A COMUNIDADE DOS ESTADOS SEGUNDO A IGREJA
DESFAZENDO EXPLORAÇÕES MARITAINISTAS
Publicamos hoje, com subtítulos desta
redação e diretamente traduzido da "Acta Apostolicae Sedis", o texto
integral da importantíssima alocução dirigida pelo Santo Padre Pio XII,
gloriosamente reinante, em 6 de dezembro p.p., aos membros da União dos
Juristas Católicos Italianos, reunidos para estudar um tema de palpitante
atualidade: "nação e comunidade internacional".
Nesta alocução, o Sumo Pontífice deu
importantes ensinamentos doutrinários, e diretrizes práticas muito precisas,
sobre dois problemas que vinham de há tempo preocupando a opinião católica:
1) como considerar a formação dos
grandes blocos nacionais e a estruturação eventual de uma organização mundial
das nações?
2) que atitude deveriam tomar os
países católicos se a condição para que se realizasse tal organização fosse a
liberdade, para os hereges, ou pagãos, de praticar em seu território cultos
contrários à Santa Igreja?
Estas duas questões, distintas em si mesmas,
mas muito afins, evocam outra mais alta, isto é, a das relações entre o Poder
Espiritual e o Temporal, a Igreja e o Estado. Expliquemos porque.
A Cristandade medieval
Na Idade Média, a Europa,
homogeneamente católica, formou uma família de nações sob a direção espiritual
vigorosa e constante dos Papas, e a presidência temporal mais ou menos efetiva,
e mais ou menos honorífica, dos imperadores do Sacro Império Romano Alemão. Era
a Cristandade. Teoricamente, e muitas vezes também na prática, esta família de
nações constituía um só bloco a defender a civilização cristã contra os
maometanos, ou contra os bárbaros que infestavam as fronteiras orientais da
Cristandade.
No plano interno dessa comunidade, os
Papas exerciam a função de verdadeiros mantenedores do direito natural e do
direito cristão, principalmente no tocante às relações entre os diversos países
católicos, e de defensores supremos da Fé, mobilizando quando necessário o
gládio do Estado para a debelação das heresias.
Esta função tem sido muito estudada.
Dos numerosos livros que sobre ela se tem publicado nenhum, talvez, seja tão
sugestivo quanto a monumental compilação de atos pontifícios sobretudo
medievais, apresentada sob o título de "Acta Juris Gentium
Pontificia" por dois professores da Universidade do Sagrado Coração de
Milão, o Conde Giorgio Balladore Pallieri e Giulio Vismara ( Milão, Società
Editrice "Vita e Pensiero", 1946 ).
Nela se lê ( pág. 7, nº 24 ), entre
outros documentos, a famosa carta "Apud Urbem veterem" de 27
de Agosto de 1263, do Papa Urbano IV a Ricardo, Rei eleito dos Romanos:
"Aquele que rege o céu e a terra,
isto é, aquele que conhece a ordem do céu e pode constituir na terra a imagem
da ordem celeste, pode também derivar das coisas superiores exemplos para as
inferiores; e, assim como constituiu no firmamento celeste dois grandes
luzeiros para que alternadamente iluminem o mundo, assim também, na terra
instituindo no firmamento da Igreja Universal seus maiores dons, a saber, o
Sacerdócio e o Império, para o regime pleno das coisas espirituais e mundanas,
discriminou de tal maneira as funções de ambos os poderes que por sua formal
diversidade jamais se contrariassem um ao outro. Antes pelo contrário, na
execução do governo cometido em razão de seu ofício concordem na união dos
fins. Assim o inegável proveito da concórdia de ambos proporcionará tanto a
mútua defesa quanto os auxílios mútuos, e alcançará que mais livremente se
mantenha a justiça, venha a paz ao mundo, se assegure a tranqüilidade e se
fomente a união. Com efeito, o Império é orientado para a salvação pela
autoridade sacerdotal, e, auxiliado pela proteção desta, serenadas perturbações
iminentes, se torna tranqüilo e estável. O Sacerdócio por sua vez deve ter um
refúgio piedoso e seguro na mansidão e veneração do Imperador. Presidindo pelo
fastígio do Império romano deve este desempenhar, com relação à Igreja, o
ofício de especial advogado e precípuo defensor. Na fortaleza de seu braço
defendam-se as liberdades da Igreja, e mantenham-se os direitos destas liberdades;
extirpem-se as heresias; amplie-se o culto da Fé cristã, debelados os inimigos
desta, conserve-se o povo cristão na beleza da paz e repouse numa opulenta
tranqüilidade".
E na pág. 8 ( nº 27 ), se encontra o
seguinte texto ainda mais famoso, de Bonifácio VIII, extraído da Bula "Unam
Sanctam", de 18 de novembro de 1302: "A fé nos urge a crer e
afirmar uma Santa Igreja Católica, e Apostólica, e nós o cremos com firmeza e o
confessamos. Fora desta Igreja, não há salvação, nem remissão dos pecados,
consoante o que diz o Esposo no Cântico dos Cânticos: ‘Uma é a minha pomba, a
minha perfeita. Uma é sua mãe, eleita sua progenitora’. Ela representa um só
corpo místico, cuja cabeça é Cristo, como de Cristo a cabeça é Deus. Nessa
Igreja, há um só Deus, uma só fé, um só batismo.
