Sonhei. Talvez as
coisas que sonhei vos pareçam muito estranhas. Mas vós sabeis que para meus
filhos não tenho segredos; abro-lhes todo o meu coração. Pensai dele o que
quiserdes. Mas, como diz São Paulo, quod bonum esse tenete[1],
se algo encontrardes nisto que seja de proveito para vossa alma, sabei
aproveitar. Aquele que não quiser crer, não creia; mas ninguém jamais
ridicularize as coisas que vou dizer. Além disso, desejaria que não contásseis
nem comunicásseis por escrito àqueles que não sejam da casa. Aos sonhos se pode
dar a importância que, enquanto sonhos, merecem; e aqueles que não conhecem
nossa intimidade poderiam formar juízos errôneos, dando às coisas um nome
diferente daquele que elas na realidade têm. Eles não sabem que vós sois meus
filhos, e que sempre vos digo tudo que sei, e algumas vezes até aquilo que não
sei. Mas aquilo que um pai manifesta a seus filhos para seu bem, deve ficar
entre o pai e os filhos e não sair daí. E ainda por outra razão. Em geral, ao
contar essas coisas fora, ou se desfiguram os fatos, ou somente se contam uma
parte, e essa mal contada; de onde resultam prejuízos, pois o mundo desprezaria
aquilo que não deve ser desprezado.
Convém que saibais que ordinariamente os sonhos a gente os tem enquanto dorme. Ora, na noite de 6 de dezembro, enquanto eu estava no quarto, não lembro bem se lendo ou passeando pelo aposento, ou se já me havia deitado, comecei a sonhar.
Começa
o sonho – beleza extasiante aos olhos mortais
De início tive a
impressão de estar sobre uma elevação ou colina, à beira de uma imensa
planície, cujos confins se perdiam de vista na imensidade; era cerúlea como o
mar calmo, se bem que aquilo que eu via não era água; parecia um puro cristal
luzidio. Sob meus pés, atrás de mim e aos lados, eu via uma região à maneira de
um litoral junto do oceano.
Largos e gigantescos caminhos dividiam a planície em vastíssimos jardins de beleza inenarrável, estando todos como que divididos em pequenos bosques, prados e canteiros de flores de diversas formas e cores. Nenhuma de nossas plantas pode nos dar uma idéia daquelas, se bem que alguma semelhança tenham. As ervas, as flores, as árvores, as frutas, eram vistosíssimas e de belíssimo aspecto. As folhas eram de ouro; os troncos e ramos de diamante, e o resto correspondia a essa riqueza. Era impossível contar as diferentes espécies. E cada espécie e cada flor resplandecia com luz especial. Em meio àqueles jardins e em toda a extensão da planície eu contemplava inumeráveis edifícios com uma ordem, beleza, harmonia, magnificência e proporções tão extraordinárias, que, para construção de um só deles, parece que não bastariam todos os tesouros da terra. Eu dizia para mim mesmo: “Se meus jovens tivessem uma única destas casas, como se alegrariam, que felizes seriam e com quanto prazer viveriam nela”. E isto, pensava eu, sendo que somente podia ver esses palácios por fora. Qual não deveria ser sua magnificência interior!
Extasiante também aos ouvidos
Enquanto contemplava extasiado tão estupendas
maravilhas como as que adornavam aqueles jardins, chegou aos meus ouvidos uma
música dulcíssima e de tão grata harmonia, que não posso dar-vos dela uma idéia
adequada. Em comparação com ela nada são
as de D. Cagliero e de D. Dogliani. Eram cem mil instrumentos que produziam
cada um som diverso do outro, enquanto todos os sons possíveis difundiam pelo
ar suas ondas sonoras. A estas uniu-se os coros dos cantores.
Vi então uma multidão
de gente que naquele jardim se encontrava e se regozijava alegre e
contente. Uns tocavam, outros cantavam.
Cada voz, cada nota, tinha o efeito de mil instrumentos reunidos, todos
diferentes uns dos outros. Ouviam-se
simultaneamente os diversos graus da escala harmônica, desde os mais baixos até
os mais altos que se possa imaginar, mas tudo em perfeita consonância. Ah! para
descrever essa harmonia não bastam comparações humanas.
Via-se pelos rostos
daquelas felizes habitantes do jardim, que os cantores não só experimentavam
extraordinário prazer em cantar mas ao mesmo tempo sentiam imenso gozo ao ouvir
os demais cantarem. E quanto mais alguém cantava mais se lhe acendia o desejo
de cantar, e quanto mais ouvia mais desejava ouvir.
