Como, pois, encontrar Deus dentro de si
mesmo? Procurando suas moradas interiores. E, não tanto a porta, mas a luz com
que podemos iluminar o caminho em busca destas moradas, é a luz da razão, o
“lúmen rationis”, o qual produzirá em nossa alma o clarão inicial com o Dom do
Entendimento. É claro que esta luz não terá nenhum brilho para iluminar o nosso
entendimento se não for alimentada por uma luz sobrenatural, a da graça
divina.
Todo homem possui um dom natural,
através do qual tem capacidade de analisar, distinguir e definir o que é bom do
que é mau. Primeiramente, a “luz da razão”
ou luz natural faz com que sua inteligência seja iluminada. Em segundo
lugar, funciona o que São Tomás de Aquino chama o “Princípio de Contradição”,
por onde o homem percebe as coisas boas e as coisas más. Desta forma temos aqui
explicitado o início do Dom do Entendimento na alma humana.
Foi baseado nesses princípios que Deus
determinou no Deuteronômio: “Amarás ao
Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma e com toda a tua
força. E estas palavras, que hoje eu
te intimo, estarão (gravadas) no teu coração, e tu as ensinarás a teus filhos,
e as meditarás sentado em tua casa, e andando pelo caminho, e estando no leito,
e ao levantar-se. E as atarás à tua mão como um sinal, e elas estarão como um
frontal diante dos teus olhos, e as escreverás sobre o limiar e sobre as portas
da tua casa” (Deut 6, 5-9). A Revelação primeira de Deus ao homem vem
para esta “luz interior”, seguida do conhecimento dos princípios para que se
chegue aos fins.
Este lugar recôndito da alma humana,
esta luz primordial, é onde Deus Se revela e faz com que o homem conheça os
mais elementares mistérios da Criação e da natureza divina. Foi assim que São
Pedro recebeu uma revelação divina, através desta luz natural e interior toda
sacral: “Bem-aventurado és tu, Simão,
filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o
meu Pai que está nos céus” (Mt 16, 17). Esta revelação foi uma iluminação divina que
tocou o centro da alma de São Pedro (o seu “lumen rationis”) diretamente de
Deus, sem qualquer intermediação, abrindo seu entendimento para compreender
aquelas sublimes verdades eternas que ele externou em seguida a Jesus. Não foi
a carne, isto é, algum ser humano, que o revelou, nem tampouco o sangue, ou
seja, algum pensamento seu ou de algum ensinamento herdado de antepassados. Foi
um Dom, o do entendimento, que Deus lhe deu gratuitamente naquele momento, e
com ele aquela revelação.
Segundo São Boaventura, o Dom do
Entendimento é “Regra das Circunspecções morais”, “Porta das Considerações Essenciais” e “Chave das Contemplações Celestes”.
a) Regra das Circunspecções morais – “Inteligência te darei e ensinar-te-ei o
caminho que deves seguir; fixarei sobre ti os meus olhos. Não queirais ser como
o cavalo e o mulo, que não têm entendimento. Com o cabresto e com o freio
sujeita (ó Senhor) as suas queixadas, quando não quiserem aproximar-se de
ti.(Sl 31, 8-9). Mostra-nos assim a
conveniência de sermos morigerados, não agindo nunca pelos ímpetos dos sentidos
mas segundo os juízos intelectuais (Sl 48,13).
Nos ensina o entendimento prudencial (Prov 2, 3-5), evitar o mal e fazer
o bem (Josué 1, 7) e esperar o Sumo Bem: memória das coisas passadas,
inteligência das presentes e circunspecção das futuras .
b) Porta das Considerações Essenciais
– Procede esta:
1. Da luz interior. Nossa alma tem
impressa sobre si uma certa luz natural, pela qual tem capacidade para conhecer
os primeiros princípios, ou, como o denomina São Tomás, o “Princípio de
Contradição”. Mas só esta luz não basta, porque conhecemos os princípios
enquanto conhecemos também os fins;
2. Da freqüência da experiência. De
muitas sensações se forma uma lembrança, de muitas lembranças uma experiência,
de muitas experiências se forma um universal, que é princípio de arte e ciência
(Eclo 34, 9).
