(Comemorando-se hoje a festa de São Vicente
de Paulo, relembramos neste artigo de Dr. Plínio, escrito em 1944, o verdadeiro
espírito de caridade dos Santos, preocupados antes de tudo em combater o erro).
“Numa
época em que a política da mão estendida, condenada pelo Santo Padre Pio XI, de
novo tenta lançar uma ponte entre os católicos e os socialistas, é muito
oportuno lembrar o que sobre a união dos católicos disse o santo por excelência
da Caridade e do amor ao próximo, São Vicente de Paulo, cuja festa litúrgica
foi celebrada a 19 deste mês .
As
considerações que abaixo transcrevemos são sobretudo preciosas porque se
referem à união de católicos com “cristãos” jansenistas, numa época em que os
erros dos discípulos do Bispo de Ypres ainda não haviam sido condenados pela
Santa Sé. As cartas de São Vicente de Paulo que hoje transcrevemos, tratam
justamente da adoção de medidas tendentes a provocar um pronunciamento do Papa
sobre os pontos de doutrina que dividiam os católicos franceses.
Segundo
o Patrono das conferências vicentinas, fora da verdade nenhuma união é
desejável. E apesar da mensagem “cristã” mais ou menos “fraca” dos jansenistas,
era irredutível partidário de uma ruptura completa com eles.
Vejamos
o que sobre este assunto se acha no livro do Padre Charles Maignen, “Nouveau
Catholicisme et Nouveau Clergé”.
“É um alivio para o espírito e o coração,
quando colocamos de lado as tristezas e vergonhas do presente e nos
transportamos para as grandes épocas da história, na companhia dos santos.
Não há
leitura mais apropriada, neste sentido, que a dos capítulos da Vida de São
Vicente de Paulo, em que o Padre Maynard, seu historiador, narra as lutas do
santo contra o jansenismo.
Essas
páginas parecem escritas para a hora presente.
Os
processos dos jansenistas, seu modo de fazer polêmica e de desenvolver os
interesses do partido não são apenas semelhantes, são idênticos à maneira de
agir dos americanistas e católicos liberais de nosso tempo.
Não
pretendemos redizer como São Vicente de Paulo que perseguiu a seita e
atravessou seus projetos, denunciando-os à rainha, denunciando-os à Igreja e
escrevendo a todos os Bispos de França para levá-los a pedir ao Papa a
condenação das cinco proposições extraídas do livro “Augustinus”. Nós nos
limitaremos a reproduzir alguns trechos de suas cartas, em que o zelo do santo
aparece bem afastado dessa falsa virtude que protege o erro sob pretexto de
caridade.
Eis em
que termos Vicente de Paulo termina uma carta ao Bispo de Louçon, de 23 de abril
de 1651, a respeito dos jansenistas:
“É
grandemente de se desejar que tantas almas sejam alertadas... e que se impeça
em boa hora que outras entrem em uma facção tão perigosa. – O exemplo de um
chamado Labadie é uma prova da malignidade dessa doutrina. É um padre apóstata
que passava por grande pregador, o qual, depois de haver feito grandes danos na
Picardia e depois na Gasconha, fez-se huguenote em Montauban; e, por um livro
que escreveu de sua pretensa conversão, declara que tendo sido jansenista, achou
que a doutrina que ali se adota é a mesma crença que ele abraçou. E, com
efeito, Monsenhor, os ministros se vangloriam em seus sermões, falando a essa
gente, que a maioria dos católicos se acha de seu lado, e que em breve terão o
resto.”
Vê-se
que São Vicente de Paulo não desdenhava o testemunho dos padres apóstatas de
seu tempo. Logo depois dessas palavras, o santo acrescentava: “Assim sendo, que
não se deve fazer para extinguir esse fogo que dá vantagem aos inimigos jurados
de nossa Religião? Quem não se lançará sobre esse pequeno monstro que começa a
devastar a Igreja, e que afinal a desolará, se não for estrangulado ao nascer?
Que não desejariam ter feito tantos bravos e santos Bispos destes dias, se
fossem do tempo de Calvino? Vê-se agora a falta dos daquele tempo, que não se
opuseram fortemente a uma doutrina que devia causar tantas guerras e divisões.”
E São Vicente de Paulo insistia com o Bispo de Luçon para que “requeresse que
Nosso Santo Padre” falasse enfim “para reprimir essas opiniões novas que
simbolizam tanto com os erros de Calvino. Estará nisso a glória de Deus,
concluiu ele, o repouso da Igreja e, ouso dizê-lo, também do Estado.”
Mas
onde a clarividência e a energia de Vicente de Paulo aparecem com mais brilho,
é na admirável carta aos Bispos de Alet e de Pamiers, que estranhas razões de
prudência e de contemporização haviam levado a permanecer neutros no conflito.