Era este o seu canto: Salus, honor, gloria Deo Patri Omnipotenti. Auctor, saeculi, qui erat, qui est, qui venturas est judicari vivos et mortuos in saecula saeculorum.[2]
A multidão dos eleitos
Enquanto ouvia
atônito estas celestes harmonias, vi aparecer uma multidão de jovens, muitos
dos quais tinham estado no Oratório e nos outros colégios; conhecia a muitos,
portanto; sendo-me, não obstante, desconhecida a maior parte. Aquela multidão
interminável se dirigia a mim. À sua frente ia Domingos Sávio e atrás dele D.
Alazonatti, D. Chiala, D. Giulitto e muitos outros sacerdotes e clérigos, cada
um dirigindo uma seção de meninos.
Perguntei-me a mim
mesmo: “Durmo ou estou acordado?” e
batia palmas e batia no peito para assegurar-me de que era realidade o que via.
Chegada toda aquela multidão diante de mim, parou à distância de oito a dez passos. Então brilhou um relâmpago de luz mais viva; cessou a música e seguiu-se profundo silêncio. Aqueles jovens estavam possuídos de enorme alegria, que se refletia em seus olhos, e em seus rostos se via a paz de uma felicidade perfeita. Olhavam-me com um doce sorriso nos lábios e davam a impressão de que queriam falar; mas não falavam.
Glória e esplendor de São Domingos Sávio
Adiantou-se Domingos
Sávio, sozinho, e manteve-se perto de mim. Em silêncio, olhava-me sorrindo.
Como estava belo. Sua indumentária era realmente singular. Caía-lhe até os pés
uma túnica alvíssima coalhada de diamantes e toda tecida de ouro. Cingia sua
cintura uma ampla faixa vermelha recamada com tantas pedras preciosas que umas
tocavam nas outras; e se entrelaçavam num desenho tão maravilhoso, oferecendo
tanta beleza e colorido que eu, ao vê-lo, sentia-me fora de mim de
admiração. Pendia-lhe do pescoço um
colar de flores primorosas; as folhas assemelhavam-se a diamantes unidos entre
si sobre ramos de ouro; e assim tudo o mais. Estas flores refulgiam com luz
sobre-humana mais viva que a do sol, que naquele instante brilhava com todo o
esplendor de uma manhã de primavera, refletindo seus raios sobre aquele rosto
cândido e corado de maneira indescritível, iluminando-o de tal forma que não se
podia sequer distinguir seus diversos traços. Levava sobre a cabeça uma coroa
de rosas; caía-lhe sobre os ombros em ondulantes cachos a formosa cabeleira,
dando-lhe um ar tão belo, tão afetuoso, tão encantador, que parecia... que
parecia um Serafim!
Não menos resplandecente de luz estavam aqueles que o acompanhavam. Todos se vestiam de maneira diferente, mas sempre belíssima; uns mais, outros menos; uns de uma forma, outros de outra; num dominava uma cor, noutro, outra; e cada uma daquelas indumentárias tinha um significado que ninguém saberia compreender. Mas todos tinham a cintura cingida por uma faixa vermelha igual, recamada de pedrarias.
Finalmente, São Domingos Sávio fala a São
João Bosco
Eu continuava
contemplando absorto e pensava: “O que significa isto? Como vim parar neste
lugar?” E não sabia onde me encontrava. Fora de mim, trêmulo pela reverência
que aquilo me inspirava, não me atrevia a dizer palavra. Também os demais
continuavam silenciosos. Finalmente, Domingos Sávio abriu os lábios.
- Por que estás aí
mudo e como que aniquilado? Não és o homem que em outros tempos não temia nada,
que arrostava com intrepidez as calúnias, as perseguições, os inimigos e as
angústias e perigos de toda sorte? Onde está a tua coragem? Por que não fala?
Respondi eu com
dificuldade, balbuciando:
- Eu não sei o que
dizer... Mas não és tu Domingos Sávio?
- Sim, sou; já não me
reconheces?
- E como te encontras
aqui? – acrescentei confuso.
Domingos então
afetuosamente disse:
- Vim para falar-te. Quantas vezes nos falamos na terra! Não recordas quanto me amavas, quantas provas de estima e quantas demonstrações de amor me deste? E eu por acaso não correspondi a teus desejos? Era tão grande a minha confiança em ti! Por que, pois, temes? Vamos! pergunte-me alguma coisa.