3. Da iluminação da luz eterna. A
certeza vem de Deus (Dan 2, 21). Disse São João: “O Verbo era luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este
mundo” (Jo 1, 9). Esta iluminação é
ajudada pelos Anjos (Dan 8, 15), mas só Deus tem poder sobre a alma. O Anjo a
ajuda como alguém que abre uma janela, mas é o sol que ilumina o interior da
casa.
c) Chave das Contemplações Celestes -
Nos faz penetrar já no Dom da
Sabedoria (que veremos mais adiante).
O que é a Revelação
De um modo geral, revelação é um conhecimento
intelectual em que é desvendada uma ou mais verdades ocultas. “Stricto senso”,
a Revelação por excelência é o conhecimento dos planos de Deus na Criação, a
Encarnação do Verbo, os mistérios da Fé (a Natureza de Deus, a Santíssima
Trindade, etc.) e as operações divinas na Criação. “Lato senso”, Revelação são todas as coisas
novas de Deus, ou da vida divina, que antes eram desconhecidas pela
inteligência, mas que se referem a coisas acidentais e não falam diretamente da
Revelação “stricto senso”. Um exemplo
desta Revelação divina temos no Apocalipse de São João, enquanto nas últimas
aparições mariais tivemos vários exemplos de revelações “lato senso”.
Os meios com que Deus faz suas
revelações são:
a) Os Santos Anjos, os Santos
Bem-Aventurados e os próprios homens que vivem na terra, de uns para os outros
(“Abraão e seus profetas”, no dizer do pobre Lázaro da parábola), etc.
b) A Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade fez a principal Revelação de Deus, quando realizou na Sua pessoa os
planos divinos;
c) Meios acessórios: visões e sonhos
(nos sentidos corporais) e visões espirituais;
d) a luz interior ou locuções verbais
(v. adiante).
O fim último das revelações é fazer com
que os anjos e os homens, conhecendo mais perfeitamente Deus em seu interior
possa amá-Lo mais. As revelações proféticas visam menos os profetas do que as
pessoas a quem estes orientam e dirigem.
As locuções verbais
Locuções são coisas percebidas pelo
entendimento sem intervenção direta dos sentidos ou da razão. Podem ser: sucessivas,
formais e substanciais.
1. Locuções sucessivas – São
palavras e conclusões (pensamentos) que o espírito, recolhido em si, vai
formulando em meio à meditação; é como se outra pessoa dentro dela fosse
raciocinando, respondendo ou ensinando. A pessoa discorre como instrumento do
Espírito Santo.
2. Locuções formais – O espírito
as recebe sem concurso próprio, são frutos diretos da ação angélica no interior
da alma para instruí-la sobre ponto da Fé e inclinando a vontade para um fim
bom. Seria uma espécie de graça atual. Podem também ocorrer locuções formais
inspiradas pelo demônio, tentando inclinar a alma para o pecado, despertando um
apetite desordenado.
3. Locuções substanciais –
Distinguem-se das formais pelo efeito forte e formal que produzem na alma,
produzem o que dizem. É o próprio Deus movendo a alma para Si. É um ato de
afeto de Deus que repercute no interior da alma, atraindo-a fortemente para
Ele. As locuções substanciais é o meio mais comum com que Deus não só ilumina
mas atrai as almas pela sua luz natural.
A forma mais perfeita com que Deus faz
suas revelações é através das locuções verbais, pois inspira na alma um amor
mais perfeito às coisas celestes.
“Na
casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14, 2)
O que significa a expressão “Casa do meu
Pai?”. Trata-se do Templo de Deus. Foi assim que Ele se expressou ao expulsar
os vendilhões do Templo de Jerusalém: “Está escrito: a minha casa é uma casa de
oração e vós fizestes dela um covil de ladrões” (Lc 19, 45-46). A Casa de Deus,
o Templo de Deus e as moradas celestes são a mesma coisa, embora o Templo
citado acima diga respeito ao edifício de Jerusalém. E, no entanto, diz-se que
o Templo de Deus encontra-se no interior do homem; à semelhança de como está
Ele também no céu, encontra-se no coração e na alma do homem.
A morada pode ser entendida como um
lugar, o qual é destinado a acolher pessoas. Assim como as moradas celestes são
destinadas a acolher os bem-aventurados, as moradas de Deus no nosso interior
são destinadas a acolhê-Lo com o fim de adorá-Lo, reverenciá-Lo, obedecê-Lo, prestar-Lhe
culto, etc. Desta forma, as moradas celestes, a que se referia Nosso Senhor na
passagem acima, queria dizer de lugares destinados aos bem-aventurados na outra
vida. São os tronos celestes.
