terça-feira, 9 de julho de 2024

O SONHO DO REVOLUCIONÁRIO E SEU ARREPENDIMENTO

 



             Transcrevemos a seguir um pequeno conto onde se demonstra que o anseio de liberdade nem sempre termina bem para quem o busca. Como diz um velho ditado: o demônio nunca dá o que promete [1]

 

Amélia Rodrigues[2]

Aquele tresloucado Fulgêncio tinha fugido da casa de seu senhor.

E, todavia, o seu senhor era bom; tão bom que não se podia absolutamente imaginar outro ideal de senhor. Criara o servo em seus braços, desde pequenino; tratara-o nas moléstias; dera-lhe a alegria da infância, prados em que corresse, afetos que o confortassem; ensinara-lhe muitas coisas úteis, letras e artes; mostrara-lhe as fontes puras da felicidade perfeita...

Mas, apenas o servo ficou rapaz, leu ou disse-lhe alguém que a servidão era uma coisa triste e feia e cruel, mesmo naquelas condições honrosíssimas; sopraram-lhe aos ouvidos a palavra “liberdade”, e essa palavra agitou-lhe os nervos, num deslumbramento contínuo.

- Foge!... quebra as cadeias! Governa-te a ti mesmo, infeliz! Não curves a cabeça a poder algum! És dono de teu ser, de teus sentidos, de tua vontade. Oh, que bela conquista, a independência!

Assim lhe cantara dentro do cérebro a voz da mocidade, o sangue quente dos desejos sôfregos e, fora, a voz tentadora de outros libertos.

Contudo, uma réstia de luz  teimava em atravessar-lhe a mente O seu olhar inquieto espraiava-se longe, examinando o mundo.

- Ser livre!... fazer o que quiser, sem dar contas a ninguém!... Sim, deve ser essa a felicidade completa. Posso fugir, posso; mas... onde irei que deixe de ser servo?

Em toda parte há tiranos...

- Entrarás pelas brenhas... beberás a chama do sol e os aromas da natureza virgem, grandiosa, embriagante. A natureza é tua mãe, portanto deve ser a tua única senhora. No seio dela serás rei, forte como os leões, alcandorado como as águias, dormindo embora ao relento, mas respirando a plenos haustos a ventania dos píncaros ou a brisa meiga dos vales...

E o servo sonhou, noites e noites mal dormidas, com o espectro do sol da Liberdade, um espectro em forma de mulher a sorrir, com veste de íris e largas asas de borboleta espalmadas no horizonte sem fim... e de seus lábios espiralou um hino, um grito, apóstrofe:

- Oh Liberdade! És minha deusa, eu te adoro!

A face amorável do senhor tornou-se-lhe odiosa; a casa parecia-lhe estreita, mesquinha, deprimente, sem futuro, sem atrativos; a comida já não tinha sabor: os companheiros de lavoura davam-lhe tédio, com os seus ares de calcetas imundos e simplórios...

          *                            *                                  *

           Fugiu. Internou-se nos matagais. Comeu frutos áureos e doces, pendurados em ramos de esmeralda. Bebeu água cristalina em rios mansos, à sombra de cipoais em flor; embriagou-se com o sono de bromélias ardentes ou com o cheiro capitoso das palmeiras novas; ouviu trinados de aves, fragor de trovões, estrondo de torrentes a cair espumando prata...

E julgou-se feliz, e cantou, com voz de stentor que atroava em penedias e vales, o hino que o seduzira:

- Oh Liberdade! És minha deusa, única! Eu te adoro!...

                *          *          *

Passaram os tempos – tudo passa!... -  e mudou-se o cenário. Já não eram tapetes de relva, eram seixos agudos que os seus pés encontravam. Fez-se noite no céu; fez-se noite nos campos. Rugiam-lhe em torno panteras e tigres, de olhar vermelho e dentes a ranger...  Alapardava-se em furnas lobregas para dormir, se dormia. Tinha fome e sede, e já não achava nem frutos, nem água fresca rolando em pérolas na concha azul da rocha ao seu alcance...

Deu, depois, em brejos negros, em charnecas áridas. Mordiam-no insetos, serpentes se lhe enrolavam no corpo, asquerosas, geladas, cortantes... A roupa lhe caíra em pedaços...