O esplendor do Paraíso comparado com o do mundo
material aumentado por Deus
- É que não sei onde
me encontro; por isso tremo.
- Estás no lugar de
felicidade – respondeu Sávio – onde se gozam todas as alegrias, todas as
delícias.
- É este pois o
prêmio dos justos?
- Não, por certo.
Aqui não se gozam os bens eternos, apenas, ainda que em larga medida, os
temporais...
- Então, todas estas
coisas são materiais?
- Sim, se bem que
embelezadas pelo poder de Deus.
- E a mim me parecia
que isto era o Paraíso! – exclamei.
- Não, não, não! –
respondeu Sávio. – Não há olho humano mortal que possa ver as belezas eternas.
- E estas músicas –
continuei perguntando – são as harmonias de que gozais no Paraíso?
- Não, não, já te
disse que não!
- São sons naturais?
- Sim, são sons
naturais, aperfeiçoados pela onipotência de Deus.
- E esta luz que
sobrepuja a luz do sol, é luz sobrenatural?
- É luz natural, se
bem que reavivada e aperfeiçoada pela onipotência de Deus.
- E não se poderia
ver um pouco da luz sobrenatural?
- Ninguém pode vê-la
enquanto não chegar a ver Deus sicut est. O menor raio desta luz
tiraria no mesmo instante a vida de um homem, porque não há forças humanas que
o possam sustentar.
- E pode haver uma
luz natural mais bela do que esta?
- Se soubésseis! Se
tu vísseis somente um raio de luz natural levada a um grau superior a este,
ficareis fora de si... Vais vê-lo...
Fixe os olhos! olha ali no fundo desse mar de cristal.
Levantei a vista, e
ao mesmo tempo apareceu de improviso no céu, a uma distância imensa, uma
centelha instantânea de luz, subtilíssima como um fio, mas tão brilhante, tão
penetrante, que lancei um grito, o qual despertou D. Lemoye (aqui presente) que dormia num quarto
próximo. Aquele fio de luz era cem
milhões de vezes mais claro que o sol e seu fulgor bastaria para iluminar o
universo inteiro.
- E isto, é um raio
divino? – perguntei, apenas recuperado.
Sávio respondeu:
- Não é luz
sobrenatural, se bem que, comparada com a terrestre, a supera em fulgor. Não é
senão luz natural feita desta maneira mais viva pelo poder de Deus. E ainda que
imaginasses uma imensa zona de luz semelhante à pequena centelha que acaba de
ver ao longe rodeando todo o mundo, nem dessa forma terias idéia dos
esplendores do Paraíso.
- E vós, o que gozais
no Paraíso?
- Oh! Dizê-lo a ti é
impossível; o que se goza no Paraíso não há nenhum mortal que possa sabê-lo
enquanto não deixe esta vida e se reuna a seu Criador. Fica tudo dito ao dizer
que se goza a Deus.
Nesse meio tempo, já
plenamente recuperado de meu primeiro aturdimento, contemplava absorto a
extraordinária formosura de Domingos Sávio, e com franqueza lhe perguntei:
- E esta tua roupa,
tão branca e pomposa?
Domingos calou-se. O
coro continuou suas harmonias e cantou acompanhado de todos os instrumentos: Ipsi
abuerunt lumbos praecintos et dealbaverunt stolas suas ins sanguine agni.[3]
Quando cessou o
canto, voltei a perguntar:
- E essa faixa com
que te cinges?
Também desta vez
Sávio não quis responder.
E então, D.
Alazonatti cantou sozinho:
Virgines enim sunt,
et sequuntur adnum quocunque ierit.[4]
Compreendi então que
a faixa encarnada, cor de sangue, era símbolo dos grandes sacrifícios feitos,
dos violentos esforços e do quase martírio sofrido para conservar a virtude da
pureza; e que, para manter-se casto na presença do Senhor, estivera pronto a
dar a vida, se as circunstâncias assim o houvessem requerido; e também que era
símbolo das penitências, que limpam a alma da culpa. A brancura e o esplendor
da túnica significavam a inocência batismal conservada.
Eu, entretanto,
atraído por aqueles cantos e contemplando todos aquelas falanges de jovens
celestiais formados atrás de Domingos Sávio, perguntei-lhes:
- E quem são estes
que te rodeiam?
E, dirigindo-se aos
demais, disse-lhes:
- E como é que todos
vós estais tão exultantes?