Da mesma forma, o fato de Nosso Senhor
dizer que são muitas as moradas, quer também significar a grande diversidade de
vida espiritual que cada um pode ter
para se chegar até Deus. Neste sentido, existem as moradas celestes e as de
Deus no interior de nossa alma. Nosso interior pode ter, neste sentido, dois
grandes castelos: um destinado a ser templo de Deus e outro destinado à Sua
morada. Melhor ainda, a mesma morada pode servir ela mesma de templo. Aliás,
uma só, não, várias moradas, como disse o próprio Nosso Senhor. Assim, mesmo
tendo Deus Pai em nosso interior como luz primeira de nossa existência,
precisamos preparar uma morada para Deus Filho e o Espírito Santo. São Paulo
disse: “Por essa causa dobro os meus
joelhos diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família,
quer nos céus, quer na terra, toma o nome, para que, segundo as riquezas de sua
glória, vos conceda que sejais corroborados em virtude, segundo o homem
interior, pelo seu Espírito, e que Cristo habite pela fé nos vossos corações,
de sorte que, arraigados e fundados na caridade, possais compreender, com todos
os santos, qual seja a largura e o comprimento, a altura e a profundidade; e
conhecer também o amor de Cristo, que excede toda a ciência, para que sejais
cheios de toda a plenitude de Deus” (Ef
3, 14-19)
Qual a finalidade das moradas celestes? Dar
descanso, gozo e paz (descanso não só como fim de nossas tribulações, mas como
êxtase nas coisas de Deus; gozo dos bens eternos e paz que é fruto da
tranqüilidade da ordem), pois esta é a finalidade de toda morada. E permitir à
contemplação do Eterno sem qualquer obscuridade de nosso espírito humano.
Por
causa disso, as moradas celestes devem ser compostas de substâncias espirituais
e corporais próprias do Empíreo (destinadas a acolher também as propriedades do
corpo ressurrecto: translucidez, sutileza, agilidade, ubiqüidade etc.), além de
dons, virtudes e graças para sustentar, alimentar e engrandecer corpo e alma. Os quais foram necessários à ascese na terra
de uma forma imperfeita quanto ao nosso uso, mas perfeitíssimos no céu por
causa de estarmos imersos em Deus.
Temos no interior de nossa alma os
reflexos das celestes moradas de Deus, os quais se tornam realidade com a vinda
da Santíssima Trindade para morar em nós.
Assim, Deus pode morar em nosso interior de uma forma natural, como reflexo de Suas perfeições (somos imagem
e semelhança de Deus) e também de uma forma completa através da ascese. Nós
somos também uma morada de Deus no verdadeiro sentido da palavra: “Se alguém me ama, guardará as minhas
palavras, meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos nele morada” (Jo 14, 23).
Como, então, poderemos chegar às moradas
divinas existentes no interior de nossa alma? Seguindo não somente o Decálogo,
mas os conselhos evangélicos. E neles vamos encontrar a fórmula que fará com
que o próprio Nosso Senhor venha fazer em nós a Sua morada e nos leve para a
Morada dEle:
“Depois
que eu tiver ido e vos tiver preparado o lugar, virei novamente e
tomar-vos-ei comigo para que, onde eu estou, estejais vós também. E vós
conheceis o caminho para ir onde vou” (Jo 14, 3-4):
Pelo que se viu acima, somente iremos
depois que Nosso Senhor foi, e somente iremos para o lugar que Ele nos preparou
juntamente com Ele mesmo. Da mesma forma, só iremos com Ele depois de “conhecer
o caminho” que Ele também já trilhou (quer dizer, o da Cruz e da santificação);
Como é este caminho? Ele mesmo o
responde: “Eu sou o caminho, a verdade e
a vida, ninguém vai ao Pai senão por mim”
(Jo 14, 6). Para se ir ao Pai (portanto, para as moradas celestes)
tem-se primeiro que seguir o caminho (que é a Cruz), a verdade (que é a Fé) e a
vida (que é o amor a Deus, a caridade), e tudo isto ninguém o fará se não for
por intermédio de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Como Deus “habita” em nós
a) de forma “natural”
Segundo São Tomás de Aquino, Deus está
em nós, naturalmente falando, de três maneiras diferentes: por potência (todas as criaturas estão sujeitas a seu
império), por presença (por causa de sua onipresência) e por essência (porque
opera em toda parte e em toda parte Ele é a plenitude do ser e causa primeira
de tudo).