"Uma foi, de fato, ao tempo de
Noé, a arca que prefigurava uma só Igreja, arca essa que... teve um só piloto e
chefe, e fora da qual, segundo lemos, toda a subsistência foi destruída na
terra. A esta única Igreja veneramos, segundo as palavras do Senhor pelo
Profeta: ‘Tira, Senhor, das chamas minha alma, e das garras do cão minha
única’. Rezou Ele por sua alma, isto é, por si mesmo, a cabeça e o corpo, e a
seu corpo chamou sua única Igreja, única por causa da unidade do Esposo, da fé,
dos sacramentos, e da caridade da Igreja. Esta é aquela única e inconsútil
túnica do Senhor, que não foi dilacerada...
- "Portanto, esta Igreja una e
única tem um só corpo, uma só cabeça, não duas cabeças como se fora um monstro.
Jesus Cristo, e o Vigário de Cristo, Pedro com seu sucessor, consoante as
palavras de Jesus Cristo a Pedro: ‘Apascenta as minhas ovelhas’. As minhas,
disse Ele, de maneira geral, e não singularmente estas ou aquelas; pelo que se
entende que lhe entregou todas. Eis que os gregos, ou outros que se dizem não
entregues a Pedro, são forçados a confessar que não são ovelhas de Cristo,
porquanto diz o Senhor em São
João que há um só rebanho e um só Pastor.
"Nesta Igreja, e em seu poder, se
encontram duas espadas, a espiritual e a temporal, segundo nos ensinam os
Evangelhos. Com efeito, aos Apóstolos que diziam: ‘eis aqui duas espadas’ -
aqui, isto é, na Igreja - não respondeu o Senhor que era demais, mas que era
bastante. E é certo que aquele que nega que no poder de Pedro há o gládio
temporal entende mal ao Senhor quando exclama: ‘Coloca tua espada na bainha’.
"Uma e outra espada pois, a
espiritual e a material, se encontram no poder da Igreja: a material, para ser
usada em seu benefício; a espiritual, para que a própria Igreja a use. A
segunda se encontra na mão do Sacerdote, a primeira, na dos Reis e soldados,
mas sob o arbítrio e a moderação do Sacerdote. É necessário, com efeito, que
uma espada esteja sob outra espada, e que a autoridade temporal se submeta ao
poder espiritual. Diz, com efeito, o Apóstolo: ‘Não há poder que não venha de
Deus’: as coisas que vêm de Deus são ordenadas. Não seriam, no entanto,
ordenadas se a espada não estivesse sob a espada, e a inferior não fosse
ordenada pela outra em benefício das coisas supremas.
"Com efeito, não é conforme à
ordem do Universo que todas as coisas se disponham imediatamente, e sim que a
ordem se faça pela ação dos médios sobre os ínfimos, e dos superiores sobre os
inferiores. Ora, é preciso afirmarmos que o poder espiritual tem uma dignidade
e nobreza superiores ao poder temporal, o que é tanto mais evidente quanto
maior é a excelência das coisas espirituais sobre as temporais. O que aparece
claramente em razão dos dízimos, das benções, da santificação, e do próprio
Governo de todas as coisas. Pois, consoante à verdade, é o poder espiritual que
institui e julga o poder terreno, se este não for bom.
"Assim, aplica-se à Igreja e ao
poder eclesiástico o vaticínio de Jeremias: ‘Eis que hoje te constituí sobre os
povos e os reinos, e o que segue’. Portanto, se prevarica, o poder terreno é
julgado pelo poder espiritual; mas se prevarica o espiritual menor, é julgado
pelo que lhe é superior; e se prevaricar o supremo, somente Deus, e não o
homem, o poderá julgar, segundo o testemunho do Apostolo: ‘O homem espiritual
julga a todas as coisas, ele mesmo, porém, por ninguém é julgado...’ Esta
autoridade, ainda que dada ao homem e exercida por homem, não é humana, mas
propriamente divina, conferida a Pedro por lábios divinos, a ele e aos seus
sucessores na pessoa dele, a quem Jesus chamou pedra firme, quando lhe disse:
‘O que ligares, etc.’ Todo aquele pois que resiste a esta autoridade assim
disposta por Deus, resiste às ordenações de Deus, a não ser que, à maneira de
Maniqueu, imagine que há dois princípios, o que julgamos falso e herético, pois
atesta Moisés que Deus criou no princípio, não nos princípios, o céu e a terra.
"Portanto, declaramos, dizemos,
definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário para a salvação que
toda criatura humana esteja sujeita ao Romano Pontífice".
Folheando a riquíssima compilação de
Balladore e Vismara, salta aos olhos a profunda influência que estas concepções
tiveram na atuação do Papado. Com efeito, na designação dos Imperadores, nas
contestações sobre a legitimidade de sua eleição, na sua eventual excomunhão e
deposição, na nomeação e destituição de Reis como os da Sicília, Córsega,
Aragão, no proteger os soberanos contra as injustas revoltas dos súditos e os
súditos contra as opressões dos soberanos, no regular os problemas
internacionais de ordem moral como o respeito aos tratados, os direitos dos
náufragos, dos viajantes, dos cruzados, dos peregrinos, dos estrangeiros, dos
prisioneiros de guerra, no condenar as cunhagens de moedas fraudulentas, no
dispor sobre a situação dos judeus, no incitar à guerra contra a mouraria, no
promover a paz entre os príncipes cristãos, e em mil outras atitudes dos Papas
ainda, nota-se o reflexo dos princípios doutrinários que acima mencionamos.
