(Revista “Dr. Plínio”, n. 307, outubro de 2023)
Analisando a frase de Dona Lucília “viver é estar juntos,
olhar-se e querer-se bem”, Dr. Plinio fala sobre o Céu, a vida nesta Terra e a respeito
do mistério de Nossa Senhora. Tais reflexões ficam como semente em nossas
almas, a qual a graça no momento oportuno fará frutificar. Esses temas,
suscitados a propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo, são montanhas da
cordilheira que é o Segredo de Maria.
Pensando a respeito do Segredo de Maria, do
qual fala São Luís Grignion de Montfort, veio-me a seguinte consideração:
A mais alta atividade
do homem na Terra
Nossa Senhora é tão grande que poderia ser
comparada a um monte o qual se perde nas névoas e cujo cume reaparece, de
repente, por cima das nuvens. Tudo n’Ela é segredo, porque é completamente
desproporcionada em relação a nós. Ela é incomparável!
Entretanto, a meu ver, o conjunto desses
segredos desfecha num outro que é uma espécie de píncaro dos píncaros dos
segredos; se fôssemos elaborando um catálogo a respeito deles, conseguiríamos,
talvez, fazer a ideia geral do que é esse Monte incomparável.
Quando minha mãe disse “viver é estar juntos,
olhar-se e querer-se bem”, tive uma espécie de choque e pensei: “Como ela, que
é de uma inteligência comum, com a cultura própria às senhoras do tempo dela,
portanto em nada uma universitária, sai com isso que revela uma profundidade em
que eu não tinha cogitado?” Várias vezes pensei nisto: “No fundo, a sociedade
de almas é feita de ‘estar juntos, olhar-se e querer-se bem’”.
Fazer isso noite e dia supõe, em contrapartida,
também rejeitar quem deve ser rejeitado, não querer bem os lados que não se
deve querer bem, e não olhar. Agir assim é fazer um uso adequado dessa
atribuição, dessa atividade.
De fato, isso é a essência da vida dos homens
na Terra, o mais alto meio que se tem para chegar a Nosso Senhor, porque na
visão beatífica é isso que vai haver. Quando Ele diz: “Eu serei a vossa
recompensa demasiadamente grande” (cf. Gn, 15, 1), a ideia que se tem é de que
isso se realizará estando junto a Ele, olhando-nos e nos querendo bem,
reciprocamente. O Céu é isso.
Logo, a mais alta atividade do homem na Terra é
“estar junto, olhar e querer bem” àqueles em relação aos quais, por vontade
divina, ele deveria fazer. Por isso, nós também somos responsáveis por termos
recusado aqueles que não deveríamos recusar, ou aceito quem não deveríamos
aceitar, ou ainda por não termos dado a cada um daqueles que, segundo o desígnio
da Providência, deveríamos encontrar no nosso caminho, aquilo de “estar juntos,
de olhar-se e querer-se bem” próprio a cada um, nos planos de Deus. Se todos
fizessem isso, teríamos outra ideia da vida humana que habitualmente as pessoas
não possuem.
Isso supõe uma finura de percepção psicológica
que não é apenas uma penetração como se concebe no discernimento dos espíritos,
mas também um estado de alma pelo qual se entra em consonância com os outros,
sentindo-se mutuamente. Esse é um elemento fundamental, de maneira que uma
atitude de piedade tomada pelo outro repercute em nós, como também um movimento
piedoso que tenhamos repercute nele. Por outro lado, os defeitos repercutem
também mutuamente à maneira de um golpe, de uma tristeza e, conforme o caso, de
uma recusa. Esta perfeita entrosagem faz propriamente a essência da vida.
Trinta anos de convívio
na casa de Nazaré
Nosso Senhor Jesus Cristo, ao elevar a sua
arquicriatura, Maria Santíssima, pelo “estar junto, olhar-se e querer-se bem”,
ao arquipíncaro que ao qual Ele era arquichamada, levanta atrás d’Ela todo o
gênero humano e coloca entre os homens a possibilidade dessa sociedade de almas
numa clave que não havia antes, da qual até os pagãos, sem o saberem, de algum
modo foram beneficiados, mesmo sem terem conhecimento da existência d’Ele e
d’Ela.