b) pela lei da Graça
A Santíssima Trindade faz-se presente na
alma humana, transmitindo-lhe a vida divina: o Pai vem a nós e continua em nós
a gerar o Filho; com o Pai recebemos o Filho em nosso interior, e como fruto do
amor de ambos recebemos o Espírito Santo. Fazem as três pessoas divinas sua
morada em nossa alma e nos adotam como filho: acolhemos, pois, em nossa morada
o nosso Criador, Redentor e Santificador, dando-nos o caráter de participação
na vida divina.
Como, então, estando Deus em nosso
interior precisamos nos dirigir a Ele? É que Deus não se satisfaz em morar em
nosso interior apenas da forma natural, como fomos criados, mas principalmente
de uma maneira sobrenatural. Então esta segunda forma de morada não é sempre
predominante nas almas, podendo estar ausente por causa dos pecados. Além do mais, Deus pede que façamos uma ascese
em Sua busca para ser perfeitos como Ele.
Segundo São Boaventura, o sumo bem
consiste na busca da felicidade, e estando o sumo bem em Deus, acima pois de
nós, ninguém pode tornar-se feliz se não
subir acima de si mesmo, não por ascensão corporal, mas de coração. “Ora, não
podemos elevar-nos acima de nós senão por uma força superior que nos eleve. Por
mais que se disponham os degraus interiores, se o auxílio divina não nos
acompanha, nada se consegue” [1]
Deus exige de nós uma contínua oração
para subirmos até Ele, embora esteja Ele dentro de nós, de forma oculta e
reservada, sempre mais de forma natural do que sobrenatural a depender de nós
mesmos. Através desta contínua oração seremos iluminados para conhecer os
degraus interiores de ascensão até Deus.
Explica também São Boaventura que Deus
se manifesta nos seres criados através de vestígios e imagens. No homem, Deus
encontra-se como imagem e semelhança, mas no restante da criação material Deus
manifesta-se como vestígio. Temos, na criação, vestígios de Deus em tudo aquilo
que admiramos e no qual buscamos as perfeições divinas. Para chegarmos a
contemplar o Primeiro Princípio, que é espiritualíssimo, e que está muito acima
de nós, necessitamos passar pelos vestígios. Assim, temos na criação vestígios
corporais (que estão tanto em nós, no nosso corpo, quando nos outros seres
materiais), imagens e semelhanças (refletidas em nós e nos anjos) e eviternos
(termo que, a rigor, significa espírito).
São Boaventura colheu este ensinamento
dos vestígios e imagens de Deus em Santo Agostinho, e expôs um modo de
conhecê-los para mais apropriadamente aproximar-se de Deus e poder amá-Lo. O
vestígio é uma manifestação imprecisa e distante, um sinal vago sobre
determinada realidade. Desta forma, todos nos seres corpóreos encontram-se
apenas vestígios das perfeições divinas. Quanto à imagem, não: ela manifesta Deus
em nós de uma forma mais precisa, mais clara e direta, porque é uma semelhança
expressa. A Santíssima Trindade manifesta-se de forma mais perfeita, levando
sua imagem a todo o ser humano, através da alma, daí porque o homem é vestígio
de Deus enquanto corpo e imagem e semelhança enquanto espírito.
Santa Teresa de Jesus e as
moradas interiores:
Com uma rica imaginação, Santa Teresa de
Jesus construiu uma série de castelos ou moradas interiores, onde Deus vem
morar. Nossa alma está cheia de moradas, situadas no alta, embaixo, ao lado, no
meio, et.c. No centro da alma, a principal morada, é onde se passam as coisas mais secretas entre Deus e a
alma.
