sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

DILEMA DE SÃO NUNO DE SANTA MARIA: CASTIDADE PERFEITA OU OBEDIÊNCIA?

 




No ano de 1373, o pai de São Nuno resolve enviar o seu filho para a corte, contando o mesmo apenas 13 anos de idade. Aquela mudança era necessária para formar no espírito do jovem os ideais de grandeza sem perder a ingenuidade das primeiras lições juvenis. Naquele tempo o jovem amadurecia cedo, e o prior do Crato viu naquele rapazote de apenas 13 anos maturidade suficiente para enfrentar os problemas da corte, que já eram muitos e difíceis.

Aos 16 anos de idade, o pai de Dom Nuno o obriga a contrair matrimônio, embora o rapaz houvesse pedido a dispensa pois houvera feitos votos de castidade.  Disse-lhe certo dia Dom Álvares:

- Nuno, parece-me bem e serviço de Deus e tua honra, que hajas de casar...

Aquilo lhe soava como algo muito estranho, pois nunca havia pensado nisto. Seu ideal era o da Cavalaria, e por isso nunca havia pensado em mulher. E como o jovem ficava cabisbaixo e pensativo, o pai acrescentou:

- Nuno, és homem e farás casa. Achei-te a noiva entre Douro e Minho. Mandei lá João Fernandes, o comendador da Flor da Rosa e de São Brás de Lisboa.  Ela concordou, pondo por condição única a aprovação de el-rei. Já a obtive, e el-rei mandou-a vir à corte.

Como o jovem continuava pensativo, sem saber o que dizer, o pai completa:

- É D. Leonor de Alvim, boa, de boas rendas e cabedal: a viúva de Vasco Gonçalves, de Barroso...  Filha de João Pires de Alvim e de D. Branca Pires Coelho, nossos parentes em quarto grau.  Têm escudo esquartelado: nos dois enxadrez, vermelho e amarelo; e nos contrários, cinco flores-de-lis de ouro, em campo azul. Vai bem com a cruz floretada dos Pereira. Já se pediram as dispensas ao Papa Gregório IX: vêm a caminho. É muito nobre dama e de grande virtude; e a minha vontade manda, se a Deus prover, que te cases com ela. Quero saber de ti o que te parece isto...

Finalmente, após tal insistência do pai, Dom Nuno resolve falar, mas apenas para pedir que lhe desse um tempo para pensar, pois não estava avisado e precisava analisar sua consciência e julgar que resposta daria. O pai concordou com o pedido, mas não imaginava o que poderia se passar na cabeça de seu filho. A mãe de Nuno, D. Iria Gonçalves, imaginava que o filho não aceitaria o casamento porque a noiva era viúva. Foi ela até o filho e lhe garantiu, de fonte certa e segura, que poderia aceitar o casamento, pois a noiva prometida era virgem, já que o casamento nunca havia sido consumado com a morte repentina do marido.

Não, não era este o motivo. Dom Nuno lhe disse que não desejava se casar com pessoa alguma, fosse virgem ou não, pois havia feito particularmente voto de castidade. O ideal que alimentava sua alma era de uma total dedicação à Cavalaria cristã, e para tanto desejava ardentemente permanecer casto. Era comum entre a nobreza cristã desta época surgir inspiração para tais votos entre                 os jovens. Haviam os exemplos de cavaleiros famosos, como Godofredo de Buillon e tantos outros cruzados. Tratava-se do desejo de adquirir uma das mais belas bem-aventuranças quando Nosso Senhor Jesus Cristo disse: "Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus" (Mt 5, 8). Ou então, quando mais adiante falou aos seus discípulos: "Nem todos compreendem esta palavra, mas (somente) aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que nasceram assim do ventre e sua mãe, há eunucos a quem os homens fizeram tais e há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do reino de Deus. Quem pode compreender compreenda"  (Mt 19, 11-12).

O pai não gostou da idéia, e insistiu que deveria prevalecer sua vontade. Ademais, já tinha tomado todas as providências, inclusive obtido previamente a ordem de el-rei e a dispensa da Igreja. Que dispensa era esta? Os cronistas não dizem, mas como não havia impedimento legal com relação ao parentesco, provavelmente era com relação aos votos que o jovem fizera em particular. Desta forma, não havia outra alternativa senão obedecer, embora contrafeito, e aceitar sem nenhuma ressalva cumprir a vontade de seu pai. E o casamento foi realizado...

