O Reino de Cristo é o reino do amor. São Francisco
de Sales escreveu talvez a mais completa obra que trata do amor de Deus. E nela
consta a forma como Nosso Senhor praticou os mais excelentes atos de amor,
realçando que neles estava o cerne de sua regência sobre os homens:
“1º. –
Amou-nos com amor de complacência, porque cifrou as suas delícias em estar com
os filhos dos homens (Prov. 8, 31) e atrair o homem a si, fazendo-se homem como
ele.
2º. – Amou-nos
com amor de benevolência, derramando a própria Divindade no homem, elevando o
homem até Deus.
3º. – Uniu-se
a nós por uma incompreensível conjunção, aderindo e ligando-se à natureza tão
fortemente, indissoluvelmente e infinitamente, que coisa alguma foi jamais tão
unida e ligada à humanidade, como o é agora a augustíssima Divindade na pessoa
do Filho de Deus.
4º. –
Derramou-se todo em nós, e por assim dizer, abismou a sua grandeza, para a
reduzir às mesquinhas proporções da nossa pequenez; por isso se chamou “fonte
de água viva” (Jer. 2, 13), orvalho e chuva do Céu (Is. 45, 8).
5º. – Esteve
em êxtase, não só, diz São Dinis, em virtude do excesso de sua amorosa bondade,
que o arrebatou para fora de si, estendendo a sua Providência a todas as coisas
e encontrando-se em todas as coisas, mas também porque, como diz São Paulo
(Fil. 2, 7), Jesus esqueceu-se de si, abstraiu-se de si, despojou-se da própria
grandeza, da sua glória, apeou-se do trono da sua incompreensível majestade, e
se é mister tal expressão, “aniquilou-se”, para descer até à nossa humanidade e
encher de sua Divindade o nosso ser, saciar-nos de sua bondade suprema,
elevar-nos à sua dignidade, e dar-nos a divina natureza de “filhos de Deus”.
“E Aquele de
quem se escreveu tantas.vezes: “Eu vivo em mim, disse o Senhor” pode depois
dizer na linguagem de seu Apóstolo: “Eu vivo, mas não sou eu mesmo que vivo, é
o homem que vive em mim (Gal 2, 20); A minha vida é o homem, e morrer por ele é
o meu lucro (Fil 1, 21); A minha vida oculta-se com o homem em Deus (Col. 3,3(.
“Aquele que
antes habitava em si, habita agora em nós, e O que viveu durante a sucessão dos
séculos no “seio do seu eterno Pai” (Jo 1, 8), vestiu-se da mortalidade no seio
de sua Mãe temporal; Aquele que vivia eternamente da existência divina, viveu
temporariamente da vida humana, e Aquele que nunca, eternamente, deixara de ser
Deus, será, perpetuamente também, homem, de tal modo o amor do homem o
arrebatou e elevou ao êxtase!
6º. – Admirou
muitas vezes por dileção, como fez com o Centurião (Mt 8, 10) e a Cananéia (Mt
15, 28).
7º. – Atentou
no jovem que até então observara os mandamentos e desejava adianta-se na
perfeição (Mc 10, 21).
8º. –
Descansou amorosamente em nós, e até com suspensão de sentidos no ventre de sua
puríssima Mãe, e durante a sua infância.
9º. – Teve
incomparáveis ternuras para as criancinhas, que abraçava, acalentando-as com
amor (Mc 10, 16); para Marta e Madalena (Jo 11, 5), para Lázaro, por quem
chorou (Jo 35, 36), como pela cidade de Jerusalém (Lc 19, 41).
10º. – Animou-se
de incomparável zelo, que, como diz São Dionísio, se converteu em ciúme,
desviando, enquanto nele habitou, todo o mal da sua muito amada natureza
humana, com perigo e à custa da própria vida; afugentando o diabo, “rei do
mundo” (Jo 16, 30), que parecia ser seu rival e companheiro.
