Plinio
Corrêa de Oliveira
Se alguém me
pedisse para indicar um apóstolo-tipo para nossos tempos, eu responderia sem
vacilação, mencionando o nome de um missionário... falecido há precisamente 239
anos! E, dando tão desconcertante resposta, teria a sensação de estar fazendo
algo de perfeitamente natural. Pois certos homens, colocados na linha do
profético, estão acima das circunstâncias temporais.
Basta
exemplificar com Elias. Dentro de cem anos, os que hoje vivemos teremos sido
superados pela marcha do tempo como estão hoje os homens de há cem anos atrás.
Seremos atrasados, anacrônicos, mofados. Daí a duzentos, a trezentos anos,
estaremos mais ou menos tão incrustados no reino da morte, das sombras e da
História, quando as múmias egípcias que aguardam nas salas do British Museum o dia
do Juízo Final. E o que dizer de nossa "situação" daqui a mil anos?
Pois alguém há, vivo, vivíssimo, e que será a última palavra do apóstolo
moderno, não hoje, mas no fim do mundo quando nós estivermos imersos na mais
total anacronicidade. Alguém que viu dias muito anteriores aos de D. Pedro II,
Pio IX e Napoleão III. Anteriores até a S. Luiz, a Carlos Magno, a Átila, o que
direi, a Augusto e a Jesus Cristo. É o Profeta Elias! Apóstolo moderno, sim, e
moderníssimo, não porque esteja escrito dele que participará do espírito e das
tendências dos homens que então viverem, mas porque será mandado por Deus como
o varão idealmente adequado a combater de frente a corrupção do século em que
voltará a esta terra. Elias será moderno, não por ter tomado o espírito e a
forma dos derradeiros anos da História - não vos conformeis com este século,
adverte S. Paulo - mas porque será adaptado e adequado ao tempo. Adaptado, no
sentido de que será "apto" a fazer-lhe bem. Adequado, sim, no sentido
de que disporá dos meios adequados a corrigi-lo. E por isto mesmo moderníssimo.
Pois ser moderno não é necessariamente parecer-se com os tempos, e muitas vezes
pode até ser o contrário. Mas, para um apóstolo, ser moderno é estar em
condições de fazer o bem no século em que vive...
Sem equiparar a
Elias, Profeta incumbido de uma missão oficial, S. Luiz Maria Grignion de
Montfort, em cujos escritos há luzes proféticas impressionantes, mas de um
valor meramente privado, certa analogia existe entre um e outro. E é nos termos
desta analogia que o Santo francês é um modelo de apóstolo para nossos dias, e
os séculos vindouros.
* * *
São Luiz Maria
Grignion de Montfort nasceu em Montfort-la-Canne, França, em 1678. De família
pobre, faltavam-lhe recursos para custear os estudos necessários ao Sacerdócio,
ao qual desde cedo aspirava. Dirigiu-se a Paris, onde exerceu o ofício de velar
cadáveres na Paróquia de S. Sulpício em certas noites da semana, para pagar sua
pensão no Seminário. Depois de um curso brilhante, foi ordenado Sacerdote em
1700.
Dado o vulto das
dificuldades que se depararam a seu apostolado na França, e movido pelo desejo
de anunciar o Evangelho aos gentios, S. Luiz Maria dirigiu-se a Roma para pedir
uma diretriz ao Papa Clemente XI. Este determinou-lhe que retornasse à sua
pátria, a fim de se dedicar a pregar à população católica necessitada de
catequese e edificação. Entregando-se inteiramente a essa atividade durante os
dez anos que ainda viveu, o Santo insistia particularmente sobre a renúncia à
sensualidade e ao mundanismo, o amor à mortificação e à Cruz, e a devoção
filial a Nossa Senhora. Como terceiro dominicano que era, difundiu largamente o
Rosário.
Vítima dos
ataques enfurecidos dos calvinistas e dos jansenistas, foi objeto de severas
medidas da parte de um número não pequeno de Bispos franceses, que não o
queriam por missionário em suas Dioceses.
A morte lhe veio
quando ele contava apenas 43 anos de idade.
Fundou duas
Congregações Religiosas a Companhia de Maria e as Filhas da Sabedoria.
Entre seus
escritos, assinala-se o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, uma
das mais altas obras da mariologia em todos os tempos, e talvez a mais alta
delas. Este livro admirável foi deixado por ele em manuscrito, e desapareceu
misteriosamente depois de sua morte, reaparecendo de maneira providencial em
nossos tempos.
Leão XIII o
beatificou em 1888. Pio XII, gloriosamente reinante, o inscreveu no catálogo
dos Santos.
Esta é uma visão
a "vol d’oiseau" da vida deste
grande Santo.
Quanta riqueza
se nos depara num exame mais atento dos principais aspectos dessa vida.