Nisto está uma explicação dos trinta anos de
convívio na casa de Nazaré precisamente porque, se Nossa Senhora não realizasse
toda a santidade a que foi chamada, o plano de Deus para o mundo inteiro não se
realizaria, segundo os desígnios d’Ele.
Para termos uma ideia disso, imaginemos um
homem a quem Deus conferisse o poder de fazer nascer o Sol. E que então poderia
escolher, a cada dia, onde e como despontar o Astro-Rei para determinar sobre
face da Terra a mais bela aurora possível. Isso seria a vida desse homem. Ora,
Nosso Senhor fez isso com sua Mãe Santíssima. Ela é o Sol que Ele fez nascer.
Então, pode-se imaginar a consolação, o gáudio d’Ele atuando todos os dias e o
dia todo sobre Nossa Senhora, e Ela dando continuamente a mais perfeita
correspondência possível à ação de seu Divino Filho que, com encanto indizível,
contemplava a ascensão d’Ela de arrebol em arrebol. Acrescentemos a isso a
consideração de que Ela era o Paraíso de Deus, e compreenderemos bem o que
foram esses trinta anos de convívio.
Entretanto com uma circunstância: nasce um
segredo. No início de sua Paixão o Divino Redentor teve aquele desfalecimento
em que Ele foi ajudado por um Anjo. É, no fundo, uma coisa incompreensível que
um Anjo O tenha auxiliado, mas Ele quis isto. Será que, na previsão da Paixão,
Nosso Senhor não quis ser amparado por Nossa Senhora, de maneira a Se ajudarem
mutuamente?
Não podemos imaginar que, estando sujeito à
condição terrena e tendo o Verbo Se encarnado para sofrer a Paixão redentora,
Eles passassem trinta anos de mero gáudio, sem que conversassem sobre a Cruz. É
claro que a Santíssima Virgem deve ter perguntado ao Homem-Deus a respeito da
Redenção, a fundo; tanto mais que era Ela mesma a Co-Redentora do gênero
humano.
Por isso, parece-me impossível que não tenham
tratado sobre a Paixão e Morte de Jesus e, portanto, que não tenham sofrido com
isso, sendo esse sofrimento d’Eles interpenetrado por uma união de almas
intimíssima. Vou dizer mais: tenho a impressão de que essa união atingiu o seu
ápice a propósito da Cruz. Porque quando duas pessoas sofrem juntas, rumo ao
mesmo ideal, elas se unem de um modo que nada mais faz unir tanto assim.
Então, o que terão conversado sobre tudo isso?
O que Ele terá instruído a Ela? Que perguntas Ela terá feito a Ele?
Barreira entre Nosso
Senhor e sua Santíssima Mãe
Toda a vida causou-me uma impressão
profundíssima o encontro de Nosso Senhor com Nossa Senhora na Via Crucis, que foi o prelúdio da última
ajuda, a qual se daria no cimo do Calvário onde, estando Ele no alto da Cruz,
ampararam-se mutuamente.
Por fim, a última despedida, quando a Mãe
Dolorosa ouviu o brado: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?” (Mt 27,
46).
Esse brado parece-me conter uma constatação
terrível: é que, com isso, Nosso Senhor dizia que a própria presença de Nossa
Senhora tinha se tornado insensível para Ele. Quem sabe se também d’Ela teria
sido pedido esse sacrifício, de maneira que Ele tenha Se tornado insensível
para Ela naquele momento! É possível.
Como o martírio d’Ele era mais interior do que
físico, também o pior abandono deveria ser interior. Se Ele estivesse inundado
de consolação, não teria bradado: “Meu Deu, meu Deus, por que Me abandonastes?”
Ora, Jesus tinha ali a sua Mãe, a qual valia incomparavelmente mais do que toda
aquela canalhada que estava lá. Nem se pode comparar, pois a simples comparação
já é uma blasfêmia.