O laicismo moderno
Em suma, esta ordem de coisas
representa um pleno - ou pelo menos amplíssimo - aproveitamento de todos os
recursos do Estado para promover a glória de Deus: luta contra os hereges e
infiéis, repressão dos crimes, propagação da Fé, estímulo à virtude com toda a
força da lei.
Com os tufões da Renascença, do
humanismo e do protestantismo, esta ordem de coisas, já abalada pelos legistas
do ocaso da Idade Média, foi sendo aluída. Ela agonizou ao longo dos Tempos
Modernos, e morreu com a Revolução Francesa. Depois de 1789 tudo isto se transformou
em reminiscência histórica, e o mundo afundou em pleno laicismo.
De fato, a Revolução instituiu um
Estado que nega sejam claras as provas da divindade da Igreja, um Estado que se
fixa em face ao problema religioso numa atitude de dúvida oficial e definitiva,
e considera a Igreja de Deus, as seitas heréticas ou cismáticas, os cultos
pagãos e idolátricos com o mesmo olhar de indiferença, displicente e céptico.
Todos podem viver à vontade, que o Estado lhes garante plena liberdade e se
desinteressa de suas respectivas querelas, exigindo apenas que respeitem a
ordem pública e os bons costumes.
Este o laicismo rubro de matiz
ateísta. Na verdade, há formas de laicismo róseas, e de tons muito diversos. O
Estado pode ser leigo e deísta... Reconhece a existência de Deus, mas julga
impossível saber qual a religião do Deus verdadeiro. Mantém-se pois simpático a
todas, e eqüidistante delas.
Esta a situação que prevaleceu
geralmente até 1917. Mas há ateísmo e ateísmo. Há ateus que são tais porque
"não sabem" se Deus existe. E os há que "sabem" que Deus
não existe. Ao primeiro tipo de ateísmo corresponde o Estado leigo. Ao segundo,
o Estado que persegue toda e qualquer religião. É este diametralmente o oposto
do Estado medieval.
Tal tipo de Estado surgiu na Rússia
com o triunfo do comunismo, tentou implantar-se na Espanha com as abomináveis
atrocidades da ditadura que a guerra civil derrubou, deitou as garras depois da
última conflagração sobre a Bulgária, a Iugoslávia, a Albânia, a Rumânia, parte
da Áustria e da Alemanha, a Hungria, a Checoslováquia, a Polônia, parte da
Finlândia, a China, parte da Coréia, parte da Indochina, a Indonésia, a
Guatemala. O império do ateísmo hodierno, é um dos maiores impérios de todos os
tempos, e constitui a serviço do Demônio algo de análogo - é ele
geograficamente maior - ao que foi outrora a serviço da Igreja a monarquia
imensa dos Habsburgos.
A força de uma reminiscência
Dissemos pouco acima que num mundo
assim constituído a organização temporal da Europa medieval, toda posta ao
serviço da Igreja, era apenas uma reminiscência. Mas uma reminiscência pode ser
uma grande força, quando se baseia num alto ideal e empolga muitos homens.
Exemplo impressionante da força das
reminiscências é certamente a chamada Renascença, que revolucionou a Europa por
puro amor a um passado morto havia cerca de mil anos.
Ora, a reminiscência do Estado sacral
da Idade média também tem seus efeitos nos dias de hoje, e especialmente entre
os católicos.
Como evitar que um homem seriamente
imbuído da verdadeira Religião, formado na meditação dos princípios propostos
por todos os Santos - por Santo Inácio, por exemplo, na meditação do princípio
e fundamento, ou na das duas bandeiras - deseje com toda a alma aproveitar para
a glória de Deus todas as criaturas, inclusive o Estado com todos os seus meios
de ação?
Como evitar que um homem de fé, que
sabe que a Igreja apresenta provas claras e certas de sua divindade; que Deus
dá as graças necessárias para se verem estas provas; que a recusa destas provas
e destas Graças é uma injúria a Deus - como evitar que tal homem sofra com todo
ato de ceticismo, e máxime com a profissão oficial de ceticismo de toda uma
sociedade representada pelo Estado leigo?
Como evitar que um fiel, realmente
compenetrado do que dizem os autores espirituais sobre a violência do
desregramento das paixões humanas pelo pecado original, e a subtileza das
ciladas do demônio, receie sério perigo para as almas com a propaganda de
seitas heréticas que lisonjeiam de todos os modos o orgulho e a sensualidade
aos homens?
Por todo o dinamismo de seu amor de
Deus, as almas zelosas tendem a amar aquele passado magnífico. E Leão XIII
delas se fez eco quando exclamou:
"Tempo houve em que a filosofia
do Evangelho governava todos os Estados. Naquela época, a influência da
sabedoria cristã, e sua virtude divina, penetravam as leis, as instituições, os
costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil.
A Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida na posição que
lhe é devida, florescia então por toda a parte, graças ao favor dos príncipes e
a proteção legítima dos magistrados. O sacerdócio e o Império estavam ligados
entre si por uma feliz concórdia, e uma amistosa reciprocidade de bons ofícios.