* * *
A Renascença
desencadeou na Europa uma sede de diversões, de opulência, de prazeres
sensuais, que impeliu fortemente os espíritos a subestimar as coisas do Céu,
para se ocupar muito mais com as da terra. Daí, nos séculos XV e XVI, um
declínio sensível da influência da Religião na mentalidade dos indivíduos e das
sociedades. A esse indiferentismo nascente, somou-se não raras vezes uma
antipatia contra a Igreja, discreta e apenas perceptível em uns, mais
pronunciada em outros, e levada em alguns ao extremo de uma hostilidade
militante. Tal estado de espírito concorreu sensivelmente para a eclosão do
protestantismo, e para as manifestações de racionalismo e cepticismo tão
freqüentes entre os humanistas. Do indiferentismo nascia naturalmente o livre
pensamento.
Mas estes
fermentos não atacaram desde logo toda a sociedade. De início, dominaram apenas
certos elementos de alta influência na vida intelectual, na nobreza e no Clero,
com o apoio de um certo número de soberanos. Aos poucos, entretanto, foram
alcançando os tecidos mais profundos do corpo social. Ao tempo de S. Luiz
Grignion, pode-se afirmar que sua influência se notava em todos os campos: a
política se laicizara, a antiga sociedade orgânica e cristã fora semi-deglutida
pelo absolutismo do Estado neo-cesáreo e neo-pagão, minguara a influência da
Religião na vida de todas as classes sociais, principalmente nas elites, uma
tendência geral para costumes mais frouxos, mais "livres", mais
fáceis ganhava todos os ambientes, a sede de prazer e de lucro crescia, o
mundanismo pompeava até em certo número de casas religiosas, o mercantilismo
estendia seus tentáculos para dominar toda a existência. Em linhas gerais, o
quadro era bastante parecido com o de nossos dias.
DIFERENÇAS
CONSIDERÁVEIS
Entretanto, se a
analogia é profunda, evidente, indiscutível, seria impossível passar-se daí
para uma equiparação absoluta. O corpo no qual os fermentos agiam nos séculos
XV, XVI e mesmo XVII, era ainda o corpo robusto da velha Cristandade gerada
pela Idade Média. Um sem número de instituições, de hábitos mentais, de
tradições, de usos, de leis refletia ainda o espírito da sociedade orgânica e
cristã de outrora. Se a monarquia absoluta pressagiava o socialismo hodierno,
ela se personificava contudo nos Reis pela graça de Deus, que ainda se
consideravam Pais de seus povos no bom e velho estilo de S. Luiz IX. Se a vida
internacional fora secularizada com os tratados de Westphalia, ainda existiam
tais ou quais vestígios da Cristandade, uma família de Reis e povos cristãos
dotados da consciência de formar um todo à parte, face ao mundo gentílico. Se a
sociedade era mundana, as disputas religiosas - como as que se travaram entre
Jesuítas e jansenistas - encontravam nela uma ressonância que jamais teriam em
nossos dias. Se os costumes eram frouxos na corte e nas cidades, havia a isto
numerosas e retumbantes exceções. Nos degraus do trono, no próprio trono o
escândalo de um Luiz XIV, por exemplo, era de algum modo reparado por sua
emenda e sua vida modelar depois do casamento com Mme. de Maintenon e a queda
de Mlle. de La Vallière o era por sua penitência exemplar no Carmelo. Mme. de
Montespan por sua vez morria cristãmente, o Duque de Borgonha, neto de Luiz
XIV, se destacava por sua piedade, e a família real ainda teria no século XVIII
ao lado da vergonha da vida de Luiz XV, a ilustração das virtudes pouco comuns
do Delfim Luiz, da Carmelita Madame Louise de France, e da Princesa Clotilde de
Sabóia, ambas filhas do Rei, e falecidas em odor de santidade. Assim, por mais
rigorosas que sejam as analogias entre o século XVI e o século XX, haveria
manifesto exagero em afirmar que a vida política e social já se encontrava
então inteira ou quase inteiramente laicizada e paganizada.
Entretanto, na
história dos Tempos Modernos, isto é, nos séculos XVI, XVII e XVIII, é fora de
dúvida que os fermentos nascidos do neo-paganismo renascentista se revelaram
cada vez mais vigorosos, e isto trouxe a imensa explosão de 1789.
TEMPOS
PRECURSORES DOS NOSSOS
Considerando-se
estes fatos do ponto de vista do Santo Padre Leão XIII na Encíclica
"Parvenu à la 25.ème Année", a Revolução Francesa foi uma
conseqüência do protestantismo. E por sua vez produziu o comunismo. Ao
igualitarismo e liberalismo religioso do frade apóstata de Witemberg, sucedeu o
igualitarismo e liberalismo político-social dos sonhadores, dos conspiradores e
dos facínoras de 1789. E a este segue-se o igualitarismo totalitário, social e
econômico, de Marx.
A revolução
protestante foi uma forma ancestral da Revolução Francesa, como esta o foi do
comunismo hodierno. E cada uma destas formas ancestrais já tinha em si todas as
toxinas da que se lhe seguiu. São três moléstias, sucessivamente mais graves,
provocadas pelo mesmo vírus. Ou são três fases sucessivamente mais graves da
mesma moléstia. Ou três etapas de uma omnímoda e universal Revolução.