Ensina Santa Teresa como podemos entrar
no castelo (ou nessas moradas), sendo eles dentro de nós mesmos. A porta
principal, por onde se tem acesso a todas as moradas de Deus é a oração. Não é
ainda uma morada, mas uma porta, pela qual se entra em todas as moradas que há
ali. É um grande portão que dá acesso a um condomínio fechado de várias
moradas. Mas a oração deve estar com a atenção primeira voltada exclusivamente
para Deus, que está no centro do castelo. Desta forma, deve-se evitar entrar
levando consigo as muitas sevandijas[2]
que o mau odor de fora atraiu (amor-próprio, auto-suficiêncxia, etc.).
Primeira morada –
conhecimento de si mesmo
A primeira morada (ou segunda porta) é o
conhecimento de si mesmo. Logo na porta de entrada a pessoa verá a grandeza e
majestade de Deus contrastando com a sua própria baixeza: “...assim a alma no próprio conhecimento: creia-me e voe algumas vezes
a considerar a grandeza e a majestade do seu Deus. Aqui achará a sua baixeza,
melhor que em si mesma, e mais livre das sevandijas, que entram nas primeiras
moradas que são as do próprio conhecimento...”[3]
O
conhecimento de si mesmo, contrastando nossa pequenez e baixeza com a grande e
a majestade divinas, serve para nos estimular o santo temor de Deus. Nesta
primeira morada é muito renhido o combate para nela entrar, pois tem aqui o
demônio o seu maior empenho: “Terríveis
são os ardis e manhas do demônio para que as almas não se conheçam a si mesmas
nem entendam seus caminhos”.[4].
É tão importante esta morada que é também o conhecimento de si mesmo que São
Luís Grignion de Montfort pede nos exercícios de preparação da Consagração à Nossa
Senhora. [5]
O conhecimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo
A segunda morada já é divina pois temos
nela a companhia de Nosso Senhor. São Paulo parece falar desta morada quando
disse: “que Cristo habite pela fé nos
vossos corações, de sorte que, arraigados e fundados na caridade, possais
compreender, com todos os santos, qual seja a largura e o comprimento, a altura
e a profundidade; e conhecer também o amor de Cristo, que excede toda a
ciência, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (Ef 3, 15-19)
Da mesma forma, São Luís Grignion também
pede-a na preparação da Consagração à Nossa Senhora: O conhecimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo. [6] Nesta
morada se faz ouvir a voz de Cristo no interior: “Não digo que estas vozes e chamamentos sejam como outros que direi
depois, mas são palavras que se ouvem a gente boa, ou sermões ou com o que se
lê em bons livros e outras muitas coisas que tendes ouvido, com as quais Deus
chama; ou enfermidades, trabalhos e também com uma ou outra verdade que Ele
ensina naqueles instantes em que estamos em oração...”[7]
Santa
Teresa chama a essa morada de “ouvir” a voz de Cristo porque é nela que o nosso
Entendimento guarda para si as coisas boas do espírito, predispondo a alma para
o amor a Deus. Novo renhido combate a alma travará com o demônio, o qual tudo
fará para que a pessoa recue em seus bons propósitos: “todo o inferno se juntará para fazê-la tornar a sair para fora”[8].
E o conhecimento de Nosso Senhor só é perfeito através da sagrada cruz. É a
hora de abraçar a Cruz – a nossa empresa!
“...abraçai-vos com a Cruz que
vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deve ser a vossa empresa. A que
mais puder padecer, que padeça mais por Ele e será a que melhor se liberta. O
demais, como coisa acessória, se vo-lo der o Senhor, dai-Lhe muitas graças”[9]
Chegando a essa morada, impossível
voltar atrás: “Ora, pensar que havemos de
entrar no Céu e não entrar em nós, conhecendo-nos e considerando nossa miséria
e o que devemos a Deus e pedindo-Lhe muitas vezes misericórdia, é desatino”.[10] Conhecendo-se
a si mesmo, é chegado o momento de abraçar a cruz.
Nesta morada, ouviremos interiormente a
voz suave de Nosso Salvador, que disse: “Aquele que quiser vir após Mim,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”
S. Luís Maria Grignion de Montfort, em sua obra “Circular aos Amigos da
Cruz” nos ensina como dar ouvidos a tais conselhos. Toda a perfeição cristã
consiste nisto: 1º ) querer ser santo (aquele que quiser vir após Mim); 2º)
desapegar-se de tudo (renuncie a si mesmo); 3º) padecer com resignação (tome a
sua cruz), e 4º) obrar o Bem (siga-Me).
