domingo, 22 de dezembro de 2013

Propostas de reforma da Cúria Romana são bem antigas




A “Cúria” é o órgão administrativo da Santa Sé, formado pelas autoridades que regem o funcionamento de toda a Igreja. O termo “cúria” vem do latim, e quer dizer “corte”, dando à igreja sua característica monárquica. Foi no Pontificado de Paulo VI que a Cúria sofreu sua última reforma, através do Decreto “Christus Dominus”, de 28.10.1965. Uma outra reforma, forçada, havia sido feita no século XIX, quando a Igreja teve seus Estados Pontifícios invadidos e tomados pela força, pois a partir desta data não havia mais como administrar tais estados, forçando a Igreja a assinar o Tratado de Latrão em 1929.

Muitos tentam separar os problemas meramente administrativos, políticos e legais dos religiosos; mas, com a Igreja, isso é impossivel, pois tudo o que fizer qualquer representante da Igreja terá que mostrar um sentido moral e religioso naquilo que faz. Assim, fala-se hoje numa reforma da Cúria Romana apenas com medidas de caráter burocráticos, como se os membros da Igreja, seus clérigos e presbíteros que atuam na sua direção, não exercessem nenhum papel religioso em seus trabalhos. Falam de questões econômicas e financeiras como se a Igreja vivesse apenas em função delas. Não é bem assim, como veremos adiante.

E para avaliar bem, vamos pôr em confronto dois Papas, o atual e Adriano VI (século XVI). Podemos traçar alguns traços de semelhanças entre os dois, apesar de tão distantes no tempo.

O Papa Adriano VI, de curtíssimo reinado de pouco mais de um ano, foi um dos poucos Pontífices a adotar o próprio nome após eleito, pois trazia de nascimento o nome (era de Ultrecht, Países Baixos) de Adrian Floriszoon Boeyens. O Papa Francisco também rompeu uma tradição de homenagear um antecessor, apenas não adotou seu nome de nascimento. Adriano foi também o único Papa não italiano até João Paulo II, tendência que segue até hoje. No início do ano seguinte a seu pontificado, em janeiro de 1523, começou a fazer uma reforma na Cúria Romana, programa que o atual Papa também está tentando implantar no Vaticano. Diz-se que Adriano VI era impopular entre os italianos por ser estrangeiro e pouco culto, não tendo sido também muito feliz na condução de assuntos políticos e religiosos da época. Francisco é estrangeiro na Itália e não muito culto, mas é muito diferente daquele Papa no que diz respeito à popularidade. Com relação ao sucesso do Papa atual nas questões políticas e religiosas, ainda é muito cedo para se avaliar.

Transcrevemos aqui o texto de um documento em que Adriano VI falava da reforma na Cúria. Se o Papa Francisco pretende fazer uma reforma que atinja o cerne da questão e da crise religiosa que atualmente assola a Igreja, deverá pautar sua reforma nos termos em que o pretendia aquele outro Papa. Embora os tempos sejam outros, no entanto, se a causa de tantos problemas são de origem moral e doutrinária, e envolvem principalmente o clero, será pensando em tais questões que qualquer reforma deverá ser pautada.

O famoso historiador Ludovico Pastor, autor da obra “História dos Papas”, transcreve um documento memorável de Adriano VI, a instrução lida pelo núncio Francesco Chieregati e dirigida aos príncipes alemães reunidos em Nueremberg no dia 3 de janeiro de 1523. Estava em plena efervescência a revolta protestante, ainda em seu nascedouro, e a admoestação do Papa visava essencialmente prevenir o que veio a ocorrer depois, pois o protestantismo nasceu exatamente no seio do clero decadente (não se esqueçam que Lutero era padre). Como havia muita corrupção entre os clérigos, o Papa desejava uma reforma profunda que sanasse tais males. Eis o texto:

“Deves dizer também que reconhecemos livremente haver Deus permitido esta perseguição a sua Igreja, por causa dos pecados dos homens, e especialmente dos Sacerdotes e Prelados, pois de certo não se encurtou a mão do Senhor para nos salvar; mas são nossos pecados que nos afastam d’Ele, de modo que não nos ouve as súplicas.

“A Sagrada Escritura anuncia claramente que os pecados do povo têm origem nos pecados dos sacerdotes, e por isto, como observa (São João) Crisóstomo, nosso Divino Salvador, quando quis purificar a enferma Jerusalém, dirigiu-se em primeiro lugar ao Templo, para repreender antes de tudo os pecados dos sacerdotes; e nisso imitou o bom médico, que cura a doença em sua raiz.

“Bem sabemos que, mesmo nesta Santa Sé, há já alguns anos vêm ocorrendo, muitas coisas dignas de repreensão; abusou-se das coisas eclesiásticas, quebrantaram-se os preceitos, chegou-se a tudo perverter. Assim, não é de espantar que a enfermidade se tenha propagado da cabeça aos membros, desde o Papa até aos Prelados.

“Nós todos, Prelados e Eclesiásticos, nos afastamos do caminho reto, e já há muito não há um que pratique o bem. Por isso devemos todos glorificar a Deus e nos humilharmos em sua presença; que cada um de nós considere por que caiu, e se julgue a si mesmo, ao invés de esperar a justiça de Deus no dia de sua ira.

“Por isto deves tu prometer em nosso nome que estamos resolvidos a empregar toda a diligência a fim de que, em primeiro lugar, seja reformada a Cúria Romana, da qual talvez se tenham originado todos esses males; e acontecerá que, assim como a enfermidade por aqui começou, também por aqui comece a saúde.

“Nós nos consideramos tanto mais obrigados a levar isso a bom termo, quanto todo o mundo deseja semelhante reforma.

“Porém não procuramos nossa dignidade pontifícia e de mais bom grado teríamos terminado na solidão da vida privada nossos dias; de bom grado teríamos recusado a tiara, e só o temor de Deus, a legitimidade da eleição e o perigo de um cisma nos determinaram a aceitar o supremo múnus pastoral. Em consequência, queremos exercê-lo não por ambição de mando, nem para enriquecer nossos parentes, mas para restituir à Santa Igreja, Esposa de Deus, sua antiga formosura, prestar auxílio aos oprimidos, elevar os varões sábios e virtuosos, e, genericamente, fazer tudo o que compete a um bom pastor e verdadeiro sucessor de São Pedro.

“Não obstante, que ninguém se surpreenda, se não corrigimos todos os abusos de um só golpe; pois as doenças estão profundamente enraizadas e são múltiplas; pelo que é preciso proceder passo a passo, e opor primeiramente os oportunos remédios aos danos mais graves e perigosos, para não perturbar ainda mais a fundo por meio de uma precipitada reforma de todas as coisas.Com razão diz Aristóteles que toda mudança repentina é muito perigosa para uma sociedade”.



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