O movimento feminista data de eras bem remotas, mas teve grande impulso no Brasil no século XIX. Transcrevo abaixo, parte do Capítulo
VIII de “Notas Autobiográficas”, de Plínio Corrêa de Oliveira [1],
onde o Autor faz profunda análise psicológica sobre as mudanças ocorridas no
mundo feminino após o fim da “Bélle Epoque”, isto é, após a Primeira Guerra
Mundial.
“Se alguém quisesse estudar a histórias dessas grandes
mudanças no Brasil, verificaria que, na realidade, as primeiras transformações
tiveram início antes da Primeira Guerra Mundial, quando os eflúvios do
movimento feminista europeu chegaram ao País. Houvera então uma primeira quebra
na estrutura da sociedade, com enorme importância na evolução do pensamento das
classes dirigentes.
Ausência do espírito de Cavalaria
Em via de regra, o homem do século XIX, inclusive o nobre
europeu, já havia perdido o espírito da Cavalaria medieval.
Ora, esse espírito constituía uma das mais altas posturas
do modo de ser masculino, a qual também se refletia nas senhoras, de algum
modo. Ou seja, a dama de outrora não era propriamente uma “cavaleira”, mas, por
admirar o ideal da Cavalaria, nela surgia uma nobreza de alma que a elevava
acima da própria debilidade feminina, sem tirar-lhe a delicadeza.
Entretanto, no período do romantismo, com a ausência
desse ideal, as senhoras manifestaram uma fragilidade excessiva, a qual causou
ume espécie de saturação e uma sede do contrário, que a Revolução soube
explorar posteriormente através do movimento feminista, procurando completar a
figura feminina com certa nota de força que a dama do século XIX evidentemente
não possuía.
Então, os impulsionadores desse movimento disseram à
mulher do século XX: “Você não percebe que é uma fracalhona, e que alguma coisa
falta à impostação de sua alma?”
Muitas se deixaram iludir.
Impossibilitadas de se voltarem para a tradição, porque
desta havia sido arrancado um elemento integrante, fundamental, passaram a admirar
apenas os homens que realizavam o ideal dos personagens de cinema, apresentando
certas formas de heroísmo – já não cavalheiresco, mas cavalar – e parecendo ter
algo daquela fortaleza de espírito que os românticos haviam perdido. Em última
análise, grande parte da modernização do elemento feminino decorreu de que a
admiração à Cavalaria lhe foi tirada.
Assim, a vingança da realidade contra a ablação do
espírito de Cavalaria foi a mentalidade cowboy e self-made man para os homens,
nos estilos norte-americanos, e para as mulheres, o movimento feminista.
As senhoras da Belle Époque e o prestígio
materno
Como se apresentava o elemento feminino da alta sociedade
de São Paulo, antes da Guerra de 1914?
Elas ainda possuíam algo da dama romântica do século XIX,
para a qual era bonito ser melancólica, dolorida, sofredora, langorosa e um
pouco doente; a mulher que afirmasse possuir uma saúde de ferro rebaixar-se-ia
imediatamente para a categoria das sentimentalidades vulgares. Inclusive para
as moças desse século, ficava bem ter alguma doença do fígado ou aquilo que
chamavam de “migrânea”: uma forma elaborada de enxaqueca.
E, como era próprio à Belle Époque, essa indisposição se
curava com sais lindos, vindos da França, cheios de valor simbólico. Então,
existiam grandes vidros com tampas de cristal facetado – o que exercia sobre
mim uma verdadeira fascinação, por ter sido sempre entusiasta das policromias
-, os quais continham uma série de quadradinhos, com cores diferentes e
virtudes próprias, dentro de um líquido que parecia possuir a síntese
transparente de todos aqueles coloridos.
A senhora tirava a tampa com certo esforço, mas com um
gesto muito bonito, depositava aquele cristal grosso e prestigioso sobre uma mesinha e, com um
lenço comprido na mão, dizia:
- Estou passando muito mal.
