25,38,
cf. vv.42.45). A celebração do Jubileu era uma implícita admissão de culpa e
uma tentativa de restabelecer uma ordem justa. Qualquer sistema afastaria
qualquer escravos israelitas no passado, mas agora liberado pelo braço poderoso
de
Deus, veio de fato para negar a ação salvífica de Deus no Êxodo e do Êxodo.
A libertação das vítimas e o sofrimento se torna parte do maior dos profetas. O
Deutero-Isaías, nos poemas do Servo Sofredor (42,1-9; 49,1-6, 50,13-53,12),
desenvolve estas alusões à prática do Jubileu com os temas de redenção e
retorno, a liberdade e a redenção. Isaías 58 é um atentado à observância ritual
que não leva em conta a justiça social, uma chamada para a libertação dos
oprimidos (Is 58,6), centrando-se especificamente sobre as obrigações de
parentesco (v.7). Mais claramente, Isaías 61 usa as imagens do Jubileu para
representar o Messias como o arauto de Deus enviado para
"evangelizar" os pobres, para proclamar a libertação aos cativos, e
proclamar o ano do Senhor. Significativamente é o mesmo texto, com uma alusão a
Isaías 58:6, que Jesus usou para apresentar o propósito de sua vida e seu
ministério em Lucas 4:17-21.
Quer dizer, a cada 50 anos o povo eleito
comemorava um jubileu, oportunidade em que todas as dívidas eram perdoadas, a
ponto de se tirar da escravidão aqueles que eram escravos por causa de dívidas,
fato corriqueiro naquele tempo. Assim, ficou entendido que o perdão das nossas
dívidas humanas tinha uma correlação, uma semelhança, com as divinas. E, na
realidade, conforme vimos acima, quando temos obrigações a cumprir com Deus ou
lhe prometemos vida recatada, temos aí dívidas a cumprir. O mesmo ocorrendo entre
os homens.
Não justifica, assim, discriminar a
palavra, julgando-a inadequada ou não apropriada para ser rezada no Pai Nosso,
colocando em seu lugar “ofensas”, que não é uma palavra que exige remissão e
correção, embora tenha um sentido de perdão para aquele que não as leva em
consideração ou esquece após o arrependimento do ofensor.
Em outro trecho do mesmo documento: “A seus discípulos Jesus lhes pede estar
sempre dispostos a perdoar a quantos os tenha ofendido, assim como Deus oferece
sempre seu perdão”. Aqui o texto fala do termo “ofensa”, mas logo em
seguida cita dessa forma a frase tirada de São Mateus: “Perdoa nossas dívidas assim como nós perdoamos a nossos devedores
(Mt 6, 12.12-15). Quem se encontra em grau de perdoar o próximo demonstra haver
compreendido a necessidade que pessoalmente tem do perdão de Deus. O discípulo
está convidado a perdoar “até setenta vezes sete” a quem o ofende, inclusive àquele
que não pedisse perdão (Mt 18, 21-22).
Quer dizer, o importante é estar sempre
disposto a perdoar: ou nossas dívidas ou as ofensas sofridas. Mas, dívidas não
se resumem somente às questões financeiras, como vimos acima, embora estas
sirvam de parâmetro para as outras.
As dívidas herdadas de
nossos pais
É constante na Sagrada Escritura aquela afirmação
de Jó: “Deus reservará para os filhos a pena do pai”. Vejamos alguns exemplos.
Após o dilúvio universal, Noé fez o
cultivo da uva e dela tirou vinho, que, ao bebê-lo pela primeira vez,
embriagou-se e tirou a roupa perante os filhos. Como Cam, ao contrário dos
outros, não cobriu sua nudez, Noé amaldiçoou sua descendência, dizendo:
"Maldito seja Canaã, ele será escravo dos escravos de seus irmãos.
E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaã seja seu escravo. Dilate
Deus a Jafet, e habite Jafet nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo"
(Gn 9, 25-27). A escravidão é imposta como uma maldição, trata-se portanto de
um castigo por causa do ato indigno que o filho praticara, porém não recai
sobre ele, Cam, mas sobre a sua descendência, representada por seu filho Canaã.
Tornou-se este, pois, escravo de seus tios. Seria uma espécie de maldição ou
condição imposta por Deus ao filho para reparar o erro praticado pelo pai. Será
que nós também não temos, muitas vezes, que fazer este tipo de reparação a Deus
por causa dos pecados de nossos pais?