Seu casamento o fez afastar-se da corte por algum tempo, talvez uns três anos. Foi morar com sua esposa na região do Minho, onde montou uma propriedade rural. Levava, assim, uma vida de fidalgo rural, caçador e monteiro, cercado por seus escudeiros e por seus criados.  Esta ausência o fez ignorar, de algum modo, como andava mal a corte portuguesa. Após algum tempo, porém, teve que se afastar para dirigir as empresas guerreiras de que carecia a nação portuguesa.

Tentativa frustra de casar um guerreiro viúvo

De volta de uma destas expedições guerreiras, Nun'Álvares mais uma vez se dirige para o seu Alentejo, onde se sentia mais à vontade. Quando as cortes se reuniram no ano seguinte, foi ele chamado a Coimbra. De lá soube de uma triste notícia que o deixou muito ferido. Havia falecido em Braga sua esposa, D. Leonor de Alvim, cujo cadáver foi transportado para ser enterrado na cidade do Porto. O casamento durara quase doze anos (de agosto de 1376 a janeiro de 1388), cinco dos quais o Condestável andara afastado da esposa em suas guerras contra Castela.  A única filha foi residir então com sua avó, D. Iria Gonçalves, mãe de Dom Nuno. O Condestável ficava viúvo com apenas 28 anos de idade.

A rainha, D. Filipa, tinha bastante empenho em procurar casar seus nobres. Desta forma, chamou Dom Nuno e lhe disse que iria conseguir uma outra esposa para ele. No entanto, o cavaleiro, o nobre Condestável, desdenhava do casamento, pois se considerava casado apenas com sua sagrada, rija e bela espada, com seu ideal sacrossanto de defender a sua pátria e sua Religião. Se ele precisa estar sempre presente no campo de batalha como poderia dar assistência adequada à sua esposa e filhos? Não, seu ideal era outro, o casamento não se lhe apresentava senão como um óbice a seus desígnios cavalheirescos e guerreiros.

A prometida, logo escolhida pela própria rainha, era a filha do Conde Álvaro Pires de Castro, D. Beatriz, cujo conde já causara estorvos ao Condestável há quatro anos quando começou a sua campanha pela entronização de Dom João em 1384. Sem querer machucar a rainha, que demonstrara tão boa vontade no caso, respondeu-lhe:

- Para oferecer a D. Beatriz os meus braços, é preciso que eles estejam desarmados, e não convém ainda largar a espada.

Mas a rainha insistia, teimava em casar o seu Condestável. Dom Nuno, também teimoso, resolve fugir e foi para o seu Alentejo, onde sempre se refugiava das complicações que encontrava pela corte.  Iniciou logo uma campanha, desta vez contra o mestre de Santiago que atacava Estremoz. Daí partiu para outras investidas guerreiras, em Ourique contra o conde de Niebla, e em Monsaraz contra gascões e castelhanos. Não impedira, porém, que o inimigo levasse cativos vários portugueses para Vila Nueva del Fresno, além da fronteira.  Resoluto, marchou com seus homens ainda de madrugada para libertar seus companheiros. Assaltaram a torre do castelo e travaram renhida batalha. Dom Nuno foi ferido numa coxa, mas todos os cativos que estavam ali foram libertados. E assim, estava tão envolvido em suas campanhas guerreiras que não houve tempo de pensar em novo casamento.

Após a vocação guerreira, a do claustro

A decisão veio quando soube da morte de sua filha, o único laço que ainda o prendia ao mundo profano. Assim que o esquife da filha baixou a sepultura, imediatamente lhe surgiu na alma a decisão de se retirar do mundo (mais ou menos em 1422 ou 1423).  Mas, antes de renunciar ao mesmo mundo, ainda teve que cumprir uma missão: mandou chamá-lo o rei Dom João I para fazer parte da expedição de Ceuta. Era a primeira expedição de Portugal contra os mouros fora de seu território. O Condestável pediu ao rei que o dispensasse porque havia decidido entrar no convento, mas o rei o convenceu sobre a importância de sua presença no comando do exército, fato que tornou a empresa mais eficaz e ter atingido o objetivo final.