Então, revestida de uma bela robe de chambre de tecido
leve, gola grande e mangas largas, ela se deitava num canapé, apoiava um braço
no encosto e aspirava os perfumes. Os filhos estremeciam de ternura, o marido
de sentia altamente orgulhoso de ter como esposa uma dama tão requintada e a
velha avó temia pela vida de sua filha.
Era o rito da doença e da tristeza, o qual fazia parte do
prestígio materno. Uma senhora que não tivesse de vez em quando uma “migrânea”,
se degradaria algum tanto.
Alguém poderá objetar que, desse modo, uma senhora é
pouco útil. Respondo: para os assuntos administrativos, é verdade. Porém ela é
útil para certas coisas tidas como inúteis, mas que são, na realidade, de um
importância muito maior: os imponderáveis da vida do lar. Compreendo que, com
uma mãe assim, a despensa esteja menos guarnecida e as refeições possam padecer
um pouco, mas, afinal de contas, uma casa de família não é um restaurante de
estação, no qual é preciso almoçar na hora certa, pois o trem vai partir: ela é
antes de tudo um santuário.
De fato, essas senhoras tinham algo de bonecas e muito de
oco, mas eram verdadeiras e simbólicas “damas-santuário”, que sabiam
utilizar-se de maravilhosas técnicas para a produção de prestígio, o que era
uma obra-prima da civilização. Um dos melhores benefícios que os pais podem dar
aos filhos – ou os superiores aos súditos – é exatamente esse dom do prestígio,
pois está na ordem das qualidades morais e incute o senso religioso da vida
.
A dama infeliz, nos estilos do século XIX
Também fazia parte desse rito a tristeza da vida familiar
infeliz. Se um matrimônio fosse inteiramente bem sucedido, no estilo do happy
end, ele se desmoronaria.
Em geral, as moças eram educadas em colégios de freiras e
se casavam eximiamente puras e inocentes. Quando contraíam núpcias, havia uma
grande festa com o aspecto clássico do casamento feliz, com grande amor
recíproco entre os esposos, e ambos partiam para a lua-de-mel. Ao voltarem, iam
morar numa bonita casa, e transcorriam um ou dois anos até ocorrer algum
episódio, pelo qual começava para ela a tragédia:
- Meu marido não é que eu pensava! A vida não é mais nada
para mim!
Logo ia pedir conselho à freira que a educara – quase
sempre francesa -, a qual dizia:
- Mon enfant, Il faut
souffrir.[2]
Às vezes, a jovem esposa ia falar com algum padre ou,
inclusive, com os próprios pais. E, como o pai era muito esquivo na matéria,
ela pedia o apoio dos irmãos:
- Falem com meu marido!
Mas os irmãos eram também esquivos, pois, naquelas
cidades pequenas, onde cada um conhecia os costumes de todos, eles não ousavam
interpelar o cunhado...
Então, começava a longa vida da esposa abandonada,
corretíssima e sublime, mas sempre sofredora e com ar de desilusão. Essa
situação, entretanto, era cultivada também de modo bonito. Em certas ocasiões,
por exemplo, a família estava reunida e todos conversavam, mas a senhora tinha
uma atitude característica: o seu riso era mais discreto e ela mantinha longos
silêncios em que permanecia olhando para o infinito, sem divertir-se com nada.
Perto dela estava o marido, com cabelos frisados, bigode à la Kaiser, colarinho
alto e punho duro. Ele não se incomodava com o drama dela e, pelo contrário,
mostrava-se sempre animado e satisfeito.
Era esse o adorno da mulher, até o fim de sua vida. Isso
não excluía que, quando o marido morresse, ela vestisse um luto pesado e
manifestasse grande tristeza. Quando a alguém a questionava sobre o defunto,
ela dizia, influenciada pela educação da freira francesa:
- Coitado! Apesar de tudo, ele era o pai de meus filhos e
eu senti muito a sua morte.
Em algumas ocasiões, ele chamava a esposa na última hora
e pedia-lhe perdão. Ela o perdoava de todo o coração, e a reconciliação era
completa.