E vinha-lhe à memória um retalho de versos lidos outrora, o diálogo entre o Lavrador e o Peregrino, do grande poeta luso[3] que, com outros, lhe ensinara o amor à Liberdade:

 

O Lavrador

Ó Senhor tão moço, d’olhos cor d’esperança,

Ides de caminho para algum lugar?

O Peregrino

Vou dar volta ao mundo...

O Lavrador

Sem arnês ou lança?

Ó Senhor tão novo, d’olhos cor d’esperança

Penas e misérias é que ireis achar!

 

Quais seriam esse arnês e essa lança tão preciosas ao combate da vida? A fé talvez?... Mas a fé, sobretudo a fé cristã, já não fizera branca-rota? Assim lh’o tinham afirmado os companheiros de prazer. Mesmo aquele poeta...

Não! ... a fé traz consigo a lei; a lei é uma cadeia: não pode ser elemento da felicidade. Para ser feliz... basta ser livre!...

 E suspirou, repetindo:

- Liberdade, és minha deusa única.  Eu te adoro!

 

                            *                      *                      *

           Caiu um dia, enfim, exausto, quase morto, no fundo de paulento barranco. Lá ficou só, muito tempo. Seus amigos, os pássaros, voavam longe; suas namoradas, as flores, perfumavam outros viandantes. A fome era atroz, o frio era intenso... Sentia-se velho, alquebrado, incapaz de um esforço. O desespero retorcia-lhe os membros; clarões de raiva impotente lhe passavam nos olhos.

E gemia:

-Oh! Natureza! Não és tu minha mãe? Não foi de ti que nasci? Por que me matas? Qual foi meu crime? Amar a liberdade?... Mas a liberdade não é direito do homem? Teu maior e mais belo direito? Eu quis viver com teus filhos todos, Natureza! Os filhos que ficam no teu ninho, apegados contigo! E morro sem que tu me consoles. Mas a vida não é um dom teu, um dom que eu devia, até o fim, aproveitar para o gozo, como os meus irmãos animais?

E rugia, mordendo a lama, sentindo nos membros trôpegos o contato dos vermes.

- Meus irmãos todos são felizes em ti, mãe Natureza, quando o homem não os faz sofrer. Estes vermes que comem vasa... estes lagartos cinzentos que moram nos troncos podres... Por que razão só o homem, teu filho mais nobre, mais rico e perfeito, só o homem te encontra dura, cruel, indiferente aos gritos de fome... ou de gula?... Por que razão?

Veio-lhe um calapso[4], um momento de trégua na sua agitação. Fez-se-lhe algo de bonança no cérebro; pensou mais calmo e recordou:

- Eu era servo. Sou servo ainda. Não há fugir à lei que me prende. Todavia, lá em casa, era servo-filho. Aqui... sou servo-escravo. Escravo estrangeiro... miserável... esmagado.  Lá... não me faltava nada. Tinha tudo, tudo o que podia ter com justiça e legítimo prazer. Desejei mais do que isso. A visão da Liberdade estonteou-me.  Oh, sim!... ser livre!... Mas... livre como? Eis preso de novo, e sempre pior. Livre para que, afinal de contas, se lá meu senhor me amava e aqui não tem quem me ame; se lá eu tinha alimentos e aqui morro ao desamparo; se lá eu sorria inocente, aqui choro de remorsos, sem ter quem me enxugue as lágrimas... Li outrora, no Evangelho de Cristo, a página do Filho Pródigo. É justamente o meu caso. Ele voltou à casa paterna. Voltarei também?... Por que não?... Meu Senhor é tão bom! Farei um esforço para sair desta lama. Sim, bastará um esforço...

E, animado, puxou os pés que estavam presos ao barro pegajoso. Sorriu. A recordação da casa onde vivera a infância perpassou-lhe no pensamento, em traços fortes e consoladores.

Viu-a, toda branca, lá longe, - qual em contos de fada, a luzinha d’oiro no cimo da montanha, dizendo ao perdido nas trevas que em seu seio havia um abrigo. Como se lembrava!... Aqui era o pátio vasto... os jardins cheios de angélicas; ali o milharal espigando... os parreirais pesados de uvas... e pertinho, o lar, a chama alegre da lenha seca, o cheiro da sopa quente após a labuta diária...

Suspirou. Olhou em torno e sentiu repugnância. Desprendeu as mãos do paul, fraco, trêmulo, receoso, mas com brilhos de esperança no olhar. Queria subir a montanha, entrar novamente naquela mansão de paz e conforto.