Como é doce e suave a voz interior de
Cristo. Ele diz assim “aquele que quiser”, faz tudo depender da própria vontade
nossa, nada é imposto. Mas há uma condição para isto, e é seguir após Ele, quer
dizer, no mesmo caminho que Ele houver trilhado, porque se nos desviarmos, tudo
se perde. Da mesma forma Ele exige que renunciemos a nós mesmos, para em
seguida nos pedir a parte mais difícil: tomar nossa cruz. Não pede para tomar
outra cruz, de outra pessoa, seja menos ou mais pesada, mas a nossa própria
cruz.
São Luís nos ensina como devemos
carregar nossa cruz: “...carregue com
alegria, abrace com entusiasmo e leve com valentia sobre seus ombros a própria
cruz e não a de outro: - a cruz, que minha Sabedoria a fabricou com número,
peso e medida; a cruz, cujas dimensões: espessura, altura, largura e
profundidade, tracei com minha própria mão com extraordinária perfeição; - a
cruz, que a tenho fabricado com um pedaço da que levei ao Calvário, como fruto
do amor infinito que te tenho; a cruz,
que é o maior regalo que posso fazer a meus eleitos neste mundo; a cruz,
constituída, quanto à sua espessura, pela perda dos bens, as humilhações,
menosprezos, dores, enfermidades e sofrimentos espirituais que, por minha
permissão, lhe sobrevirão dia a dia até á morte; a cruz, constituída, enquanto
a seu comprimento, por uma série de meses ou dias em que se verá cumulado de
calamidades, prostrado no leito, reduzido à mendicância, vítima de tentações,
sequidões, abandonos e outros apertos espirituais; - a cruz, constituída,
quanto à sua largura, pelas circunstâncias mas duras e amargas de parte de seus
amigos, servidores ou familiares; - a cruz, constituída, por último, quanto à
sua profundidade, pelas aflições mais ocultas com que o atormentarei, sem que
possa achar consolo nas criaturas. Estas, por ordem minha, lhe voltarão as
costas e se unirão a mim para fazer-lhe sofrer.
Que
a carregue. Que a carregue: que não a arraste, nem a recuse, nem a recorte, nem
a esconda. Em outras palavras, que a
leve com a mão no alto, sem impaciência nem repugnância, sem queixas nem
críticas voluntárias, sem meias tintas nem complacências, sem rubor nem
respeito humano.
Que
a carregue. Que a leve estampada na frente, dizendo como São Paulo: O que está
em mim, Deus me livre de gloriar-me mais que da cruz de nosso Senhor Jesus
Cristo (Gal. 6, 14), meu Mestre.
Que
a leve às costas, a exemplo de Jesus Cristo, para que a cruz seja a arma de
suas conquistas e o cetro de seu império.
Por
último, que a plante em seu coração pelo amor, para transformá-la em sarça
ardente, que dia e noite se abrase em puro amor de Deus, sem que chegue a
consumir-se.
A
cruz. Que carregue com a cruz, posto que nada há tão necessário, tão útil, tão
doce nem tão glorioso como padecer algo por Jesus Cristo”.[11]
Terceira morada – o santo
temor de Deus
Chegamos à terceira morada, o santo
temor de Deus, assim expresso na Sagrada Escritura:
“Beatus vir, qui tinet Dominus” (Salmo
111, 1), Isto é, feliz o homem que teme o Senhor.
“A judiciis enim tuis timui” – Eu temo, ó
Senhor, os teus juízos. (Sl 118, 120).
“Qui timet Deum, nihil negligit” – Quem
teme a Deus, nada negligencia. (Ecl 7,
19).
Dele também fala dois grandes santos:
“Quod non fecit Dominus, fecit baculus” –
Aquilo que não pôde obter o temor de Deus, obteve o bastão (Santo Agostinho)
“Por mais que o homem seja poderoso, rico,
ilustrado e forte, se não teme a Deus, não vale nada. Donde, no Salmo: “Não faz o Senhor caso da
força do cavalo, nem se compraz em que o homem tenha pés robustos. Se compraz,
sim, naqueles que o temem e nos que confiam em sua misericórdia” (Sl 146,
10-11); (São Boaventura).