Sávio continuou em
silêncio, e todos aqueles jovens puseram-se a cantar:
Hi sunt sicut angeli
Dei in caelo.[5]
Entretanto, percebia
que Domingos parecia ter preeminência sobre aquela multidão, a qual
respeitosamente encontrava-se a uma distância de uns dez passos atrás dele;
então disse-lhe:
- Diga-me, Domingos:
sendo tu o mais jovem de quantos te seguem e de quantos morreram em nossas
casas, por que és tu quem vai à frente deles e os precede? Por que és tu que
fala e eles calam?
- Eu sou o mais velho
de todos.
- Não – repliquei -,
muitos são mais velhos do que tu.
- Eu sou o mais
antigo do Oratório[6] –
repetiu Domingos Sávio – porque fui o primeiro a deixar o mundo e passar à
outra vida. Ademais, legatione dei fungor.[7]
Essa resposta indicava-me
o motivo da visão. Era o embaixador de Deus.
- Então – disse-lhe –
falemos daquilo que, agora, mais nos importa.
- Sim, pergunte-me
logo o que desejas saber. As horas estão passando, e poderia acabar o tempo que
me foi concedido para falar-te; e não poderias ver-me nunca mais.
- Segundo parece,
tens algum assunto de suma importância a comunicar-me?
- Que teria a dizer-te eu, mísera criatura? – disse humildemente Domingos. – Do alto recebi a missão de falar-te e por isso vim.
São Domingos Sávio fala sobre os salesianos
- Assim – exclamei –
fale-me do passado, do presente e do porvir do nosso Oratório. Fale-me de meus
queridos filhos, fale-me da minha Congregação.
- Com respeito a
esta, muito teria a comunicar-te.
- Conte-me, pois, o
que sabes, o passado...
- O passado recai
todo sobre ti.
- Cometi alguma
falta?
- Quanto ao passado,
digo-te que a tua Congregação já fez muito bem. Vês lá embaixo aquele número
incontáveis de jovens?
- Vejo-os – respondi.
– Quantos são! Que felicidade há em seus rostos.
- Olha o que está
escrito à entrada do jardim.
- Leio-o. Diz: Jardim Salesiano.
- Pois bem –
prosseguiu Domingos – todos eles foram salesianos, ou foram educados por ti, ou
foram salvos por ti ou por teus sacerdotes ou clérigos, ou por outros que encaminhaste
pela via de sua vocação. Conta-os, se podes. Seu número, entretanto, seria cem
milhões de vezes maior se maior tivesse sido tua fé e a confiança no Senhor.
Lancei um suspiro,
sem saber o que responder a tal censura; contudo disse para mim mesmo: No
futuro procurarei ter esta fé e esta confiança. Depois lhe disse: E o presente?
Domingos me
apresentou um magnífico ramalhete que tinha na mão. Havia nele rosas, violetas,
girassóis, gencianas, lírios, sempre-vivas e, entre as flores, espigas de trigo.
Ofereceu-mo e disse:
- Olha!
- Vejo mas não
entendo nada.
- Dê este ramalhete a
teus filhos para que possam oferecê-lo ao Senhor quando chegar o momento;
procure que todos o tenham; a ninguém falte nem se o deixe tirar. Tenha a
segurança de que com ele terão o bastante para ser felizes.
- Mas o que significa
esse ramalhete de flores?
- Consulta a
Teologia; ela te dirá e te dará a explicação.
- Estudei a Teologia,
mas não saberia como tirar dela o significado do que me apresentas.
- Pois tens estrita
obrigação de saber tudo isso.
- Vamos, acalma minha ansiedade, vamos; explique-o tu.
As virtudes e a Porta do Céu
- Vês estas flores?
Representam as virtudes que mais agradam ao Senhor.
- Quais são?
- A rosa é o símbolo
da caridade; a violeta, da humildade; o girassol, da obediência; a genciana, da penitência e da mortificação; as
espigas, da comunhão freqüente; o
lírio indica a bela virtude da qual está escrito: erunt sicut angeli dei in caelo[8] – a
castidade. E a sempre-viva significa que essas virtudes devem durar
sempre, e simboliza a perseverança.
- Pois bem, querido
Domingos: Tu, que durante a tua vida praticavas todas essas virtudes, diga-me:
qual foi a que mais te consolou na hora da morte?
- Que pensas que
possa ser? – respondeu Domingos.
- Foi talvez ter
conservado a bela virtude da pureza?
- Não é somente isto.
- Alegrou-te talvez
ter tranqüila a consciência?
