Concluímos a transcrição do texto de Dr. Plínio sobre a revolução feminista, extraído da obra "Notas Autobiográficas" (Editora Retornarei, págs. 163/192, vol II)
Outros aspectos de uma decadência
Além dessas modas, as senhoras começaram a usar dois
novos tipos de chapéu: o canotier[1] e o
chapeau cloche[2].
Este último era de feltro, em forma de sino, assumindo exatamente o formato da cabeça.
Ambos os chapéus eram simples cuias com pequenas abas, muito diferentes dos
chapéus do avant-guerre, os quais eram verdadeiras bandejas onde se
representavam os reinos vegetal e animal: jardins zoológicos e botânicos de
borracha, com fitas de veludo, cabeças da passarinhos, cachos de cerejas,
flores, plumas e algumas figuras mitológicas, o que era passavelmente ridículo
e, de fato, não podia durar mais.
Entretanto, quando as damas aderiram à moda dos chapéus
canotier e cloche, passaram de um ridículo para o outro.
Elas também deixavam de usar adornos bonitos. Por
exemplo, sumiram de repente as aigrettes[3] e
também algo que era muito freqüente em grandes recepções: diademas feitos de
casco de tartaruga, de uma cor marrom, semelhante ao âmbar. Esse enfeite
circundava a cabeça das senhoras e tinha um dispositivo no qual se prendiam
penas de garças muito delicadas, o que formava uma espécie de chafariz seco, de
mil gotas de água, de um branco éclatant[4]. Era
estupendo!
Ao mesmo tempo, o cumprimento às senhoras começou a
mudar. Muitas pessoas, que costumavam despedir-se dos conhecidos apenas com um
gesto de mão, quando encontravam senhoras idosas – ou simplesmente de idade
madura – ainda lhes osculavam a mão para cumprimentá-las, mesmo se fossem da
parentela íntima. Nessa nova fase, os mais modernizados, pelo contrário, davam
um handshake[5],
sacudindo a mão da senhora. Era o respeito às damas, valor da cultura ocidental
e européia, que minguava diante do igualitarismo invasor. A senhora tradicional
cumprimentava sorrindo e dando a mão a beijar, enquanto a moderna apertava a
mão do homem e olhava-o bem nos olhos. A senhora moderna começava a fumar,
enquanto muitas damas tradicionais consideravam isso um desdouro. O modo de
rir, de vestir, de andar, de falar, de comer, de pensar e de ser começava a
variar de matizes, de uma dama para outra.
As jóias falsas
No período anterior à Primeira Guerra Mundial, as
senhoras de São Paulo possuíam boas jóias, luxuosas ou modestas, mas não
existia propriamente bijuteria.
Era freqüente ver alguma mulher do povo usando grossos
brincos de ouro, constituídos por simples argolas. Ela os trouxera de sua terra
natal – algum lugar da Itália, de Portugal ou da Espanha – onde já os utilizara
enquanto camponesa e chegara ao Brasil com eles. Era a sua pequena jóia.
Entretanto, acabada a guerra, tudo começou a mudar e
entrou a indústria das jóias falsas na cidade. Eu assisti a essa “invasão”, a
qual foi simultânea à influência norte-americana e teve seus primórdios do
seguinte modo:
Houve no século XIX uma difusão de grandes e verdadeiras
jóias, maior do que havia sido nos períodos anteriores. O contato com o Oriente
e a África, favorecido pelas navegações, tornou mais fácil, por exemplo, para
uma lady inglesa de 1850, obter um belo colar de brilhantes, do que o fora no
século XVI. O resultado foi que algumas jóias suntuosas tornaram-se mais
freqüentes.
Depois, a indústria e o comércio tornaram possíveis as
imensas fortunas, cujos proprietários se permitiam tais aquisições: mandavam
vir essas pedrarias e enfeitavam-se com elas. Então, os donos das jóias médias
sentiram uma espécie de vazio e um desejo de se ornarem com os objetos
imponentes e belíssimos, que os recursos da grande classe permitiam. Ora, isso
não sendo possível, apareceu o bluff[6]: a
jóia industrial.