A descendência de Abraão é prometida
profeticamente como numerosa, mas que “será reduzida à escravidão” (Gn 15, 13)
por mais de 400 anos. Então, Deus desejava que houvesse uma escravidão que
fosse exercida sobre todo um povo, e o seu Povo Eleito, como meio de fazê-lo
perfeito. Aqui não se trata propriamente de uma maldição, mas algo parecido,
pois Deus assim condena a descendência de Abraão, depois que "um horror
grande e tenebroso o acometeu": "Sabe, desde agora, que a tua
descendência será peregrina numa terra não sua, será reduzida à escravidão, e
afligida durante quatrocentos anos". Logo depois, Deus estabelece o
prêmio: "Mas eu exercerei os meus juízos sobre o povo ao qual estiverem
sujeitos; e sairão depois (desse país) com grandes riquezas" (Gn 15, 13-14).
Um outro episódio mostra outro aspecto
da questão: trata-se da reprimenda que a mulher de David, Micol, lhe fez,
aparentemente com boas intenções, mas podendo revelar fraqueza ou respeito
humano, talvez espírito vaidoso por ver o seu esposo e rei dançar com o povo e
se expor à cenas humilhantes, sendo por isso castigada com a esterilidade.
Assim narra o fato a Sagrada Escritura:
“Retirou-se
também Davi à sua casa, para a abençoar; e Micol, filha de Saul, tendo saído ao
encontro de Davi, disse: Que bela figura fez hoje o rei de Israel, despindo-se
diante das escravas e de seus vassalos, e desnudando-se como faria um
chocarreiro. Davi disse a Micol: Diante do Senhor, que me escolheu
preferindo-me a teu pai e a toda a sua família, e que me mandou que fosse eu o
condutor do povo do Senhor em Israel, não só dançarei, mas também me farei mais
vil do que me tenho feito, serei humilde os meus olhos, e com isto aparecerei
com mais glória diante das escravas, de que falaste. Por esta razão Micol,
filha de Saul, não teve filhos até ao dia da sua morte” (II Sam 6, 20-23).
O texto não dá a entender a causa de
Micol não ter tido filhos, se por ter ficado estéril ou porque Davi a rejeitou.
Em todo o caso, de uma forma ou de outra, naqueles tempos o fato de não ter
filhos era motivo de opróbrio para a mulher e o fato era sempre uma pena severa. E parece que a reprimenda que
ela deu ao rei não era tão má assim, pois o censurava por se expor perante as
escravas, dançando na frente delas. De outro lado, esta esposa de Davi foi
preservada na castidade pelo varão Falti, ao qual Saul havia entregue a filha
quando Davi foi para a guerra mas a devolveu intacta. Comenta Caetano que a
Sagrada Escritura mudou o nome de Falti para Faltiel quando este devolveu a
mulher de Davi sem tocá-la, pois a partícula “el” em hebraico quer dizer Deus, era como se
Falti tivesse adquirido com isto um dom divino. (II Sam 3, 14-16), passando a
ser chamado “Falti-el’, ou, “Falti de Deus”..
Portanto, nesta linha de pensamento, não
foi permitido a Micol ter filhos porque ela mesma poderia pagar em vida a pena
de seu pecado.
O
resgate das dívidas dos antepassados às vezes exige martírio dos filhos
Dois episódios da história de Davi
mostram a afirmação acima. O primeiro é relatado em II Samuel 21, 1-6:
Primeiramente um castigo de Deus aos filhos de Saul (por que “matou os
gabaonitas”), com uma fome que durou 3 anos. Dirigindo-se aos gabaonitas, Davi
pergunta o que fazer para reparar o erro de Saul e aí vem o segundo castigo com
o martírio exigido pelos ofendidos: “Sejam-nos dado sete de seus filhos, para
os crucificarmos diante do Senhor em Gaaba de Saul, que foi noutro tempo o
escolhido do Senhor”. E Davi concordou e deu os sete filhos para o sacrifício.
Pagaram os filhos com suas próprias vidas o pecado do pai.
