(Episódio na vida de São
Fernando, Rei de Castela e Leon, em que mostra uma época em que havia
benquerença).
Estava o rei São Fernando sentado
à mesa tomando sua refeição principal quando repentinamente entrou um
mensageiro gritando:
- Senhor, está chegando
apressadamente Ordoño Alvarez de Asturias e diz que lhe traz muitas e
maravilhosas notícias.
Em poucos instantes o
mensageiro foi autorizado a entrar, todo estropiado, salpicado de lodo, o
cabelo em desalinho, porém com tanta luz e entusiasmo nos olhos que fazia todos
esquecerem do seu aspecto pessoal. Chegou até o rei, fez uma genuflexão e
beijou-lhe a mão dizendo:
- Senhor, sabei que sois
dono de Córdoba!
- Que dizes, Ordoño?
Dissestes Córdoba?
- Córdoba, meu senhor!
Córdoba, que numa escuríssima noite escalamos as muralhas. Tomai e lei – disse,
entregando-lhe a mensagem.
Lendo o documento, pôs-se
de pé e mandou o mensageiro aguardar um instante. Vira-se para um dos Cortesãos
e diz:
- Mandai chamar todos os
meus cavaleiros e dizei-lhes que se armem e encilhem seus cavalos.
Chamou outros e a cada uma
dava uma ordem, esquecendo-se por completo da refeição que estava ainda sobre a
mesa. Os cortesãos saíram apressadamente para cumprir as ordens. Assistindo a
tudo estavam São Pedro Telmo, que havia sido convidado por São Fernando para
lhe fazer companhia nas guerras, e um frade, que diz:
- Frei Pedro, “Irruit
Domini spiritus in Rege”...
O outro responde:
- Vamos com ele, Dom
Lope...
O religioso, com espírito
profético, percebia que o santo rei estava cheio do espírito de Deus e que valia a pena pois segui-lo onde
fosse.
Uma hora depois aparecia o
rei, fortemente armado e coberto de uma grande capa com capuz, e fica no pátio
aguardando a chegada de seus cavaleiros.
Quando grande parte havia chegado, diz o rei:
- Sigam-me os amigos!
- Santiago e Castela! –
respondem os cavaleiros.
Apesar da tempestade que
caía, São Fernando, impaciente para ir ao combate, não esperou o restante de
seus homens e partiu logo em direção de Córdoba. Passando em Zamora parou um
pouco para falar à população e em Salamanca para organizar melhor sua pequena
hoste. Mandou um de seus ricos-homens se dirigir ao Conselho para explicar o
que ocorria e seguiu céleremente para Merida, na fronteira. O cansaço daquela
tremenda corrida fatalmente teria rendido a homens mais velhos ou menos
preparados, o que ocorreu com alguns deles que ficaram para trás a fim de
juntar-se aos demais que vinham na retaguarda. Desta forma, quando São Fernando
chegou na fronteira só contava com pouco mais de trinta cavaleiros e alguns
peões em sua companhia. Porém, que homens! Eram os tais dos “cavaleiros
certos” que quase nunca falhavam em suas
missões. São Fernando iria com eles até o fim do mundo. E eles seguiam seu rei
sem vacilação, confiantes na proteção de seu Senhor Jesus Cristo.
Atravessada a fronteira,
resolveram acampar para descansar um pouco nas imediações de um castelo e bem
próximos de uma fonte de água. São Fernando manifestou o desejo de usar daquela
fonte, olhou um pouco para o castelo à sua frente e em seguida para seus
cavaleiros e, demonstrando extrema confiança e tranqüilidade, mandou armar a
tenda ali. Seus cavaleiros cumpriram imediatamente suas ordens sem lhes causar
a menor surpresa aquela audácia incrível, pois sabiam que onde o santo rei
estivesse nada de mal lhes poderia acontecer.
Sentado à porta de sua
tenda, ficou São Fernando rezando e pedindo à Santa Maria que os ajudasse, pois
estavam também sem comer desde que partiram:
- Sois tão rica e poderosa
Rainha e não me haveis de dar o pão necessário para teus servos e cavaleiros,
os quais por teu Filho e por ti se metem a tantos perigos de morte?
Como rezava em voz alta
foi ouvido pelo seu irmão, o infante Dom Alfonso, que se aproximou do rei e,
apontando na direção do castelo, lhe diz:
- Vede, meu irmão rei, que
nossa Mãe Gloriosa vos manda o que pede.
Em direção do acampamento
do rei vinha caminhando um mouro, saído do castelo, seguido de outros homens
que conduziam consigo grande quantidade comida e de odres com vinho.
- Vamos recebê-los como
amigos, pois nos fazem boa obra.
Os jovens cavaleiros do
rei fizeram um círculo em redor do mesmo para receber os visitantes. Avançou
calmamente o mouro com seus homens e assim que se viu perante São Fernando lhe
diz:
- Rei Fernando, só vós
sois tão esforçado e leal que assim arma sua tenda junto a um castelo inimigo.
E porque confiaste tanto em minha proteção em vez de minha ira, sendo tu meu
inimigo, quero tornar-me teu amigo e por isso rogo que aceite o que trago de
presente para aliviar vosso sofrimento.
- Muito vos agradecemos,
principalmente por sua amizade. Como é chamado o teu castelo?
- É chamado de
“Bienquerencia”, rei Fernando, e pertence a Aben-Ilud.
E continuou a conversa
fazendo a descrição da fortaleza, ressaltando quanto era bem defendido e de
quanto estava bem abastecido de víveres. São Fernando o ouvia com o semblante amável
e um sorriso franco, matizando um pouco com certa ironia porque era bem
conhecedor daquela gente, e compreendia que havia naquelas expressões não só o
desejo de amizade mas também o medo de ter que enfrentá-lo. Após o mouro terminar
de falar, diz-lhe:
- Já que queres ser meu
amigo deves me entregar as chaves do castelo.
O mouro ficou surpreso com
aquele ousado pedido. Olhou para um lado e para outro, espantado, e respondeu:
- Isso não! Eu vivo
sujeito a Córdoba e só poderei te entregar o castelo se tu conquistares aquela
cidade.
Estava ironizando, pois
não poderia Imaginar, certamente, que São Fernando pretendia conquistar Córdoba
com aqueles trinta cavaleiros. Perante a negativa, São Fernando, sem
desconcertar-se, lhe responde:
- Agrada-me que sejas um
homem leal e cumpridor de tua palavra. Assim que tiver conquistado Córdoba
deverás me entregar o castelo.
Despediram-se, indo o
mouro de volta para seu castelo e ficando os homens com São Fernando a saciar a
fome.
Ao raiar do dia seguinte, São
Fernando levantou acampamento e seguiu seu caminho em busca de Córdoba, a
famosa cidade dos califas. Ao longe, ficou o mouro acenando do castelo,
despedindo-se amistosamente do rei cristão e de seus homens, resmungando: “Está
escrito que Alá entregue Córdoba aos infiéis cristãos?”
Poucos dias depois, após
São Fernando haver conquistado Córdoba, o mouro cumpre a palavra e entrega o “Castelo
da Benquerença” ao rei cristão.
(Transcrito
e traduzido da obra “Nuestra Señora en el Arzon”, de C. Fernandez de Castro,
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