Deste modo organizada, a sociedade civil produziu frutos superiores a toda
expectativa, cuja memória, consignada em inúmeros monumentos, subsiste e
subsistirá sempre, de tal modo que nenhum artifício dos adversários logrará
corrompê-la, ou obnubilá-la. Se a Europa cristã jugulou as nações bárbaras, e
as fez passar da ferocidade à mansidão, da superstição à verdade; se repeliu
vitoriosamente as invasões muçulmanas, se manteve a supremacia da civilização,
e se se mostrou sempre e por toda a parte guia e mestra em tudo que honra a
humanidade; se galardoou os povos com a verdadeira liberdade sob suas diversas
formas; se fundou com muita sabedoria uma multidão de obras para o alívio das
misérias, é fora de dúvida que deve muitas graças à Religião, com cujo auxílio
empreendeu e levou a termo tão grandes coisas. Todos estes bens durariam ainda
se tal acordo entre os dois poderes tivesse perseverado, e poder-se-iam operar
coisas ainda maiores se a autoridade, o ensinamento, as advertências da Igreja
tivessem encontrado docilidade mais fiel e mais constante. Mas esse pernicioso
e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de ter
transformado antes de tudo a religião cristã, em pouco tempo, por um natural
desenvolvimento, se alastrou a todos os degraus da sociedade civil. É a tal
fonte que cumpre fazer remontar estes princípios de liberdade desenfreada
sonhados e promulgados por entre as grandes perturbações do século passado,
como princípios e fundamentos de um Direito novo, desconhecido até então, e em
desacordo, em vários pontos, não só com o Direito Cristão como com o Direito
Natural" (
Immortale Dei, 1-XI-1885 ).
Daí a um combate acérrimo e muito
louvável contra o laicismo não há distância. E desta posição de combate para
uma rejeição absoluta, incondicional, de qualquer situação que não seja a
ideal, o passo é pequeno. Muitos o teriam dado imprudentemente, se não fosse o
ensinamento da Igreja, superior às cogitações dos homens, até dos melhores,
como o céu é superior à terra.
Tal é o dinamismo do zelo, com seus
anelos, seus problemas, por vezes seus exageros. Destes últimos, o mais das
vezes, se deve dizer o que de Santa Teresa de Jesus diz a Igreja: que foi
admirável até em seus erros.
A traição do católico liberal
Muito diversa é a tibieza, com suas
prudências, com suas acomodações, com suas covardias, com sua inteira falta de
confiança no sobrenatural.
Frouxo na fé, o católico liberal crê,
sem saber muito exatamente porque. De onde nada lhe parece mais explicável mais
fácil de ocorrer, mais naturalmente freqüente, do que a dúvida, o ceticismo, a
neutralidade religiosa. Seu espírito padece de uma enfermidade profunda. A
verdade e o erro, o bem e o mal não se diferenciam muito para ele. O princípio
de contradição, mola fundamental do espírito humano, funciona nele com todas as
delongas, as indecisões, a impotência de mola velha, gasta, fraca.
Por todas estas razões, e porque é
comodista, não gosta de lutar. E, ademais, tem medo da luta. As lutas da Igreja
são sempre ininteligíveis se se abstrai da Providência. Ora, o liberal tem fé
tíbia. O sobrenatural o deixa mal a vontade. Ele raciocina habitualmente no
campo natural, e julga fazer um heroísmo quando por vezes se eleva a plano mais
alto. Como certos pássaros mais feitos para andar do que para voar, que só se
mantêm no ar a título de exceção, num vôo curto e penoso que consome as
energias de todo o seu organismo. Não confiando em Deus, tem mil razões
excelentes para recear a todo momento derrotas. E por isto a única política que
sabe fazer, que gosta de fazer, que costuma fazer, é a das concessões. A um tal
liberal, nada perturba mais do que o receio de um choque entre a Igreja e esse
moloch que é o neopaganismo moderno. E sua vontade é de sumir na terra quando
vê um Pio XII afirmar com destemor:
"Oh! Não Nos pergunteis quem é o
inimigo, nem sob que aspecto se apresenta. Ele se encontra em todo o lugar e no
meio de todos: sabe ser violento e astuto. Nestes últimos séculos tentou
realizar a desagregação intelectual, moral, social da unidade no organismo
misterioso de Cristo. Ele quis a natureza sem a graça; a razão sem a fé, a
liberdade sem a autoridade; às vezes a autoridade sem a liberdade. É um inimigo
que se tornou cada vez mais concreto, com uma ausência de escrúpulos que ainda
surpreende: Cristo sim, a Igreja não! Depois: Deus sim, Cristo não! Finalmente
o grito ímpio: Deus está morto; e até Deus jamais existiu. E eis, agora, a
tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre bases que não hesitamos em
indicar como principais responsáveis pela ameaça que pesa sobre a humanidade:
uma economia sem Deus, um Direito sem Deus, uma política sem Deus. O inimigo se
esforçou e se esforça por que Cristo se torne um estranho nas universidades, na
escola, na família, na administração da justiça, na atividade legislativa, nas assembléias
das nações, onde quer que se decida a paz ou a guerra".
As reminiscências medievais causam
terror ao liberal. São seu pesadelo contínuo. E nada lhe parece mais perigoso
do que o católico que as louva nos dias de hoje e, pior que isto, advoga resolutamente
sua restauração.