Quando retornou de Ceuta, Dom Nuno teve que participar sua decisão ao rei e aos amigos do reino. Estava pedindo que o dispensasse do cargo de Condestável pois estava prestes a entrar no convento e se fazer religioso. Dom João e o infante Dom Duarte insistiam para que ficasse, pois Portugal ainda precisava de seus serviços. De nada valeram seus pedidos.  O bondoso príncipe, com lágrimas nos olhos, pediu-lhe que pelo menos conservasse os títulos que conquistara. Mas o noviço respondeu, alisando o escapulário:

- O Condestável já está morto e amortalhado.

Proibiu, naquele momento, que a partir daquela data o chamassem de conde ou condestável, mas somente de Nuno. Finalmente, no dia 15 de agosto de 1423, quando contava 63 anos de idade, o Condestável Nun'Álvares Pereira deu entrada no claustro do Carmelo em Lisboa, aquele mesmo que ele houvera construído e doado à Ordem. Tomou o nome em religião de Frei Nuno de Santa Maria. Naquela data, vestiu pela primeira vez a túnica talar branca com escapulário marrom. No mesmo instante, entregou ao Prior Frei Gomes de Santa Maria a cota de malha que usara nas batalhas, sua famosa e invencível espada e o relicário que sempre trazia em seu peito. Recebido o hábito, instalou sua cela ao lado da portaria.   Ele agora iria comandar outras batalhas, as do espírito, contra as tentações da carne e em busca das perfeições cristãs. E para tanto, como era costume na época, não descurou de usar seu cilício e rigorosas penitências. Evidentemente que consumou seu desejo de fazer votos de castidade, desta vez não em particular, mas público sob as vistas de seus novos superiores

Tamanha era sua fama que o seu claustro começou a ficar incômodo, pois muitos o queriam visitar. Pretendia fugir para os longínquos desertos de Tebas, onde viveram os primitivos anacoretas. Se havia tomado tal decisão, Dom Nuno procuraria cumpri-la a todo custo, pois não era homem de voltar atrás em seus propósitos. Mas, Dom Duarte correu ao convento, quando soube de sua intenção. Os argumentos do infante foram ouvidos por Frei Nuno e resolveu ficar. Na ocasião, atendeu ele também ao pedido do infante para não mais sair às ruas pedindo esmolas. A partir daquela data, ele só pediria esmolas ao rei.

Viver solitário naquele convento não seria difícil, bastava fazer uma cela num local de difícil acesso aos curiosos. Assim, mandou construir dentro do convento uma outra cela, mais isolada, onde recebeu várias visitas da Virgem Santíssima que o favorecia com constantes aparições.  Foi nesta cela que lhe apareceu também Santo Elias, o Patriarca dos Profetas e Fundador remoto da Ordem do Carmo. Uma das poucas vezes em que permitiu que rompessem o seu isolamento foi quando autorizou a entrada de um embaixador de Castela, vindo a Lisboa ratificar tratados de paz. Frei Nuno, depois de se recolher em oração, mandou que a visita entrasse, que lhe perguntou:

- Nunca mais despireis essa mortalha?

- Só se el-rei de Castela outra vez mover guerra contra Portugal. Em tal caso, enquanto não morrer, servirei ao mesmo tempo a Religião que professo e a terra que me deu o ser.

O embaixador ficou assombrado, teve aqueles mesmos assombros que os castelhanos tinham quando sabiam que Dom Nuno vinha com seu exército para lhes dar combate.  Olhou para Frei Nuno e, vendo-o levar as mãos ao peito e apertar o escapulário, percebeu que por baixo do hábito havia ainda a armadura de guerreiro.  Não, ele ainda não havia morrido. Não havia morrido para a luta, para reparar a injustiça e punir os culpados. Estava perfeitamente visível para o embaixador o seu arnês, que ele propositadamente colocara para dar a entender que poderia voltar ao campo de batalha se fosse necessário.[1]



[1] Extraído, com adaptações, do livro "A Vida de Nun'Álvares", de Oliveira Martins, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1983.

 


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