11º. – Teve
milhares de amorosos desfalecimentos; pois de que procederiam aquelas divinas
palavras: “Eu hei de ser batizado com batismo de sangue; e como me sinto
angustiado e ansioso por que ele se realize?” (Lc 12, 50). Ainda se não aproximava a hora em que havia
de ser batizado no próprio sangue e já suspirava por sê-lo, porque o amor que
nos tinha O obrigava a livrar-nos da morte eterna, à custa da própria vida.
“Por isso
esteve triste e suou o sangue da agonia
no Jardim das Oliveiras (Mt 26, 37-38), não só em virtude da extrema dor, que a
sua alma sentia na parte inferior da razão, mas pelo supremo amor que nos
dedicava na parte superior dela: a dor dava-lhe o horror da morte e o amor um
extraordinário desejo de a consumar. De modo que se lhe travou no espírito um
combate rude e uma cruel agonia se manifestou entre o desejo e o horror da
morte, até à grande efusão do sangue, que correu como fonte de água viva,
jorrando pelo solo.
12º. – Enfim,
Teotimo, este divino Amante morreu no meio das chamas e ardores da dileção,
pela caridade que tinha por nós e pela força e virtude do amor, isto é, morreu
amando, morreu por amor e de amor.
“Posto que
aqueles cruéis suplícios bastassem para fazer morrer quem quer que fosse, não
podia contudo a morte penetrar na vida dAquele que tem as chaves de ambas (Apoc
1, 18) se o divino amor, que governa e maneja essas chaves, não abrisse as portas à morte, para esta poder
lançar-se sobre aquele divino corpo e arrebatar-lhe a vida. O amor não se
contentaria com o fazer mortal por nós se lhe não desse a morte.
“Foi por eleição,
e não por força do mal, que Ele morreu: “Ninguém me tira a vida” (Jo 10, 17-18), disse ele, “sou eu que a
deixo e a tiro a mim mesmo; tenho o poder de a deixar e de a reaver quando
quiser. Ofereceu-se, diz Isaías (Is 53, 7) porque quis.
“Não se diz,
portanto, que o seu espírito voou, deixando-O e separando-se d’Ele; mas ao
contrário, que Ele despediu o seu espírito, soltou-o e entregou-o e pô-lo nas
mãos de seu Eterno Pai (Mt 27, 50); tanto que Santo Atanásio nota que Ele
abaixou a cabeça para morrer, consentindo e facilitando a vinda da morte, que,
de outro modo, não ousaria aproximar-se-lhe, e soltando um grande grito,
entregou o seu espírito a seu Pai (Lc 23, 46), para provar que assim como tinha
força e alento para não morrer, também tinha suficiente amor para não poder
viver, sem fazer ressuscitar com a sua morte aqueles que, sem isso, não podiam
jamais evitar a morte, nem aspirar à verdadeira vida.
“Foi,
portanto, o sacrificador da própria existência, foi quem ofereceu a seu Pai, e
se imolou por amor, ao amor, para o amor, pelo amor e de amor.
“Não podemos
no entanto afirmar que esta amorosa morte do Salvador se verificasse à maneira
de arrebatamento, porque o objeto pelo qual a sua caridade o levou à morte não
era tão amável que pudesse arrebatar para si aquela divina alma, que saiu do
corpo a modo de êxtase, impelida pela afluência e força do amor.
“À semelhança
da mirra, que expele o primeiro licor,
pela sua grande abundância, sem que ninguém o lance fora, nem o tire, também o
mesmo Jesus, como já expliquei, disse: “Ninguém me tirou nem arrebatou a alma;
fui eu que voluntariamente a dei.
“Ah! Senhor, que extraordinário incentivo para nos
entusiasmardes nos exercícios do santo amor ao Salvador divino, que é tão bom,
o vermos que Jesus os praticou com tão excessivo amor por nós, que somos tão
maus!
“Vês, Teotimo,
como a caridade de Jesus Cristo nos obriga?”
(II Cor 5, 14).
(Tratado do Amor de Deus – São Francisco de Sales –
Livraria Apostolado da Imprensa, págs. 489/493)
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