Tese e hipótese
A vista destas tendências opostas, a
Santa Sé tem tomado uma atitude que nem todos têm entendido como devem.
Lembremos antes de tudo, que os
canonistas distinguem, no conjunto da admirável ordem de coisas vigente na
Idade Média quanto às prerrogativas do Papado, os direitos exercidos pelo Papa
enquanto Vigário de Jesus Cristo e os direitos que exercia em virtude da
suserania feudal constituída livremente em favor do Romano Pontífice - em geral
por louvável devoção - por muitos reis e chefes de Estado. Feita esta
importante distinção, compreenderemos melhor o pronunciamento dos Papas:
I - A indiferença do Estado em matéria
religiosa é um grande pecado que:
a) Atrai sobre ele a cólera de Deus.
Fato muito importante para os povos enquanto tais, pois as nações não têm vida
eterna e expiam neste mundo mesmo, os seus pecados coletivos;
b) Funda toda a vida jurídica e moral
sobre base falsa, pois no laicismo absoluto nenhum direito e nenhuma lei tem
razão de ser senão pela força, e os Estados fundados sobre a força são
debilíssimos. E no laicismo deísta a lei natural fica sujeita às interpretações
variáveis dos homens e facilmente sofre deformações monstruosas. É o caso do
divórcio, admitido em muitos países que professam esse laicismo, como os
Estados Unidos;
c) Por fim, ainda que o laicismo
deísta respeite todo o direito natural, não respeita as normas do direito
oriundas da Revelação, e com isto cumpre mal seus deveres para com a única
Igreja verdadeira, o que redunda em imenso detrimento para as almas.
II - Assim, o Estado religiosamente
indiferente tem em si mesmo os germens da decomposição e da ruína, que todas as
forças do dinheiro e das armas não podem remediar.
III - Esta a tese. Contudo, há
circunstâncias em que os católicos devem aceitar como um mal menor a liberdade
de cultos para os acatólicos. É este o caso, por exemplo, dos países em que há
muitos habitantes de outras religiões e o fato de o Estado tomar uma atitude
religiosa oficial provocaria uma guerra civil em que a nação poderia
desaparecer. Por múltiplas razões de bom senso, vê-se que aí há um bem maior a
ser salvo, e que o mal menor consiste em tolerar a pluralidade de cultos.
IV - Um mal menor, porém, não é
necessariamente um mal pequeno. Amputar as pernas é um mal imenso, se bem que
seja um mal menor em função da perda da vida. Por isto, os católicos não devem
aceitar a indiferença do estado como um fato consumado, definitivo, e de pouca
monta. Deplorando-a com todas as veras da alma devem alimentar em si o nobre
anseio da união entre a Igreja e o Estado, e devem considerar sua maior
infelicidade a separação. Mais. Devem agir com todas as forças para que as
circunstâncias imensamente dolorosas que obrigaram a uma tal tolerância sejam
quanto antes removidas, e a união se possa restabelecer. O indiferentismo do
Estado deve ser uma chaga aberta no coração de todo católico zeloso.
Transposição de um problema
Pio XII em sua alocução transpôs o
mesmo problema para a esfera internacional. Na época da bomba de hidrogênio, em
que se receia um colapso da civilização, comparável apenas ao dilúvio, o Papa
vê como desejável a constituição de um organismo internacional. Fala aí como
estadista, que mede probabilidades e perigos, pesando detidamente e com grande
experiência e amplas informações as circunstâncias concretas. Por certo, um
organismo internacional poderia favorecer a realização da república universal
desejada pelas forças secretas. Mas de outro lado o desenvolvimento da ordem
natural das coisas pede como complementação da estrutura jurídica dos povos
civilizados um organismo internacional. A carência deste organismo pode
precipitar uma guerra fatal. Pio XII, como estadista experimentado, pesando sem
dúvida um perigo e outro, pende para a organização internacional. E ao mesmo
tempo, com autoridade de Sumo Pontífice, traça as condições em que ela seria
legítima sem ofensa à soberania dos Estados, mas sem dar também a esta
soberania um sentido exageradamente amplo, que a doutrina católica não pode
aceitar.
E depois o Papa passa a outra questão.
Se a constituição desse organismo exigir a admissão da liberdade de culto, como
agir? Pio XII vê bem que, no caso concreto, tratando-se de organizar Estados
ateus, leigos, acatólicos, católicos, seria irrisório propor-lhes como base a
Revelação. E preciso pois ficar no terreno da lei natural. Sem renunciar ao
passado, sem excluir a possibilidade de uma liga de nações católicas vinculadas
pela Fé, dentro da comunidade internacional, Pio XII aceita lealmente esta
posição como mal menor, e raciocina em função dela.
Em que termos? Precisamente nos termos
de seus Antecessores. Se para salvar o Estado de uma comoção profunda é
legitimo admitir a liberdade de cultos na esfera nacional, para salvar o mundo
de uma guerra, mais do que isso, de um cataclismo é legítimo admitir a
liberdade de cultos na esfera internacional. Nada há de mais lógico.
Os fiéis devem pois lamentar
imensamente que o mundo esteja religiosamente dividido, e não seja possível
estruturá-lo na única base sólida, perfeita, durável, que é a católica,
apostólica e romana. Não podem e nem devem esperar de uma estruturação
puramente natural, senão o pouco que ela pode dar é um "pouco" muito
precário.