UM
PROFETA APARECE NO CURSO DA REVOLUÇÃO
Ora, S. Luiz
Grignion de Montfort foi, neste processus histórico, um verdadeiro profeta. No momento em
que tantos espíritos ilustres se sentiam inteiramente tranqüilos quanto à
situação da Igreja, embalados num otimismo displicente, tíbio, sistemático, ele
sondou com olhar de águia as profundezas do presente, e predisse uma crise
religiosa futura, em termos que fazem pensar nas desgraças que a Igreja sofreu
durante a Revolução, isto é, a implantação do laicismo de Estado, o
estabelecimento da "Igreja Constitucional", a proscrição do culto
católico, a adoração da deusa razão, o cativeiro e morte do Papa Pio VI, os
massacres ou deportações de Sacerdotes e Religiosas, a introdução do divórcio,
o confisco dos bens eclesiásticos, etc.. Mais ainda. Para alento e alegria
nossa, o Santo profetizou uma grande e universal vitória da Religião Católica
em dias vindouros.
MARTELO
DA REVOLUÇÃO
Mas além de
profeta, S. Luiz Grignion de Montfort foi missionário e guerreiro. Missionário,
causticou ele implacavelmente o espírito neo-pagão, fazendo quanto podia para
afastar o povo fiel do mundanismo e de tudo quanto constituía o mau espírito
nascido da Renascença. A região evangelizada por ele foi tão profundamente
imunizada contra o vírus da Revolução, que se levantou de armas na mão contra o
governo republicano e anti-católico de Paris. Foi a Chouannerie. Se S. Luiz
Grignion tivesse estendido sua ação missionária a toda a França, provavelmente
teria sido outra a sua História, e a História do mundo.
Ora, porque não
a evangelizou inteira?
Orador sacro
eficientíssimo, pregava a palavra de Deus com um desassombro extraordinário.
Isto lhe valeu o ódio, não só dos calvinistas, mas de uma das seitas mais
detestáveis e mais influentes que até hoje tenham existido infiltradas na
Igreja, isto é, os jansenistas. Seria longo enunciar as múltiplas e complexas
razões por que o jansenismo, com suas aparências de austeridade embora, é
legitimo produto da crise religiosa do século XVI. O certo é que esta seita,
dispondo de deplorável influência sobre muitos fiéis, Sacerdotes e até Bispos,
Arcebispos, Cardeais, seguia uma linha de pensamento e de ação nociva a toda
restauração da vida religiosa, afastava as almas dos Sacramentos, e combatia
vivamente a devoção a Nossa Senhora.
S. Luiz Grignion
de Montfort, pelo contrário, tinha à SSma. Virgem a devoção mais ardente, e até
compôs em louvor dela o "Tratado da Verdadeira Devoção", que
constitui hoje o fundamento mais forte de toda a piedade mariana profunda. De
outro lado, por suas missões, aproximava o povo dos Sacramentos, afervorava-o
no Rosário, em uma palavra fazia obra diametralmente oposta às intenções dos
jansenistas.
Isto lhe trouxe,
nos próprios meios católicos, uma perseguição aberta, que lhe valeu as maiores
humilhações. Causa pasmo que, enquanto tantos Prelados, clérigos, e leigos, em
nome da caridade se mostravam irritados ou apreensivos com a justa severidade
da Santa Sé em relação aos jansenistas, não tivessem penalidades, atos de
hostilidade, nem humilhações que bastassem contra S. Luiz Maria. Pode-se dizer
que foi um dos Santos mais desprezados e humilhados que houve nestes vinte
séculos de vida da Igreja. Por fim, só em duas Dioceses lhe foi permitido
exercer seu ministério. Mas, novo Inácio de Loyola, sentindo com serenidade o
ímpeto contra sua pessoa, dos vagalhões do ódio anti-católico disfarçado com
ares de piedade, não se perturbou. E, humilhado até o fim, até o fim lutou.
Ora, este Santo
extraordinário deixou uma prece admirável, contendo ensinamentos e luzes
especiais para nossa época. É a que compôs pedindo Missionários para a sua
Congregação. Neste mês de maio nos é útil lembrar a figura angélica deste sumo
paladino da Virgem. No mês de junho, consagrado ao Coração de Jesus, pensamos
expor e comentar sua admirável oração.
Nesta oração,
como esperamos mostrar no próximo número, vê-se que para S. Luiz Maria seus
tempos eram precursores de uma imensa crise que se estende até hoje, e irá até
a instauração do Reino de Maria. E ele próprio se nos afigura como o modelo, a
prefigura dos apóstolos suscitados para lutar nessa crise, e vencer a batalha
por Maria Santíssima. É esta a sublime e profunda atualidade de S. Luiz Maria
Grignion de Montfort para os apóstolos de nossos dias.
Tema de
meditação fecundo neste mês em que a Santa Igreja celebrará pela primeira vez -
no dia 31 - a festa tão grata às almas forte e profundamente piedosas, da
Realeza de Maria.
(“Catolicismo”
Nº 53 - Maio de 1955)
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