- Isto é bom, porém
não é o melhor.
- Acaso terá sido o
teu consolo a esperança do Paraíso?
- Tampouco.
- Então o que será? O
haver entesourado muitas obras boas?
- Não, não!
- Então, qual foi teu
consolo naquela última hora? – lhe disse entre confuso e suplicante, vendo que
não conseguia adivinhar.
- O que mais me
confortou no transe da morte foi a assistência da poderosa e amável Mãe do
Salvador. Diga-o a teus filhos; e não se esqueçam de invocá-La em todos os
momentos de sua vida. Porém...
desperta-te, se queres que possa ainda responder-te.
Com
relação ao porvir...
-...Com relação ao
porvir, o próximo ano de 1877 terás que sofrer uma grande dor; seis mais dois
dos que te são mais caros serão chamados por Deus à eternidade. Consola-te,
porém, pois serão transplantados do deserto deste mundo aos jardins do Paraíso.
Serão coroados. Mas não temas. O Senhor te ajudará e te mandará outros filhos
igualmente bons.
- Paciência, e quanto
ao que se refere à Congregação?
- Quanto ao que se
refere à Congregação, saiba que Deus te prepara grandes acontecimentos. No
próximo ano surgirá para ela uma aurora de glória tão esplêndida, que
iluminará, como um relâmpago, os quatro cantos do mundo; do oriente ao
ocidente, do meridiano ao setentrião, está preparado a ela uma grande glória.
Tu deves procurar que o carro no qual vai o Senhor não seja desviado pelo teu
para fora de suas vias nem de seu caminho. Se teus sacerdotes o conduzirem bem
e souberem tornar-se dignos da alta missão que se lhes confiou, o futuro será
esplêndido e infinitas as pessoas que salvarás, sob a condição, entretanto, de
que teus filhos sejam devotos da Santíssima Virgem e quantos vivem em tua casa
conservem a virtude da castidade que é tão grata aos olhos de Deus.
- Agora, gostaria de
que dissesses algo sobre a Igreja em geral.
- Os destinos da
Igreja estão nas mãos do Criador. O que determinou em seus infinitos decretos,
não o posso revelar. Tais arcanos Ele os reserva exclusivamente para Si, e
nenhum dos espíritos criados participa deles.
- E Pio IX?
- O que posso
dizer-te é que o Pastor da Igreja terá que sustentar ainda longas batalhas
sobre esta terra. Poucas são as que ainda lhe restam por vencer. Dentro em
breve será arrebatado desta terra, e o Senhor lhe dará a merecida recompensa.
Quanto ao mais já se sabe. A igreja não perece... Tens ainda algo a perguntar?
- E quanto a mim? –
disse-lhe.
- Oh, se soubesses
por quantas vicissitudes ainda terás que passar! ...Apressa-te, pois me resta
pouco tempo para falar contigo.
Então estendi com
ardor as mãos para agarrar aquele santo filho; porém suas mãos pareciam aéreas
e nada pude tocar.
- Que fazes? –
Disse-me Domingos, sorrido.
- Temo que vás embora
– exclamei. – Pois, não estás com teu corpo?
- Com meu corpo, não.
Recobrá-lo-ei no último dia.
- Mas se não é teu
corpo, o que são estas linhas que me fazem ver em ti a figura de Domingos
Sávio?
- Olha, quando, pela
divina permissão, se vos aparece alguma alma já separada do corpo, apresenta
aos vossos olhos a forma exterior do corpo, ao qual animou com todos os traços exteriores se bem que
grandemente embelezados, e assim os conserva enquanto a ela não volte a reunir-se
no dia do juízo universal. Então
levá-lo-á consigo ao Paraíso. Por isso, perece-te que tenho mãos, pés e cabeça
mas não podes agarrar-me, porque sou espírito puro. Esta é apenas uma forma
exterior pela qual me podes conhecer.
- Compreendo – respondi -; porém, escuta. Ainda uma palavra. Meus meninos estão todos no reto caminho da salvação? Diga-me algo para que possa dirigi-los bem.
A divisão entre o Bem e o Mal
- Os filhos que a Divina Providência
te confiou podem dividir-se em três categorias.
Vês estas três listas?
E me entregou uma.
- Olhe-as!