São
Vicente de Paulo refuta, uma após outra, todas as razões que eles haviam
alegado em favor de sua abstenção. Essas razões são de todos os tempos e os
argumentos que São Vicente de Paulo lhes opõe não são menos probantes em nossos
dias do que no século dezessete:
“Monsenhores,
Recebi,
com o respeito que devo à vossa virtude e à vossa dignidade, a carta que me
haveis feito a honra de escrever no fim do mês de maio, para responder as
minhas a respeito das questões presentes, na qual vejo muitos pensamentos
dignos da posição que ocupais na Igreja e que parecem vos fazer inclinar ao
partido do silêncio nas contendas do momento atual. Não deixarei, entretanto,
de tomar a liberdade de vos apresentar algumas razões, que talvez vos poderão
levar a outros sentimentos, e que vos suplico, Monsenhores, prosternado em
espírito a vossos pés, vos digneis de boamente ouvir.
É,
primeiramente, sobre o que testemunhais recear que o julgamento que se deseja
de Sua Santidade não seja recebido com a submissão e a obediência que todos os
cristãos devem à voz do Soberano Pastor e que o Espírito de Deus não encontre
bastante docilidade nos corações para neles operar uma verdadeira união, eu vos
diria de bom grado que, quando as heresias de Lutero e de Calvino, por exemplo,
começaram a aparecer, se se tivesse esperado para condená-las até que seus
sectários parecessem dispostos a se submeter e a se unir, essas heresias
estariam ainda no número das coisas indiferentes, que podem ser seguidas ou
deixadas, e elas teriam infectado mais pessoas que o fizeram. Se, portanto,
essas opiniões, das quais vemos os efeitos perniciosos nas consciências, são
dessa natureza, em vão esperaremos que aqueles que as semeiam entrem em acordo
com os defensores da doutrina da Igreja, porque é isto que não devemos esperar,
e o que jamais acontecerá; e diferir a obtenção da condenação da Santa Sé, é
dar-lhes tempo de espalhar seu veneno, e é também privar a várias pessoas de
condição e de grande piedade, o mérito da obediência que protestaram render aos
decretos do Santo Padre, logo que os conheçam; tais pessoas não desejam senão
saber a verdade, e, enquanto esperam o efeito desse desejo, elas permanecem
sempre de boa fé nesse partido, que fazem aumentar e fortificar por esse meio;
a ele aderindo pela aparência do bem e pela reforma que pregam e que é a pele
de ovelha com que os verdadeiros lobos sempre se cobrem para enganar e seduzir as
almas.
Em
segundo lugar, o que vós dizeis, Monsenhores, que o calor dos dois partidos em
sustentar sua opinião deixa pouca esperança de uma perfeita união, à qual
entretanto se deve visar, me obriga a vos ponderar que não há união a fazer na
diversidade e contrariedade de sentimentos em matéria de Fé e de Religião, a
não ser apelando para um terceiro que não pode ser senão o Papa, na falta dos
Concílios e que aquele que não deseja unir-se nessa matéria, não é capaz de
nenhuma união, a qual fora disto não é mesmo desejável: porque as leis não se
devem jamais reconciliar com os crimes, não mais que a mentira concorda com a
verdade.
Em
terceiro lugar, essa uniformidade que desejais entre os Prelados seria bem de
se desejar, desde que sem prejuízo para a Fé, porque não deve haver união no
mal e no erro; mas quando essa união deve ser feita, a parte menor deve
procurar a maior, e o membro deve se unir à cabeça, que é o que se propõe, e
havendo ao menos, das seis partes, cinco que ofereceram de se ater ao que disser
o Papa na falta de um concílio, que não pode reunir-se por causa das guerras; e
quando, depois disso permanecer a divisão e se achardes melhor o cisma, deve-se
imputa-lo àqueles que não desejam juiz, nem se render à pluralidade dos Bispos,
aos quais. não acatam, do mesmo modo que não o fazem ao Papa.
E daí
se forma uma quarta razão, que serve de resposta ao que vos ocorreu de me
dizer, Monsenhores, que um e outro partido acreditam que a razão e a verdade se
acham de seu lado, o que concedo. Mas vós bem sabeis que todos os hereges têm
dito o mesmo, e que isto não os garantiu contra a condenação e os anátemas com
que têm sido fulminados pelos Papas e pelos concílios; não se achou que a união
com eles fosse um meio de sanar o mal, pelo contrário, foi-lhes aplicado o
ferro e o fogo e algumas vezes demasiadamente tarde, como pode acontecer agora.