“Em terceiro lugar, vale o temor de Deus
para obter a ilustração da divina sabedoria, porque “o princípio da sabedoria é o temor do Senhor”(Prov 9, 10). É, com
efeito, o temor do Senhor principio extrínseco e princípio intrínseco da
sabedoria e complemento da mesma; porque há temor servil, e este é iniciativa
da sabedoria, porque, assim como a corda ou pêlo grosso introduz o fio e não
fica com o fio, assim o temor servil
introduz a sabedoria e não permanece com a sabedoria. Outro temor é o da
vingança e ofensa de Deus, e este é princípio intrínseco da sabedoria e raiz da
sabedoria. O terceiro temor é o da reverência filial, e este é o complemento da
sabedoria, porque “o complemento da
sabedoria consiste em temer a Deus” (São
Boaventura).
Através do temor de Deus se estimula no
interior da alma os outros dons do Espírito Santo, especialmente a humildade, a
esperança e confiança, assim bem como a entrega completa à vontade de Deus. As
pessoas que desta forma possuem o temor de Deus, diz Santa Teresa, “são muito desejosas de não ofender a Sua
Majestade, e até mesmo dos pecados veniais se guardam, e amigas de fazer penitência;
têm suas obras de recolhimehto, gastam bem o tempo, exercitando-se em obras de
caridade com os próximos, muito concertadas no seu falar e vestir e governo da
casa, as que a têm” [12]
A estas alturas a pessoa aprende a afastar
para longe de si os falsos temores, os quais tiram da pessoa a virtude da
Confiança. Santa Teresa define esta estado de espírito da seguinte forma: “Como vamos com tanto senso, tudo nos
ofende, porque tudo tememos; e assim,
não ousamos passar adiante, como se nós pudéssemos chegar a estas moradas e
outros andassem o caminho. Pois como isto não é possível, esforcemo-nos, irmãs
minhas, por amor do Senhor; deixemos nossa razão e temores em Suas mãos;
esqueçamos esta fraqueza natural que tanto nos pode ocupar” [13]
Ocorre também nestas moradas um grande
perigo de voltar às anteriores, pois as almas “Por mais determinadas que
estejam em não ofender o Senhor, semelhantes pessoas procederão com acerto não
se metendo em ocasiões de O ofender; porque, como estão perto das primeiras
moradas, com facilidade poderão voltrar a elas” [14] Santa Teresa diz isto porque é muito volúvel
a alma humana sem a graça divina, e até este momento (apesar de tudo o que se
faz é sempre através de graças divinas) Deus espera mais que a pessoa caminhe
em direção dEle, faz muita coisa depender de certo esforço pessoal. E aí, entra
a ação dos sntidos, da memória das coisas passadas, as ocasiões, e a pessoa
pode fraquejar e fazer um recuo, e num limiar importante das moradas
interiores, pois a seguinte será uma das moradas mais profundas e deificantes.
O amplexo da alma com Deus, a morada do amor
O leitor deve ter percebido que ora utilizamos o termo
“morada”, no singular, ora “moradas”, no plural. É preciso que se explique: não
existe uma só morada – a primeira, a segunda, a terceira, nunca existem
sozinhas. Como se trata algo de espiritual, uma morada está dentro da outra:
por isso quando se entra na segunda e terceira, ou qualquer uma seguinte, não
se está apenas naquela que se entrou. A alma continua com as moradas anteriores,
embora tenham influênxia secundária nas etapas seguintes do caminho da
perfeição.
Nas moradas anteriores, é como se a alma
fosse adentrando em vários conjuntos residenciais, os chamados condomínios
fechados, situados dentro de círculos. Nos três primeiros círculos é como se
fosse ainda a periferia das moradas divinas no interior da alma. A pessoa pode
ir de um a outro, às vezes voltando ao primeiro, ao segundo, indo de novo ao
terceiro, porque nestas moradas a alma encontra apenas vestígios de Deus, por
onde O amará de forma indireta. Chegamos, porém, ao centro principal das morada
interiores, de onde dificilmente se poderá retornar ao início. É a quarta
morada.
Santa Teresa diz que é necessário ter
vivido muitos anos nas moradas anteriores para se chegar às quartas moradas,
pois o Rei do castelo exige muito preparo de seus visitantes. E aqui que se
encontra o centro da alma, onde Deus opera suas maravilhas, onde ausculta
nossos pensamentos e desejos. É onde também há segredis que nem nós mesmos entendemos.