Olhei a primeira; encabeçava-a a
palavra invulnerati, e tinha o nome daqueles aos quais o demônio não
pôde ferir, que não macularam sua inocência com culpa alguma. Eram em grande
número e os vi a todos. A muitos já os conhecia, outros era a primeira vez que
os via, e certamente virão ao Oratório em anos vindouros. Marchavam íntegros
por um estreito caminho, apesar de serem alvos de flechadas, espadadas e
lançadas que de todas as partes lhes choviam. Estas armas formavam como que uma
cerca ao longo das duas beiras do caminho, e os combatiam e molestavam sem
feri-los.
Então Domingos me deu a segunda lista,
cujo título era vulnerati, isto é, os que estavam na desgraça de Deus; porém,
uma vez postos em pé, já curaram suas feridas e arrependendo-se e
confessando-se. Eram em maior número que
os primeiros, e tinham sido feridos no caminho de sua vida pelos inimigos que
lhes serviam de cerca durante a viagem. Li a lista e os vi a todos. Muitos iam
curvados e desalentados.
Domingos tinha a terceira lista. Era
sua epígrafe lassati in via iniquitatis, e continha os nomes dos que estavam
na desgraça de Deus. Estava impaciente por conhecer o segredo; pelo que estendi
a mão; mas Domingos interrompeu-me com presteza:
- Não; aguarde um momento e ouve. Se
abrires esta folha, sairá dela um fedor tal, que nem tu nem eu lhe poderemos
resistir. Os anjos terão que se retirar enojados e horrorizados, e o mesmo
Espírito Santo sente náuseas pela horrível hediondez do pecado.
- E como pode dar-se isto, sendo Deus
impassível? – interrompi.
- Sim; porque quanto melhores e mais
puras são as criaturas, tanto mais se aproximam dos espíritos celestiais; e, ao
contrário, quanto pior e mais desonesto e soez é alguém, tanto mais se afasta
de Deus e de seus anjos, os quais, por sua vez, se apartam dele, que se
converteu num objeto de náusea e repulsa.
Então me deu a terceira lista.
- Tome-a – disse-me – abre-a e
aproveita-te dela para o bem de teus filhos; porém não te esqueças do ramalhete
que te dei; que todos o tenham e o conservem...
Dito isto, e depois de entregar-me a
lista, retirou-se no meio de seus companheiros.
Abri então a lista; não vi nome algum,
porém instantaneamente foram-me apresentados de um só golpe todos os indivíduos
nela escritos, como se, na realidade, eu visse suas pessoas. Com quanta
amargura os contemplei! Conhecia a maior parte deles e pertencem ao Oratório e
a outros colégios. Quantos desses parecem bons, e até os melhores dentre os
companheiros, e contudo não o são!
Quando abri a lista, difundiu-se nos
arredores um fedor tão insuportável, que imediatamente me vi assaltado de
acerbíssimas dores de cabeça e de umas aflições e náuseas tais, que acreditava
estar morrendo. Obscureceu-se o ar, desapareceu a visão, ziguezagueou um raio
que iluminou a estância, e reboou um trovão no espaço, tão forte e terrível que
me despertei sobressaltado.
Aquele fedor penetrou nas paredes,
infiltrando-se nas minhas roupas, a tal ponto que muitos dias depois eu ainda
sentia aquela pestilência. Agora mesmo, só com a recordação me vêm náuseas,
sinto-me sufocar e se me revolve o estômago.
Em Lanzo, aonde me encontrava, comecei a perguntar, ora a um ora a outro; falei com alguns jovens e pude certificar-me de que o sonho não me havia enganado. É, pois, uma graça do Senhor, que me deu a conhecer o estado de alma de cada um de vós, meus filhos; mas disto nada direi em público. Aproveitai, pois é para o vosso bem que o Senhor me envia esses sonhos.
(“Bibliografia y Escritos de San Juan Bosco” – BAC – págs. 654/663).
[1] isto é, retendes apenas o que é bom.
[2] A Deus, toda honra, toda glória, Deus
Pai Onipotente. Criador, pelos séculos dos séculos, que era, que é, e que virá
a julgar os vivos e os mortos nos séculos dos séculos.
[3] Apoc. 7, 14: Estes são aqueles que
vieram da grande tribulação, lavaram seus vestidos e os embranqueceram no
sangue do Cordeiro.
[4] – Eis que são virgens e os que assim se
tornaram pela penitência.
[5] – Eles são como os anjos de Deus no
céu.
[6] – O Oratório, como era chamado a casa
onde Dom Bosco convivia com os meninos.
[7] – Quer dizer que se apresenta como
“embaixador de Deus”.
[8] – Eram parecidos com os anjos
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