Ela começou a fazer-se presente no Brasil poucos anos
depois da Grande Guerra. Havia em São Paulo uma loja famosa – provavelmente
norte-americana – com o nome de uma empresa que comercializava essas jóias em
vários países do mundo: a Casa Sloper.
Nela não se vendiam propriamente jóias falsificadas, que
dessem a impressão de serem verdadeiras, mas jóias-fantasia, sem a dignidade
das jóias reais. Ou seja: bijuteria ordinária, ostensivamente inautêntica e
não-preciosa, com aspectos que não existem na natureza.
O colar de “pérolas” marca Sloper, por exemplo, era
escandalosamente falso, pois nem sequer visava imitar pérolas autênticas, mas
era constituído por enormes bolotas brancas, de um tamanho que nem o Xá da
Pérsia possuía... Esses enfeites eram fabricados com matéria muito barata,
produzida para dar lucro, e procurando disfarçar pelo volume a ausência de
qualidade.
Havia na loja inúmeros objetos desse gênero: colares de
uma tonalidade fosca, feitos de pequenas pedras extraídas das Cataratas do
Niágara; grandes anéis verdes, de certa massa antecessora do plástico;
colossais “brilhantes” e vistosas “ametistas”, elaborados com cacos de vidro,
ou ainda objetos de certa matéria amarelada, que lembrava o âmbar sem imitá-lo,
e de outra substância vermelha, semelhante a uma bala ordinária lambida por
alguma criança...
Uma dama de olhos azuis ou verdes comprava uma bagatela
dessas, com cores semelhantes para combinar com sua fisionomia, enfeitava-se
para realçar a própria beleza e saía à rua, toda jactanciosa, como se fosse
possuidora de um grande adorno. Assim, várias senhoras que não tinham as
superjoias riquíssimas vindas da Pérsia ou da Índia, começaram a tomar certo ar
de alegria, de despreocupação e de saliência, num estado de espírito em que a
ilusão substituía a autenticidade.
Essa indústria das pseudojoias tornava possível a
qualquer pessoa cobrir-se de bijuterias baratas, e a jóia autêntica perdeu
muito de seu poder de destaque. Então, essas peças falsas começaram a ser
usadas também pelas senhoras que possuíam jóias verdadeiras. E, com o passar
dos anos, mesmo as mais ricas, se não comprassem jóias de marca Sloper,
sentiam-se fora da moda.
As abotoaduras para os homens e meninos, as quais eram,
com freqüência, feitas de ouro e pedras preciosas, também passaram a ser
“falsificadas” pela Casa Sloper, apresentando enormes “safiras” e “rubis” de
aspecto cafajeste.
Lembro-me do choque de algumas poucas senhoras, vendo
aparecer essas jóias espalhafatosas na atmosfera da vida social distinta. Apesar
de não dizê-lo, elas tinham a seguinte idéia, ditada pelo bom senso: quem faz
tal espalhafato quer chamar a atenção sobre si e, no fundo, é capaz de
indiscrições, frivolidades, vaidades e traições. Alguém que utilize essas
jóias, deu um passo no caminho que as pessoas de má reputação percorrem até o
fim.
Certa vez, compareci a um jantar no qual estava presente
uma senhora distinta e educada, com uma jóia colossal. Era um colar
representando grandes argolas de ouro, com uma espécie de disco feito de alguma
matéria de cor creme, contendo uma série de pequenos traços verdes.
Ela parecia contentíssima, não por aquilo ser bonito, mas
pelo simples fato de tratar-se de uma novidade. Sentou-se no meio das outras,
esperando que todas comentassem o enfeite, mas desde logo ninguém se
pronunciou. Eu estava sentado bem em frente a ela e observei o colar, que à
primeira vista me pareceu lindo. Conhecendo bem a pessoa, sabia que, pelos seus
recursos, não poderia comprar uma jóia que parecia de tão alto valor para os
meus olhos de criança inexperiente, mas depois comecei a perceber que o objeto
tinha uma cor de gema de ovo muito decepcionante. Em certo momento alguém
perguntou a ela:
- Diga-me, onde você comprou esse pendetif[7] tão
vistoso?
Ela disse:
- Quanto você acha que paguei por isto?