Para se entrar na quarta morada não é
necessário nenhum esforço nosso, pois tudo aí depende só de Deus. Compete-nos
apenas estar preparado. É a hora em que o Rei sai de seu castelo e vem ao nosso
encontro para receber-nos em suas dependências reais. Daí em diante só
caminharemos nas moradas interiores com Ele, não de forma indireta como nas
anteriores, mas com sua presença viva.
É onde temos mais embevecimento com as
coisas divinas. Diz Santa Teresa: “Como
estas moradas estão mais pertos de onde está o Rei, é grande a sua formosura e
há coisas tão delicadas para ver e entender, que o entendimento não é capaz de
poder achar maneira de dizer sequer alguma coisa que venha tão ajustada, que
não fique bem obscura para os que não tenham experiência...”[15]. Assim, torna-se
necessário recebermos um Dom interior, o Dom do Entendimento, para que possamos
entender tudo o que ocorre nestas moradas.
Mas o que é o entendimento? Segundo São
Boaventura, o Dom do Entendimento é “Regra das Circunspecções morais”, “Porta
das Considerações Essenciais” e “Chave
das Contemplações Celestes”.
a) Regra das Circunspecções morais – “Inteligência te darei e ensinar-te-ei o
caminho que deves seguir; fixarei sobre ti os meus olhos. Não queirais ser como
o cavalo e o mulo, que não têm entendimento. Com o cabresto e com o freio
sujeita (ó Senhor) as suas queixadas, quando não quiserem aproximar-se de
ti.(Sl 31, 8-9). Mostra-nos assim a
conveniência de sermos morigerados, não agindo nunca pelos ímpetos dos sentidos
mas segundo os juízos intelectuais (Sl 48,13).
Nos ensina o entendimento prudencial (Prov 2, 3-5), evitar o mal e fazer
o bem (Josué 1, 7) e esperar o Sumo Bem: memória das coisas passadas,
inteligência das presentes e circunspecção das futuras .
b) Porta das Considerações Essenciais
– Procede esta:
1. Da luz interior. Nossa alma tem
impressa sobre si uma certa luz natural, pela qual tem capacidade para conhecer
os primeiros princípios, ou, como o denomina São Tomás, o “Princípio de
Contradição”. Mas só esta luz não basta, porque conhecemos os princípios
enquanto conhecemos também os fins;
2. Da freqüência da experiência. De
muitas sensações se forma uma lembrança, de muitas lembranças uma experiência,
de muitas experiências se forma um universal, que é princípio de arte e ciência
(Eclo 34, 9).
3. Da iluminação da luz eterna. A
certeza vem de Deus (Dan 2, 21). Disse São João: “O Verbo era luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este
mundo” (Jo 1, 9). Esta iluminação é
ajudada pelos Anjos (Dan 8, 15), mas só Deus tem poder sobre a alma. O Anjo a
ajuda como alguém que abre uma janela, mas é o sol que ilumina o interior da
casa.
c) Chave das Contemplações Celestes
- Nos faz penetrar já no Dom da Sabedoria
Santa Teresa diz
que este dom de entendimento não é o pensamento ou a imaginação: “Porque, como o entendimento é uma das
potências da alma, tornava-se-me duro estar ele tão volúvel, às vezes, pois de
ordinário voa o pensamento tão rápido, que só Deus o pode atar quando assim nos
ata, de maneira que parece estarmos de algum modo desatados deste corpo”. [16]
[1]
Itinerário da Mente para Deus – Cap. I
[2]
Sevandijas – insetos que parasitam nas coisas podres.
[3] Obras
Completas – Santa Teresa de Jesus – Carmelo do Coração Imaculado de Maria –
Porto – pág. 652
[4] p. cir.
pág. 654
[5] Tratado
da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem – Ed. Vozes, pág. 270
[6] Idem,
pág. 271
[7] Obras de
Santa Teresa –op. cit. – pág. 660
[8] op. cit.
pág. 663
[9] idem,
pág. 665
[10] idem,
pág. 666
[11] San
Luís Maria Grignion de Montfort – Obras – BAC – págs. 218/219
[12] op.cit.
pág. 671
[13] op.
cit. pág. 678
[14] op.
cit. pág. 681
[15] op. cit
pág; 683
[16] op.
cit. pág. 687
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