No outro episódio é o próprio Davi que
peca, mandando fazer um censo que Deus não autorizara. Deus então castigou o
povo com uma peste: “Mandou, pois, o Senhor a peste a Israel, desde aquela manhã
até o tempo assinalado, e morreram do povo, desde Dan até Bersbéia, setenta mil
homens. E, tendo estendido o anjo do Senhor a sua mão sobre Jerusalém para a
destruir, o Senhor compadeceu-se da sua aflição, e disse ao anjo exterminador
do povo: Basta, detém agora a tua mão. O anjo do Senhor estava junto da eira de
Areuna, jebuseu. Davi, logo que viu o anjo ferindo o povo, disse ao Senhor: Eu
sou o que pequei, eu fui o que procedi mal; que fizeram estes, que são as
ovelhas? Volte-te, te peço, a tua mão contra mim, e contra a casa de meu pai” (II Sam 24, 15-17). Interessante notar que
tais castigos sempre vêm de elementos que não participam do ciclo dos amigos de
Deus: no caso concreto, o anjo exterminador estava junto a um local pertencente
a rei pagão, Areuna, da raça dos jebuseus, cujo local Davi comprou depois para
ali construir um altar a Deus.
Com o arrependimento de Davi e sua
expiação através de holocaustos, Deus suspendeu o castigo, inclusive o que o
rei pedira para si, mas apenas das penas temporais que eram as que o antigo
sacrifício remia.
Tobias, pagou as
“dívidas” do pai enquanto vivia, e por
isso teve fim feliz
Diferente foi o que ocorreu com os
Patriarcas Tobias, pai e filho.
A grande virtude de Tobias pai era a
prática da caridade para com os mortos, o que lhe tinha valido a perseguição do
rei. Mesmo tratando-se de um homem fiel a Deus foi submetido a terrível prova,
ficando completamente cego. A Sagrada Escritura compara sua provação com a de
Jó: “O Senhor permitiu que lhe
acontecesse esta prova, para que sua paciência servisse assim de exemplo aos
vindouros, como a do santo Jó. Porque, tendo sempre temido a Deus desde a
sua infância, e tendo guardado os seus mandamentos, não se entristeceu contra
Deus, por lhe ter acontecido a desgraça da cegueira, mas permaneceu firme no
temor de Deus, dando graças a Deus todos os dias da sua vida” (Tob 2, 12-14). Vê-se que, por suas
virtudes, Tobias pai não era merecedor de tal castigo, mas Deus pode ter
escolhido ele para remir dívidas temporais de seus ancestrais e assim se
santificar, sendo também exemplo para os filhos.
Os dois Tobias, pai e filho, viveram no
tempo da apostasia do rei Jeroboão (que deu origem ao cisma judaico) ao
primeiro cativeiro que sofreu os hebreus.
Como ele (o pai) praticava tanta caridade para com seus irmãos de raça e
de fé, era insultado até mesmo pelos parentes a amigos: “E, assim como os reis (ou poderosos) insultavam o bem-aventurado Jó
assim os parentes e amigos de Tobias escarneciam do seu modo de vida, dizendo:
Onde está a tua esperança, pela qual davas esmolas e sepultava os mortos? Mas
Tobias os repreendia, dizendo: Não faleis assim; porque nós somos filhos dos
santos e esperamos aquela vida que Deus há de dar aos que nunca afastam dele a
sua fé” (Tob 2, 15-18). Tamanha
esperança mostra a quanto levava sua fidelidade a Deus, mas vê-se que a virtude
da esperança requer paciência para se conseguir um bem muito grande mas a ser
efetivo numa data longínqua, como veremos adiante.
A exemplo de Jó, a própria esposa de
Tobias o insultava, dizendo: “Bem se vê
como as tuas esperanças são vãs e agora se fizeram ver as tuas esmolas”. Era
a pior das provações e dos tormentos: sofrer o desprezo e escárnio, explorando
o respeito humano, por causa da prática das virtudes e do amor a Deus. Era
necessário esperar confiante, mas, acima de tudo, sofrendo opróbrios.
Após
pagar as “dívidas” de seus pais nesta
vida, tem um fim ditoso e feliz
Assim conclui a Bíblia sobre o fim de
Tobias filho:
“Sucedeu
que Tobias, depois da morte de sua mãe, saiu de Nínive com sua mulher, os
filhos, e os filhos de seus filhos e voltou para casa de seus sogros.
Encontrou-os ainda com saúde numa ditosa velhice, tomou cuidado deles, ele
mesmo lhes fechou seus olhos e tomou posse de toda a herança da casa de Raguel. Viu os filhos de seus filhos até a quinta
geração.