O interlocutor, para ser amável, atribuiu um alto preço
ao pendetif. Ela respondeu:
- Nunca! Comprei-o apenas por tanto na Casa Sloper.
- Mas... Você tem boas jóias! Por que colocou isso no
pescoço?
- Ha-ha-ha! Nestes tempos novos não se faz questão de
objetos tão caros. Pode-se aplicar o preço da jóia em negócios e utilizar uma
destas simples, mas bonita e atraente! Com isso eu fico mais moça e mais
elegante do que vocês! Para que gastar dinheiro com as jóias pequenas, quando é
possível possuir uma grande? Vocês todos deveriam comprar jóias na Sloper!
Essa senhora se admirava enormemente a si própria, por
julgar-se esperta, mas não percebia que ela tinha sido “pato” da Casa Sloper.
Percebi ser aquilo um sintoma de um movimento que tomava
conta do mundo, banalizando e vulgarizando tudo, inclusive as pessoas que me
eram chegadas. Com indiferença e menosprezo, elas largavam aquilo que na
véspera haviam amado...
Certo dia, andando pela Rua Direita, de repente dei com a
vitrine dessa loja e parei para examiná-la. Havia ali toda espécie de
penduricalhos: tudo vistoso, chamejante e ordinário! Pensei: “Aqui está a praça
dos horrores. Soou um gongo na história do pensamento humano! O que há no fundo
de tudo isso é igualitarismo! Essa é uma moda pregada por aqueles que desejam
acabar com as jóias verdadeiras, para fazer cessar o adorno da riqueza. A
partir de agora, o homem ou a senhora não brilharão mais pelas suas jóias, mas
por possuírem uma fábrica ou um banco...
E notei que o uso das jóias começava a ser abolido, não
para promover a humildade, mas para enfear tudo e banir os reflexos de Deus na
sociedade humana.
A possível atitude daquelas que possuíam a
chave da situação
Lembro-me de uma cena que presenciei aos onze ou doze
anos de idade, em certa casa de São Paulo, cujos donos celebravam as suas bodas
de prata.
Compareci com minha irmã à comemoração, que se realizava
numa sala de visitas, de bom nível, com bonitos móveis, um piano de cauda e
alguns assentos que chamavam de pouf, nos quais habitualmente sentavam-se as
pessoas mais jovens e modernizadas. A noite já vinha caindo, as janelas estavam
fechadas, havia alguns abajures acesos e reinava uma discreta penumbra naquele
ambiente, onde a dona da casa recebia as amigas, conquanto os homens permaneciam
no escritório do marido dela.
Entramos falando e dando risadas, como fazem as crianças,
e encontramos todas aquelas senhoras vestidas com dignidade, decência e
compostura, usando leques, mas sem movimentá-los muito, e conversando baixinho,
como convinha num salão de tanta categoria.
Tive uma enorme impressão de tédio e de frustração. Elas
próprias não encontravam graça nem davam importância nenhuma à conversa.
Estavam lá por mera obrigação, desejando, no fundo, abandonar aquele ambiente
conservador e espalhar-se pela rua. Imediatamente veio-me a seguinte idéia: “Se
essas senhoras deixassem a dormideira, cessassem de cochichar por trás dos
leques e, junto às suas respectivas famílias, falassem contra a modernidade,
atacando o que deve ser atacado; se elas se pronunciassem contra o espírito
revolucionário que Hollywood espalha pelo mundo; se fizessem isso no Brasil
inteiro, elas ainda poderiam dar à sociedade um bom impulso que dificilmente
não seria vitorioso, desde que as técnicas adequadas fossem empregadas.
“Na realidade, elas não percebem que possuem a chave da
situação e têm as cartas na mão para ganhar a partida, pois, apesar de tudo, se
agissem com energia, seriam ouvidas e teriam peso nos acontecimentos. Mas... haverá um meio de fazer com que elas
se movam nesse sentido?”
A minha resposta era a seguinte: “Elas não se movem, pois
vêem o mundo da mocidade e da adolescência caminhar, como imenso rebanho sem
pastor, na direção de Hollywood. Então, permanecem amedrontadas e deixam o mal
avançar”.
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