Entretanto, nomeio de mil casais existia um ou outro muito
bem sucedido. Mesmo assim, quando isso acontecia, a senhora não se dava por
feliz e, então, insistia no assunto das doenças e mal-estares nervosos, pois a
dama perfeitamente contente e bem-disposta era uma raridade que não quadrava
bem com a época. O normal era a posição romântica diante da dor, a qual era
considerada bonita no século XIX e prolongou-se de algum modo pelo século XX
adentro.
Fragilidade e choramingo
Em minha época de jovem existiam ainda mulheres
“retardadas”, no padrão da sofredora do século XIX, cujo sentimentalismo era
representado pelas valsas da Áustria e da França. Até o início dos anos 20,
inclusive, era apreciado o tipo de moça muito feminina, graciosa, etérea, com
uma voz cândida e comparável a uma flor. Assim, eram freqüentes os nomes como
Dália, Rosa ou Margarida.
Lembro-me, por exemplo, de alguns trechos de uma canção
que se ouvia por toda parte, a qual todo mundo sabia cantar:
“Mimosa, tão delicada e melindrosa...
Tens o perfume de uma rosa...
Mimosa...”[3]
Eu também a aprendi, de tanto ouvi-la, e cantava a
“Mimosa” a plenos pulmões, com voz de estentor e sem malícia nenhuma.
Entretanto, analisando o estado de espírito que essa música representava,
pensava: “Isso parece razoável, pois está de acordo com a natureza feminina,
mas, no fundo, de que serve toda essa fragilidade? Uma mulher tão delicada, se
tiver uma grande dificuldade na vida, se desfará em poeira, pois ela só sabe
choramingar e cantar canções chorosas! É necessário ter força, energia, ênfase
e resolução!”
Mulheres inconformadas
Então, a dama dos primórdios do século XX era uma pessoa
hesitante entre duas correntes: tinha algo da senhora simbólica do período do
romantismo, mas, por outro lado, também possuía aspectos da jovem moderna e
esportiva que começava a aparecer, modelada pela Paris do avant-guerre.[4]
Esta não era mais a cidade solene, aristocrática e
romântica, mas era a Paris da opereta e do chamado Vaudeville: teatrinho
ligeiro com temas engraçados; a Paris em que já haviam entrado o automobilismo,
a luz elétrica, o futebol e sobretudo a bicicleta, em especial uma delas, de
forma ridícula, com uma roda enorme e outra pequena.
Muitos desses inventos haviam nascido no século XIX, mas
eles só começaram a impregnar largamente as mentalidades no começo do século XX.
Nesse sentido, a Exposição Mundial de 1900, na própria Paris, havia apresentado
mil atrações exóticas, que causaram um interesse fabuloso.
Tudo isso produziu um novo tipo de moça: contente,
saudável, atraindo não mais pela beleza e pelo prestígio como a antiga, mas
pela leveza, pela movimentação e pelas gargalhadas sonoras. Enquanto as
senhoras do romantismo quase não riam, a nova geração se utilizava das grandes
risadas como meio de impressionar. Jovens engraçadas, repetindo pequenos ditos
e muito mais iniciadas nos problemas da vida, por meio de números condutos:
governantas pouco recomendáveis, romances, teatros e cinemas, bem como por
conselhos das próprias mães, que não queriam sujeitar as filhas aos desgostos
que elas mesmas haviam sofrido. Eram, sobretudo, moças muito pouco dispostas a
assumir o papel da esposa infeliz.
Nascia uma inconformidade da mulher em relação a certos
estilos de vida do romantismo, nos quais ela ainda vivia: a proibição de sair a
sós, o noivado acompanhado por uma velha senhora que chamavam de
pau-de-cabeleira e mil outros costumes que não morreram tão depressa, mas que,
sobretudo no Brasil, sobreviveram por algum tempo e levaram decênios para
desaparecer.
Assim como existe a explosão da bomba atômica e a sua
posterior radioatividade, desse modo houve a “explosão” feminista e depois as
suas conseqüências, as quais foram se desdobrando indefinidamente.
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