“Tendo
vivido noventa e nove anos no temor do Senhor, sepultaram-no com alegria. Toda
a sua parentela e toda a sua geração perseverou no bem viver, no santo
procedimento, de modo que foram amados tanto por Deus como pelos homens e por
todos os habitantes do país” (Tob 14,
14-17).
Haverá um tempo em que
Deus abolirá esta lei
Isto ocorrerá quando a humanidade
estiver no fim, isto é, próximo do fim do mundo. No final dos tempos esta lei
de que os filhos podem pagar aqui na terra pelos pecados dos pais se
extinguirá. Isto por uma causa muito simples: não haverá mais tempo para cumprimento
das penas temporais aqui na terra, sendo que a intensidade dos sofrimentos dos
fins dos tempos suprirá o fator tempo.
A extinção desta lei está em Jeremias:
“Naqueles dias não se ouvirá mais dizer: os pais comeram uvas verdes e os
dentes dos filhos são os que ficaram botos” (Jer 31, 29). Aquele que “comer uva
verde”, isto é, pecar contra a lei de Deus “...cada um morrerá na sua
iniqüidade; todo o homem que comer uvas verdes, a esse é que ficarão botos os
dentes” (Jer 31, 30). Isto é,
não mais serão os filhos que pagarão as penas temporais dos pais, e sim,
eles mesmos.
Para tanto, todos receberão de Deus
graças especiais, num reino messiânico universal, onde impere completamente as
graças divinas. Será a época em que a regência divina será completa sobre a
Humanidade. Chegado aqueles tempos, diz Jeremias, Deus imprimirá sua lei nas
entranhas dos homens, escrevê-la-ás nos seus corações, ninguém ensinará mais a
seu próximo, nem a seu irmão, porque
Deus dará um grande perdão, já que chegou o fim dos tempos.
No mesmo sentido assim falou o Profeta
Ezequiel: “Por que é que convertestes em provérbio esta parábola na terra de
Israel, dizendo: Os pais comeram as uvas em agraço, e os dentes dos filhos é
que se acham botos? Juro, diz o Senhor Deus, que esta parábola não passará mais
entre vós por um provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como é
minha a alma do pai, assim o é também a alma do filho; a alma que pecar, essa
morrerá” (Ez 18, 2-4). Mas há uma
condição para que estas almas pertençam a Deus, ei-la: “Se um homem for justo e
proceder conforme e equidade e a justiça; se não comer nos montes e não
levantar os seus olhos para os ídolos da casa de Israel; se não ofender a mulher do seu próximo e não
se juntar com a menstruada; se não entristecer ninguém, se der o penhor ao seu
devedor, se não tirar nada do alheio por violência, se der do seu pão a quem
tem fome e ao nu cobrir com vestido; se não emprestar com usura e não receber
mais do que o que emprestou; se afastar a sua mão da iniqüidade e sentenciar com
justiça entre homem e homem; se andar nos meus preceitos e guardar os meus
mandamentos, para proceder segundo a verdade; este tal é justo, viverá
certissimamente, diz o senhor Deus” (Ez
18, 5-9).
O mesmo Profeta dirá, adiante, que os
filhos de maus pais morrerão se praticarem as mesmas iniqüidades, enquanto que
os bons filhos viverão (Ez 18, 10-18). O termo morrer, no caso, significa
perder a posse da graça divina. Foi com base nesse pressuposto que os judeus
interrogaram Nosso Senhor sobre de quem havia a culpa pela morte dos 18 homens
como conseqüência da queda da torre de Siloé. O Divino Mestre respondeu dando a
entender que a morte não é o pagamento
de dívidas (e sim a penitência), quando disse: “Assim como também aqueles
dezoito homens sobre os quais caiu a torre de Siloé, e os matou, julgais que
eles também foram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém.
Não, eu vo-lo digo; mas, se não fizerdes penitência, todos perecereis do mesmo
modo” (Lc 13, 4-5).
“Trabalhos
de Jesus” – Frei Tomé de Jesus – Lello & Irmão, 1951, pp. 295/299
São Cirilo de Alexandria (380-444), bispo e Doutor da
Igreja Comentário ao evangelho de João, 11, 7; Pg 74, 497-499 (a partir da
trad. Delhougne, Les Pères