Consideremos que a dor de Nosso Senhor por
aquilo tudo que estava se passando era tal que Ele Se sentia abandonado pelo
Pai Celeste, quando foi o próprio Pai Celeste Quem mandou Nossa Senhora para
ajuda-Lo. Fazendo uma comparação entre a taça com o líquido que Ele bebeu no
Horto das Oliveiras e a presença de Nossa Senhora, essa taça não seria
prenunciativa da presença d’Ela junto à Cruz? Não foi exatamente Maria
Santíssima Quem deu forças a Ele? Entretanto em certo momento Nosso Senhor não
sentia mais essa sustentação.
Podemos ter uma ideia de qual foi a dor d’Ela
nesse momento se transpormos essa situação para termos meramente humanos. Um
homem está morrendo de uma doença tragicamente dolorosa num hospital, e a sua
mãe o assiste com todos os mil desvelos possíveis e imagináveis. Em certo
momento ele lhe diz: “Mamãe, eu vou lhe fazer uma confidência: de momento, não
sinto afeto nenhum pela senhora; e tanto a senhora pode estar aqui como na
Conchinchina, pois tal é a dor na qual estou absorvido e precipitado que a sua
presença não me adiante de nada: Estou perdido no mare magnun dos tormentos”.
A hora em que desceu essa barreira entre Nosso
Senhor e sua Santíssima Mãe, e aquele “estar juntos, olhar-se e querer-se bem”
se rompeu ainda que fosse na aparência, o tormento que isso deveria representar
para Ela é inimaginável. Entretanto, a Virgem Maria teve que passar por isso.
Montanhas da
cordilheira que é o Segredo de Maria
Ao que parece, os Apóstolos levaram muito tempo
para procurar Nossa Senhora, porque ao pé da Cruz só estava São João. Mas para
se aproximar d’Ela, depois de tudo quanto tinham feito, qual não seria o
mal-estar, a vergonha...
Creio que eles se sentiram meio traidores, no
sentido de não terem sido fieis no cumprimento da missão deles. Quiçá alguns
deles, senão todos, puseram-se a andar pelas ruas de Jerusalém meio
desatinadamente, e quando se viam não tinham sequer coragem de se olhar e
passavam um longe do outro.
De repente, um deles passa perto de um homem e
de uma mulher, e esta se gaba de ter dado uma bofetada em Jesus. E o homem diz:
“Isso não é nada, eu O joguei no chão”.
Um Apóstolo que visse isso sairia de Jerusalém
pelo campo afora correndo, sem saber para onde ir. Imaginem um outro que
estivesse no terraço de uma casa e o vento trouxesse para ele o eco da voz de
Nosso Senhor bradando de dor em algum lugar...
Se um Anjo nos fizesse ouvir um brado, um
gemido d’Ele, púnhamos de joelho e ficávamos rezando indefinidamente...
Imagine, então, quem tenha ouvido aquela voz durante três anos, admirando todas
suas inflexões, e compreendia toda aquela dor... Eu não teria a menor surpresa
se algum deles tivesse morrido de dor, só por pensar: “Por que fizemos isso?
Mas meu Deus do Céu, como era possível?”
Daria vontade de se ajoelhar, oscular o chão e
dizer: “Eu não ouso pedir que a minha voz asquerosa chegue até Vós, Senhor, mas
vou procurar a vossa Mãe. Não tenho outra saída, eu vou procurá-La”
Por fim, fazendo uma análise desta conferência,
podemos afirmar que o tema relativo a Nossa Senhora foi sondado por nós e
transportado para as analogias com a vida nesta Terra, com a nossa vocação e
nossos deveres. Ademais, foi feito um aprofundamento do mistério d’Ela e, em
função disso, também do mistério existente no nosso relacionamento. Porque sou
propenso a afirmar que há qualquer coisa de nossa vocação iluminada por um
discernimento, sem o qual tudo nela se torna misterioso, e nós não
compreendemos.
Então, do que adiantam suas considerações? Eu
tenho a impressão de que isso fica como semente em nossas almas, e que a graça
no seu momento oportuno fará frutificar, render. São temas suscitados a
propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo os quais, por si, já são montanhas da
cordilheira que é o Segredo de Maria.
Afinal de contas, em presença do que a Fé nos
ensina sobre Nosso Senhor, Nossa Senhora, a Igreja, nós estivemos juntos,
nos olhamos e nos quisemos bem.
(Extraído
de conferência de 6/9/1986)[1]