Mas se este "pouco" for o
adiamento de um conflito catastrófico, que talvez com o tempo e a mudança das
circunstâncias se possa evitar, é ainda assim um bem tão altamente precioso que
Pio XII aberraria do ensinamento de todos os seus Predecessores se decidisse de
modo diverso.
Quisemos publicar a integra da
alocução do Santo Padre e comentá-la, para mostrar quanto é infantil a
pretensão dos que entre nós vêm nela a Magna Carta do "maritainismo".
Em outro número, analisaremos certos tópicos do documento, que deixam ainda
mais claro quanto é pueril esta suposição.
(Catolicismo Nº 42 - Junho de 1954)
A COMUNIDADE DOS
ESTADOS SEGUNDO AS NORMAS DE PIO XII
Continuamos hoje
nossos comentários sobre a importantíssima alocução Santo Padre aos
participantes do 5º Congresso Nacional da União dos Juristas Católicos
Italianos.
A respeito da
constituição de um organismo internacional abrangendo grupos de Nações, e
possivelmente todos os países do globo, o Santo Padre Pio XII enunciou alguns
princípios que assim se poderiam resumir:
a) - Há um fato
evidente: dia a dia "crescem em extensão e profundidade" as relações
entre pessoas de povos diferentes, mais ainda, entre esses próprios povos. A
técnica contribuiu para criar tal situação. Este entretanto é essencialmente um
fato natural, decorrente de "ação mais penetrante de uma lei imanente de
desenvolvimento". Em si, esta lei, por isso que natural, é reta. Daí
decorre que "em lugar de a reprimir, deve-se favorecê-la e
promovê-la".
b) - Os Estados
integrantes dos novos organismos internacionais continuarão soberanos. Esses
organismos são verdadeiras associações livres, de Estados independentes,
análogos no plano do Direito Internacional ao que são as simples sociedades de
pessoas naturais ou físicas, no campo do Direito Privado.
c) - A regra
fundamental dessas comunidades é a observância da lei natural nas relações
internacionais. A Comunidade dos Estados terá por certo seu Direito Positivo.
Mas este não será arbitrário, e terá por missão "definir mais exatamente
as exigências da natureza e adaptá-las às circunstâncias concretas".
d) - Além disto, a
Comunidade das Nações poderá "adotar por meio de uma convenção que,
livremente contraída, se torna obrigatória, outras disposições dirigidas sempre
ao fim da comunidade". Isto desde que - como ficou dito - tais disposições
não contrariem as leis da natureza, que são leis do Criador.
e) - Esta atribuição
legislativa da Comunidade das Nações é incompatível com a concepção de
soberania de Hegel e do Positivismo jurídico absoluto. Mas respeita a soberania
retamente entendida de cada Estado. A verdadeira soberania significa
"autarquia e competência exclusiva com relação às coisas e ao espaço,
conforme a substância e a forma de atividade", sem "dependência do
ordenamento jurídico próprio de qualquer outro Estado". Mas esta soberania
não exclui que ao Estado seja "negada a faculdade de agir arbitrariamente
e sem atenção para com outros Estados". É óbvio que, sem prejuízo de sua
independência, e pela própria força natural das coisas, "todo Estado é
sujeito imediatamente ao Direito Internacional".
f) - Povos e
indivíduos tem em si diversas tendências inatas que facilmente chegam ao
exagero, e que por isso mesmo criam o risco de perturbar as relações internacionais.
Este risco é acentuado pela diversidade de religiões. Entre os povos e os
Estados a constituírem a Comunidade das Nações haverá católicos, acatólicos,
ateus. Como resolver os problemas daí decorrentes?
A COMUNIDADE DE
ESTADOS E REPÚBLICA UNIVERSAL
No momento, paremos
aqui.
Antes da alocução de
Pio XII, o problema Comunidade dos Estados estava intimamente ligado - pelo
menos na prática - ao da República Universal.
Como se sabe,
numerosos pensadores e políticos influentes têm propugnado com insistência
sempre maior, pela formação de grupos de Estados fundidos ou quase fundidos
entre si, e tem preconizado que tais grupos constituiriam um primeiro passo
para a realização de um só Estado em toda a terra, no qual se amalgamariam,
dissolveriam e fundiriam todos os países.
As condições políticas
oriundas da última guerra favoreciam singularmente este plano, pois criavam -
pelo menos na aparência - uma alternativa cruel: ou a realização de
super-Estados absorventes para resistir ao Leviatan soviético, ou a
capitulação diante do comunismo. Em boa parte, o drama da CED nasce deste
problema.
Em outra ordem de
idéias, começou a aparecer como evidente para numerosas pessoas que um novo
conflito internacional acarretará o fim da civilização, e quiçá da humanidade.
Assim, pareceu-lhes que todos os sacrifícios seriam pequenos para evitar um tal
desfecho. E nada se lhes afigurava mais racional, mais eficaz, mais definitivo
neste ramo, do que suprimir todos os governos, todas as fronteiras, todas as
pátrias, e estabelecer a República Universal.
As circunstâncias
conferiam assim forma, cor e vida em nossos dias, às cogitações dos
revolucionários que, particularmente desde o século passado, vêm sonhando com o
moloch de uma república universal, laica, socialista, igualitária, o plano bem
conhecido das seitas secretas, que ontem ainda parecia quimérico aos espíritos
"realistas".