Em seguida olhou para si mesmo e... teve horror.

- Estou nu – murmurou – tenho a pele coberta de escaras, chagas ainda... crostas de barro... Sinto que as pernas se me vergam. É tarde!... É tarde... não posso...

Agachou-se no chão, desesperado.

- Ele me expulsará, por indigno. Afastará de mim o seu rosto!... Não vou. Morrerei aqui. Pelo menos, tudo isto é meu. Pedras, lodo, bichos nojentos, tudo é meu. Acostumei-me ao cheiro bruto destas coisas corruptas... cheiro que outros chamam fétido e eu chamo perfume. E nisso gozo ainda minha liberdade. Sou livre, chamo-lhes como me apraz!

Pendeu a fronte, fechou as pálpebras... e apesar disso via ao longe, via sempre a luzinha da casa senhorial, tão meiga, tão suave, em cima da montanha...

- Ali está o perdão, o amor, a paz... bem o sei; não posso calar, no meu íntimo, a voz que m’o diz. Meu senhor é bom... infinitamente bom... Que importa? Se a liberdade é a guerra, quero a guerra, porque adoro a Liberdade!

Engalfinhou as mãos na borda de um calhau limoso e escorregou de novo no tremedal. Sentia vertigens mórbidas... sabia que estava louco, absolutamente louco, mas deixou-se descer...

E desceu... e a luzinha continuava a brilhar, muito quieta, pondo um fio de ouro na escuridão ambiente, fio que vinha tocar quase a cabeça de Fulgêncio.

Ele percebeu, e chorou.

- Meu Senhor!... Oh, meu Senhor!... tu me chamas?... Por que te fugi?!... Onde estás?!... Anda... vem cá... ah, não!... não venhas!... Fica em tuas alturas... Apaga essa luz... Tira-a de cima de mim!...  Não quero vê-la... não quero!... É a razão, é a fé!... Mas aqui estou cativo em redes fatais... Agora essa luz!

E a luzinha apagou-se... e Fulgêncio afundou-se ainda mais no barranco negro...

Extinguiu-se-lhe a consciência, a idéia da vida moral. Engoliu vasa, e achou-a gostosa. Sentiu sanguessugas no peito e acho delícia em suas mordeduras. E foi descendo... até que a vasa o sepultou para sempre...

 

*                            *                                  *

 

 Fulgêncio,  o servo, é a alma pecadora – a alma do século de hoje.

Feita para Deus, ela foge de Deus, atraída pela voz de sereia da falsa liberdade.

Foge de Deus para gozar à larga, e afunda-se nos pântanos mais asquerosos; torna-se vil, e nem percebe a própria degradação, ou percebe-a fracamente.

Coitadinha!

A luz da graça lhe aparece enfim, no cimo da montanha da fé. É a única estrela na sua noite pesada de treva e de abandono. Ela a vê, suavíssima; compreende-a, deseja ir até onde está a mansão salvadora, mas o vício, o mau hábito da rebeldia a tem cativa, a ela que sonhara ser livre, inteiramente livre!

Precisamente. Será sempre escrava, e da pior das escravidões.

Ah! Se ela voltasse ao lar donde fugira, ao coração de seu Senhor e de seu Pai, que feliz seria de novo!...

Almas que refulgistes ao sair do batismo cristão e por desgraça agora estais caídas nos charcos do mal, coragem! Quebrai os laços, desprendei-vos da lama, e subi, montanha acima, até os braços do vosso Criador. Ele vos espera e há de receber-vos em festa e coroar-vos de rosas imortais.

Homens do século de hoje, Fulgêncios sequiosos de gozo e de independência, não esqueçais que a verdadeira liberdade é a dos filhos de Deus. Procurai o reino de Deus, se quereis ser livres e atingir o vosso alto destino.

 (Transcrito de “Do Meu Archivo – Contos e Phantasias” – Livraria Editora N. S. Auxiliadora – Salvador(BA), 1929 – págs. 208/216)

 


[1] O título original é “O Sonho de Fulgêncio. 

[2] Amélia Rodrigues foi uma escritora católica baiana, muito ligada aos Salesianos, falecida no início do século XX, que se dedicou em escrever contos de formação religiosa para a juventude. Não confundir com outra do mesmo nome que foi compositora do século XVIII.

[3] Trata-se da obra “Os Simples”, de Guerra Junqueiro

[4] “calapso” é como consta no original; seria “colapso”?

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