É verdade que um partido acusa o outro, mas com esta diferença, que um pede
juízes, e que o outro não os deseja, o que é mau sinal. Ele não deseja remédio,
digo eu, da parte do Papa, porque sabe que é possível; e faz gesto de pedir
Concílio porque o crê impossível, no estado presente das coisas; e se pensasse
que ele fosse possível, rejeitá-lo-ia do mesmo modo que rejeita o outro. E não
será, segundo creio, motivo para o riso dos libertinos e hereges, nem escândalo
para os bons, ver os Bispos divididos, porque além de ser muito pequeno o
número dos que não desejam subscrever as cartas escritas ao Papa sobre este
assunto, não é coisa extraordinária, nos antigos Concílios, que todos não
tenham o mesmo sentimento; e é o que mostra também a necessidade que o Papa
conheça o assunto; pois que, como Vigário de Jesus Cristo, é o Chefe de toda a
Igreja, e por conseguinte o superior dos Bispos.
Em
quinto lugar, não vemos porque a guerra, por estar espalhada quase por toda a
Cristandade, há de impedir que o Papa julgue com todas as condições e
formalidades necessárias e prescritas pelo Concílio de Trento, a escolha das
quais este deixou nas mãos de Sua Santidade, a quem vários santos e antigos
Prelados tem ordinariamente consultado e reclamado nas dúvidas sobre a Fé,
mesmo quando reunidos, como se vê nos Santos Padres e nos anais eclesiásticos.
Ora, se se prevê que haverá quem não dê aquiescência ao seu julgamento, será
este um meio de discernir os verdadeiros filhos da Igreja dos rebeldes.
Quanto
ao remédio que propondes, Monsenhores, de proibir a um e outro partido de
dogmatizar, eu vos suplico muito humildemente que reconsidereis que isto já foi
experimentado inutilmente, e serviu apenas para dar força ao erro, porque vendo
que era tratado na mesma base que que a verdade, o erro se aproveitou
desse ensejo para se consolidar; e não
se deve tardar demasiadamente em extirpa-lo, visto que essa doutrina não se
aplica somente em teoria, mas que consistindo também na pratica, as
consciências não mais podem suportar a perturbação e a inquietação que nascem
dessa dúvida, a qual se forma no coração de cada um, a saber se Jesus Cristo
morreu por ele ou não, e outras semelhantes. Há pessoas que, ouvindo outros
dizerem, a moribundos, para consolá-los, que tivessem confiança na bondade de
Nosso Senhor, que morreu por eles, disseram aos doentes que não se fiassem
nisso, porque Nosso Senhor não havia morrido por todos.
“Permiti também, Monsenhores, acrescentar a
estas considerações que esses que fazem profissão da novidade, vendo que se
temem suas ameaças, as aumentam, e se preparam para uma forte rebelião; servem-se
de vosso silêncio como um poderoso argumento em seu favor, e mesmo se ufanam,
por um impresso que publicam, que sois de sua opinião; e, pelo contrário, os
que se conservam na simplicidade da antiga crença, se debilitam e se
desencorajam, vendo que não se acham universalmente sustentados. E não ficareis
um dia bem contristados, Monsenhores, se vosso nome, ainda que contra vossas
intenções, que são muito santas, tivesse servido para confirmar a uns em sua
obstinação, e para abalar a crença de outros?
“Quanto
a confiar o assunto a um concílio ecumênico, qual o meio de convoca-lo durante
estas guerras? Passaram-se quase quarenta anos desde que Lutero e Calvino
começaram a perturbar a Igreja e a convocação do Concílio de Trento. Segundo
este, não há mais pronto remédio que o de recorrer ao Papa, ao qual o próprio
Concílio de Trento nos encaminha em sua última sessão, no último capítulo, do
qual vos envio um excerto.
“Portanto,
Monsenhores, não se deve temer que o Papa não seja obedecido como é bem justo
quando se tiver pronunciado; porque além do que essa razão de temer a
desobediência é comum em todas as heresias, as quais por conseguinte
dever-se-ia deixar existir impunemente, nós temos um exemplo muito recente na
falsa doutrina dos dois pretensos chefes da igreja saída da mesma botica, a
qual, tendo sido condenada pelo Papa seu julgamento foi obedecido, e não mais
se fala dessa nova opinião. Certamente, Monsenhores, todas essas razões e
várias outras que vós sabeis melhor que eu, que desejaria aprender de vós, que
respeito, como meus pais e como doutores da Igreja, fizeram que restam
presentemente poucos prelados em França que não tenham assinado a carta que vos
foi apresentada.”
(Plínio Corrêa de Oliveira – “Legionário”, 30
de julho de 1944, pág. 5)
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