Nos meios católicos,
muitos pensadores e estudiosos se tem preocupado com o assunto. E a
generalidade deles se dividia em duas tendências. Uns, atraídos pelos aspectos
filantrópicos e pacifistas da sonhada República Universal, pactuavam com ela
segundo algum dos mil modos com que se pode pactuar com algo, desde a adesão
declarada, até a aprovação tácita, ou a aceitação muito resignada, do fato consumado.
Outros, entretanto, reagiam. Não que lhes parecesse ilegítimo ou inconcebível
um organismo supra-nacional, cada vez mais fortemente reclamado pelas
crescentes facilidades de comunicação entre os povos. Em seu espírito estava
bem viva pelo contrário a admiração pela Cristandade e o Sacro Império. Mas
parecia-lhes que os partidários da República Universal eram imensamente
poderosos, e de outro lado a única resistência ponderável que tinham diante de
si eram certos particularismos, explicáveis muitas vezes, exagerados e
estreitos outras, mas em todo o caso muito vivazes. Qualquer passo que se desse
no rumo da formação de blocos internacionais, embora fosse legítimo em suas
modalidades iniciais, amorteceria esses particularismos, e em última análise
reduziria as resistências psicológicas - imensamente mais importantes do que se
pensa - que se opunham à realização do audacioso plano das seitas. Como se vê,
havia a maior adesão à idéia de um organismo internacional que respeitasse e
até defendesse a soberania de cada povo. Mas uma grave objeção estratégica
contra a oportunidade desta medida. Objeção sábia, objeção criteriosa, objeção
justa, inspirada na análise sagaz do horizonte político como ele se
apresentava. Em tese, uma comunidade internacional seria excelente.
Concretamente, e para evitar o mal maior da República Universal, era preferível
esperar.
CONDENADO O SONHO DAS
SEITAS
A Alocução do Santo
Padre Pio XII aos juristas católicos da Itália veio alterar inteiramente este
horizonte, nele introduzindo um elemento novo de substancial importância.
Assim, a tática, cujo mérito está em sua adequação aos fatos, também tem de
mudar.
Esta modificação,
poderíamos enunciá-la assim:
a) - Pio XII declarou
guerra formalmente, à concepção da República Universal que as seitas querem
impor. Seu discurso torna bem claro o princípio - já ensinado pela Igreja, mas
olvidado por muitos - de que a existência de Estados soberanos é conforme ao
Direito Natural, e a comunidade dos Estados não deve atentar contra essa
soberania;
b) - Ele se mostra
resolvido a guiar o curso natural e justo dos acontecimentos, favorecendo a
criação da Comunidade das Nações, e fazendo para isto todos os esforços
necessários. Mas ao mesmo tempo circunscreve o âmbito desse organismo, e
estabelece as condições em que ele pode contar com o apoio da Igreja.
Esta intervenção
doutrinária e diplomática do Santo Padre - já pronunciada quiçá, discretamente,
em alocução anterior - destrói o primitivo quadro. Frente a frente há hoje em
dia mais do que somente os partidários da República Universal e os
particularismos, excessos entre os quais só cabia - taticamente - aos elementos
moderados favorecer o mal menor, que era certamente o particularismo. Na liça
está agora a Santa Sé, a guiar com seu prestígio, sua força, sua sabedoria, o
poder das graças de Deus, os esforços em prol de uma solução equilibrada: nem
particularismos exagerados, nem República Universal, mas particularismos
legítimos, Estados soberanos e irmãos, sujeitos ao Direito Natural no seio de
uma sociedade.
O problema se
simplifica pois enormemente, para os verdadeiros católicos. Trata-se para eles,
não mais de escolher entre um mal menor e um mal maior, mas de agir e rezar a
fim de que a atuação importantíssima do Sumo Pontífice produza para a maior glória
de Deus todos os frutos que seu coração amorosíssimo deseja.
A COMUNIDADE DAS
NAÇÕES E A RELIGIÃO
Comentadores
superficiais exultaram com a alocução pontifícia, vendo nela uma tomada de
posição a favor do "Estado vitalmente cristão" sonhado pelo sr.
Jacques Maritain. Tal Estado admitiria em pé de igualdade a Igreja e todas as
seitas. Ele alicerçaria o seu Direito, não sobre a Revelação - pois este é o
ponto de divergência entre as várias religiões - mas sobre a lei natural,
conhecida pela mera luz da razão, e, pois, aceitável pelos fiéis de todos os
credos.
Ora, dizem eles, o
Santo Padre concebe precisamente assim a Comunidade das Nações. Ela não se
estruturaria sobre a base da Fé, como outrora a Cristandade e o Sacro Império,
mas sobre a base da lei natural. Ela não teria religião oficial, mas seria
eqüidistante em relação a todas. Ficaria pois demonstrada a legitimidade de um
estado de coisas tal.
SINGULAR MENTALIDADE
É incompreensível que
católicos cheguem a tais conclusões e com elas se alegrem.
Quando se ama algo ou
alguém - pessoa, instituição, doutrina - deseja-se-lhe todo o bem, toda a
honra, toda a glória. Isto é verdadeiro a fortiori com Deus e sua Igreja. Se na
ordem das possibilidades teóricas se pode pensar numa sociedade internacional em
que todas as nações, convertidas a Cristo Senhor Nosso, reconheçam seu reinado
e tomem como pedra fundamental de seu Direito - no campo internacional e
interno - a Santa Igreja, a atitude do católico zeloso consiste em anelar com
todas as veras da alma esta situação, e aceitar pesaroso qualquer outra.
Pesaroso, sim: é bem este o termo. Pois o lugar próprio a Cristo-Rei é o trono,
e qualquer outra situação que se lhe atribua é falsa, ilegítima, imprópria.
Pode haver circunstâncias que levem o católico zeloso a aceitar para a Igreja
outra situação. Ele a aceitará, pois o contrário seria estulto. Mas esta
aceitação comportará três ressalvas:
a) - ele deplorará
profundamente as circunstâncias concretas que o forçam a aceitar essa situação;
b) - ele conservará o
anelo ardente da situação anormal;
c) - ele agirá com
toda a diligência para [que] as circunstâncias que lhes impõem a situação
anormal sejam removidas.
Ora, tem-se a
impressão de que muitos espíritos se portam de modo diametralmente oposto
diante da dura contingência em que estão os católicos neste mundo em que a
maioria ainda não é católica:
a) - referem-se sem o
menor pesar, à divisão religiosa trágica que pesa sobre a Cristandade desde
Phocio e Lutero, e que é a causa essencial de todos os nossos males;
b) - encaram uma
sociedade nacional ou internacional baseada na Fé católica corno um cárcere ou
uma masmorra, da qual se sentem felizes em ter fugido para o ar fresco e leve
do interconfessionalismo liberal;
c) - vivem
euforicamente nessa atmosfera, sem qualquer pesar pelo lugar secundário em que
fica colocada a Igreja;
d) - não desejam
trabalhar para voltar à ordem de coisas anterior.
A VERDADEIRA QUESTÃO
É preciso fixar bem a
importância do que aqui fica dito. O ponto de divergência entre nós e tais
católicos não é este:
a) - nós consideramos
como legítima só a tese de um Estado oficialmente católico;
b) - eles aceitam a
tese, mas admitem também a hipótese de uma ordem de coisas que imponha uma
atitude não oficialmente católica para o Estado.
O ponto de divergência
é este:
a) - Nós admitimos
claramente a tese. Eles a negam, ou quando não, são muito confusos e reticentes
a respeito dela.
b) - Nós admitimos
como eles a hipótese. Nós, com pesar profundo, eles com entusiasmo.
c) - Vigente a
situação criada pela hipótese, queremos manter bem vivo entre os católicos o
conhecimento e o amor à tese, e desejamos fazer todo o possível para que lhe
corresponda à realidade. Eles calam a tese, ou a ela se referem sem zelo. Vivem
bem no domínio da indiferença de Estado. Nada fazem para difundir a tese e
levar o mundo a ela.
A ATITUDE DO VIGÁRIO
DE CRISTO
Qual das duas posições
é aprovada pela alocução pontifícia? Tem-se vontade de sorrir. Pois quem pode
duvidar dos sentimentos de um Papa a este respeito? Quem pode duvidar de que
Pio XII deplore com todas as veras de sua alma a divisão religiosa do mundo,
máxime a existência de uma tão imensa ditadura atéia por detrás da cortina de
ferro? Quem pode duvidar de que ele deseje a conversão de todos os povos à
única Igreja de Jesus Cristo, e de que no dia em que tal se der ele quererá ver
a Revelação como base do Direito? Em tudo quanto o Papa ensina e faz, isto é
implícito e explicito de todos os modos.
Em sua alocução, Pio
XII, à vista da situação contingente de divisão religiosa, e da existência de
povos ateus, aceita a idéia de uma sociedade internacional baseada no Direito
Natural, e sem posição confessional oficial.
Mas onde está dito ou
insinuado que essa situação lhe agrada, lhe causa júbilo? Onde está afirmado
que ele a reputa a situação ideal? Onde está dito que ele renuncia à situação
ideal?
E onde, pois, os
títulos para o júbilo maritainista?
O Santo Padre Pio XII
agiu no caso como qualquer Papa da Idade Média, o que aliás é normal porque
Pedro é sempre Pedro.
A Cristandade medieval
viveu sempre em guerra de legítima defesa contra bárbaros e sarracenos. Se uns
e outros não nos tivessem atacado, se não tivessem violado nossas fronteiras,
tivessem permitido aos missionários evangelizar em suas terras, e tivessem respeitado
os Lugares Santos, se tivessem observado a moral natural, em suas relações com
a Cristandade, não teria havido as Cruzadas.
Se os ateus, hereges e
cismáticos de hoje quiserem agir assim - levados quiçá pelo medo de uma
hecatombe mundial - porque fazer contra eles uma Cruzada?
*
* *
E assim nos fica só,
para analisar, a tomada de posição do Sumo Pontífice em face do problema da
liberdade religiosa no interior de cada Estado, inclusive dos Estados ateus.
Fá-lo-emos em próximo
número, não sem tocar em outra questão. Falando em "Lei imanente de
desenvolvimento", e em "tendências inatas", o Santo Padre
canonizou o evolucionismo?
(Catolicismo Nº 43 -
Julho de 1954)
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